Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 14
Como rogar pragas poderosas




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/580013/chapter/14

Eu sempre quis saber quando foi que o homem inventou a tal da “paixão”.

Bom, dependendo de qual teoria da criação humana você acredite, a paixão pode ter surgido no dia que Adão olhou para a Eva peladona ou no dia que o primeiro macaco safado percebeu que queria dar “uns pegas” na macaca do galho ao lado. Sinceramente, eu não sei como isso surgiu, mas sei que foi aí que a humanidade começou a se estragar.

Sério.

Porque não existe coisa mais chata no mundo do que gente apaixonada.

— Alex, hoje não dá! — exclamei pela milésima vez. Ele queria que eu convencesse minha avó a sair com ele naquele mesmo dia, mas ela estava com um humor tão instável quanto a inflação brasileira. — Se eu falar com ela hoje ela vai atirar o sapato de salto mais fino na minha cara. E garanto que a pontaria dela é ótima, não estou com vontade de perder meus belos olhos.

— Mas nós combinamos que você me ajudaria! — ele lembrou e eu suspirei. — Se você não me ajudar, a Sarah nunca deixar de me ver apenas como o bom e velho Alex.

— Alex, você está muito mole — zombei. — Qual é, você não tem cara de quem precisa de ajuda para conquistar mulher. Olhe para você: é bonitão, legal, ainda é jovem e tem essa maior cara de ator pornô — gargalhei. — Juro que se eu não tivesse esse coração de pedra me apaixonaria por você e viveríamos um romance anos 50.

— Aí está o ponto então — ele apontou o dedo na minha cara com divertimento. — Esse seu coração de pedra não deixar você saber como é estar apaixonada... Mas quer saber, se tem uma coisa que eu aprender aqui no Brasil foi a como rogar pragas poderosas. E eu vou rogar uma para você.

— Ah, é? Qual? — eu ri ainda mais.

— Um dia você vai gostar tanto de alguém que não vai conseguir parar de pensar nele. Vai sonhar com ele dia e noite e vai morrer de saudade mesmo que fiquem distantes por uma segundo!

— Isso não tem a mínima possibilidade de acontecer. Nem com reza brava, patuá, pai de santo e mandinga!

— Cuidado com o que você diz, little girl. Aposto que um dia desses você não escapa...

— Tá bom, para com isso — eu cortei impaciente. Não que eu acreditasse em coisas místicas, mas do jeito que eu tinha sorte na vida fiquei com medo da praga de Alex pegar e eu acabar me apaixonando pelo açougueiro ou pelo carteiro, exatamente como acontecesse naqueles livrinhos antigos de romance pornô.

— E aí? — ele proferiu com cara de cachorro que caiu da mudança e eu não consegui dizer não. Eu era uma bobona com gente que sabia fazer cara de sofrimento.

— Ok, tá bom. Sei de uma coisa que pode ajudar — suspirei e ele sentou no sofá. Por sorte a minha avó havia saído cedo para resolver umas coisas e Conchito e Jefferson ainda dormiam aquela hora, por isso podíamos falar em volume tão alto. — No final da tarde ela vai visitar uma moça que trabalhava na limpeza da boate e que acabou de ter neném. Compre um presentinho bem bonito para o bebê e se ofereça para ir com ela. Garanto que ela vai achar isso muito fofo e assim já marcamos um ponto ao seu favor.

— E depois? — ele questionou todo animado. — A convido para jantar?

— Não, ela disse que hoje quer ficar em casa porque está cansada. Então, acho que sei o que fazer. Apenas fique conosco para o jantar e confie em mim.

— Tem certeza?

— Absoluta — afirmei. Mas na verdade eu não fazia ideia se meu plano daria certo...

*

— Ei, vocês dois — chamei a atenção de Jeferson e Conchito, que estavam esparramados no chão da sala como divas egípcias. — Preciso que saíam de casa agora, já — tratei de expulsá-los assim que Alex levou minha avó dali. — Andem!

— Mas o que foi que eu fiz? Por que você quer que eu vá embora? Eu não tenho para onde ir nessa cidade! O que vai ser de mim?— Jeferson ficou berrando exageradamente, quase caindo aos prantos. Ele se ajoelhou aos meus pés e bufei de desgosto.

— Para de frescura! Não estou mandando você ir embora para sempre, apenas por essa noite — expliquei e ele se abanou com alívio. Olhei para Conchito e ele estava com as duas mãos na cintura, pronto para rodar a baiana.

— Posso saber por que você quer que a gente se mande daqui? — ele perguntou. — Hoje é segunda, a boate não abre, e eu não estou nem um pouco a fim de sair nesse calor! Então, se você não me der um bom motivo para que eu sue a minha pele de pêssego lá fora, pode ir tirando o seu cavalinho da chuva!

— Meninas... — respirei fundo e uni as mãos, pedindo paciência aos céus. — É por uma boa causa. Preciso da casa vazia para um jantar romântico...

Jeferson e Conchito ficaram parados, boquiabertos. E então começaram a dar gritinhos e bater palmas.

— Ó, minha santa das causas impossivelmente impossíveis! — Jeferson clamou. — Eu não acredito no que acabei de ouvir.

— Então quer dizer que você vai fazer um jantar romântico para o bofinho made in Japão? — Conchito gritou e eu quase caí de costas. — Eita, que é hoje que você tira as teias de aranha dessa sua ...

— Se você completar essa frase, senhor Antônio José das Conchas, eu acabo com a sua raça! — bradei o mais alto e o mais furiosa possível e ele se calou ao me ouvir pronunciar seu verdadeiro nome. — Não é nada disso que vocês estão pensando... — respirei fundo e tentei me acalmar o máximo que podia depois de ouvir algo tão constrangedor. Depois de alguns segundos, recitando mantras que me impediram de cometer um homicídio duplamente qualificado com ocultação de cadáver, consegui continuar a falar. — Estou tentando juntar a minha avó e o Alex, entenderam? Não tem nada a ver com o Davi, parem de falar no Davi, o Davi nem está aqui, seus idiotas!

Sentei no sofá com bastante raiva e escondi o rosto entre as mãos. Eu não sabia dizer se a minha reação exagerada se dava pelo fato de Conchito e Jeferson terem me feito passar vergonha ou pelo fato de Davi não ter ido me ver.

Nem ter me ligado.

Nem ter mandado sequer uma maldita mensagem.

Senti quando os dois sentaram ao meu lado e me espremeram no sofá. Olhei para Conchito e ele estava magoado comigo. Jeferson estava ainda pior, ele era mais sensível do que aquelas plantinhas que se fecham quando a gente assopra.

— Me perdoem — eu pedi e segurei as mãos de ambos. — Mesmo.

— Tudo bem, a gente entende — Conchito beijou a minha mão que segurava a dele e sorriu. — Mas você sabe que somos amigos e nunca escondemos nada um do outro. Você não quer conversar? O que está acontecendo?

O que está acontecendo?

E eu lá sei?

— Não faço ideia — respondi. — Acho só que estou chateada com algumas coisas.

— Tipo? — Jeferson questionou com aquele jeito suave de ser.

— Tipo... estou há cinco dias sem saber do Davi. E não sei por que isso tá me tirando do sério.

— Bom, vocês são amigos, não são? — Conchito afirmou. — É natural você ficar preocupada dessa forma, fofa. Não esquenta com isso não.

— A questão não é a preocupação do que aconteceu com ele. Mas, devido a minha vida não ser a mais “normal” das vidas, fico com medo... sei lá. Eu não sou o tipo de amiga que uma mãe se orgulharia em ver com o filho. Ainda mais a dele, que pelo visto... — suspirei. — Então, fico sempre esperando o momento em que a pessoa vai chegar comigo e dizer: “desculpe, mas não posso mais falar com você, pois acho que a sua companhia é problema". Isso já aconteceu tanto que até perdi as contas...

— Anna... — Conchito deitou a cabeça no meu ombro. — Aquele garoto é diferente. Tudo bem que ele é meio esquisito e tal — eu não consegui evitar rir —, mas parece que tem algo a mais ali. Algo a mais entre vocês.

— Como assim?

— Vocês são aqueles tipos de amigos que meio que se completam, sabe? Eu não o vi muitas vezes, mas deu para sentir isso. E minha intuição não costuma se enganar, não é, Jeferson — ele explicou e nós três rimos. — Tenho certeza e aposto que alguma coisa aconteceu. Então, seja uma boa amiga e espere antes de pensar coisas ruins. Quando puder, ouça o que ele tiver a dizer, ok?

— Ok.

— Você vai ficar bem? — Jeferson me olhou com ternura e eu sorri.

Foda-se se a minha mãe havia sumido no mundo. Foda-se o se o meu pai morava muito, mas muito longe de mim. Foda-se se as pessoas achavam estranho o fato da minha família ser formada por uma senhorinha espevitada e duas drags completamente enlouquecidas.

Nada disso importava naquele momento.

O que eu tinha era maravilhoso e suficiente.

— Enquanto vocês ficarem comigo eu fico bem — respondi e fui abraçada, espremida, amassada e beijada no rosto com gloss sabor morango.

A vida era mesmo uma grande loucura.

*

O frango com molho de ervas finas – que eu havia aprendido a fazer graças àquele programa de culinária que tem um animal falante – havia acabado de ser colocado no forno. A cozinha estava impecável, com um cheirinho delicioso, e as louças brilhando. O cenário estava perfeito.

Agora era só esperar.

Das duas uma: ou aquela noite iria ser memorável ou seria ali que eu assinaria meu atestado de óbito.

— Tudo pronto? — Conchito perguntou, retocando o glitter labial. Ele e Jeferson já estavam de saída e só faltava o futuro casal chegar em casa.

— Tudo. Estou esperando o frango ficar pronto e enquanto isso vou tomar um banho. Então, assim que eles chegarem eu invento uma desculpa e os deixo a sós. E seja o que Deus quiser.

— Amém — ambos disseram rindo.

Após os dois terem ido embora, corri até o banheiro e tentei ficar o mais apresentável possível. Coloquei uma roupa até legal e quando estava penteando o cabelo ouvi o barulho do carro. Respirei fundo e enquanto descia as escadas torci para que a minha avó deixasse de ser cabeça dura, ela merecia um pouco de diversão depois de tantos anos de trabalho.

— O que é isso, Anna? — ela perguntou com um sorriso, apreciando o cheirinho saboroso que invadia a casa. Isso significava que o humor dela estava melhor do que pela manhã e isso era um bom sinal.

— É que como a senhora havia dito que estava cansada e queria ficar em casa hoje, eu resolvi fazer algo especial — disse com a cara mais lavada do mundo. Alex, que estava atrás dela, me mostrou os dois polegares virados para cima.

— E onde estão aquelas duas libélulas?

— Sei lá, foram dar uma volta, vovó. E aí, vamos comer? Alex, você quer provar da minha gororoba? — perguntei e ele sorriu, todo (falsamente) desinteressado.

— Ah, claro que sim — ele piscou para mim.

Os dois sentaram à mesa e eu fui retirar a comida do forno. Quando eles viram que havia dado certo aplaudiram o meu desempenho e vovó elogiou dizendo que estava com uma cara boa.

Ia dar certo.

Ela então pediu para abrir um vinho, para comemorar o fato de eu não ter ateado fogo na cozinha.

Ia dar certo.

Comecei a servi-los e os dois não paravam de sorrir um para o outro. Só faltava agora eu inventar algo para sair de fininho.

Ia dar certo.

Alguém tocou a campainha.

Droga.

Se fosse uma visita fora de hora tudo teria sido em vão.

— Eu vou olhar — retirei o avental que estava usando e corri para atender, tentando segurar a raiva. Cada passo que eu dava em direção a porta só aumentava ainda mais a minha frustração e decidi que seria bem ríspida com sei-lá-quem fosse que estivesse atrapalhando.

Melhor, eu iria mandar a pessoa embora.

Melhor ainda, eu iria jogar um balde de água nela.

Porém, na hora que eu abri a porta, a única coisa que eu consegui fazer foi sorrir.

Davi estava ali, na minha frente, com aquele meio sorriso que fazia eu me esquecer de qualquer coisa. Ele parecia bem.

Agora eu estava bem.

E também com mais raiva ainda do que antes.

— Filho. Da. Mãe! — bati a porta atrás de mim e dei um soco com força no braço dele. — Você some a semana inteira e quando aparece é justamente hoje? Você pensa o quê? Que a minha vida é a sua casa para você entrar e sair quando bem entender?

— Oi para você também — ele respondeu, desconcertado.

“Quem está aí? — a voz de Sarah irrompeu pela porta e eu revirei os olhos.

— Davi, se a minha avó convidar você para ficar, não aceite. Eu te explico depois — ordenei e ele me olhou meio magoado.

— É o Davi! — respondi abrindo a porta e o fiz entrar. Minha avó se levantou para cumprimentá-lo e Alex me mostrou os polegares novamente. Dessa vez eles estavam para baixo.

— Você fica conosco para jantar? — Ela ofereceu. Davi coçou a nuca.

— Ah... não. Já estava indo embora.

— Na verdade, a gente estava indo, não é? — olhei para ele e pedi confirmação. Davi balançou a cabeça e eu dei um sorriso falso. — Precisamos fazer umas coisas.

— Agora?

— É, agora.

—...

— Vó, por favor...

Ela pensou um pouco, com a mão no queixo, mas não pareceu desconfiar de nada no fim.

— Ok, então — ela deu um beijo na bochecha de cada um de nós. — Divirtam-se.

Puxei Davi porta a fora e torci para que o jantar deles ainda pudesse dar certo. Quando já estávamos no jardim, passando pela grama baixa, ele falou baixinho.

— Foi mal aí por...

— Não começa — não deixei ele terminar a frase. — É que eu estou uma pilha de nervos, sabe? Primeiro, você some durante todos esses dias sem dar notícia, então eu pensei que você tinha se mandado e resolvido que nunca mais ia falar comigo. Depois, eu trabalhei a tarde inteira para fazer esse jantar e tentar juntar aqueles dois. Aí, quando tudo parecia dar certo, você aparece assim, me deixando surpresa, feliz, com raiva... Davi, você terá sorte se eu não te matar por quase estragar tudo! — despejei.

— Eu juro, juro que posso explicar por que sumi — ele falou enquanto me fitava com uma expressão envergonhada. — Isso se você me der uma chance, claro.

— Ah, até parece, Davi — disse impaciente, pois eu estava esgotada naquele momento. — Você me ignorou durante cinco dias, não me atendeu, não respondeu minhas mensagens. Sinceramente, estou realmente curiosa para saber qual a desculpa.

— Na verdade a desculpa é você, Anna. Fiquei de castigo todo esse tempo por sua causa.

— Ah, com certeza... — suspendi a frase no ar quando me toquei sobre o que ele havia dito. — O que foi que disse?

— Eu disse que fiquei de castigo por sua causa, por isso fiquei sem poder me comunicar. Minha mãe confiscou até o meu celular — ele respondeu rindo, com as mãos nos bolsos. Não consegui acreditar.

— E você diz isso rindo? — perguntei. — E o que é que eu tenho a ver com isso?

— Bom... é que a minha mãe pensa que eu não tenho o costume de sair à noite e quis saber aonde eu tinha ido naquele dia em que fomos ao cinema. Ela disse que me viu chegar tarde e perguntou onde e com quem eu estava. No entanto, eu não quis falar nada e por isso fiquei de castigo até “pensar” sobre esconder as coisas que faço, pois ela esperou eu falar antes e eu não falei nada.

— E por que você não contou para ela? Você não estava fazendo nada de errado mesmo.

— Eu não contei nada porque não quis falar sobre você — ele disse e na mesma hora senti a minha garganta apertar.

Por que ele não queria falar sobre mim?

— Por que você não quis falar sobre mim? — questionei com raiva. — Ficou com vergonha de alguma coisa?

— Claro que não! — ele explicou e segurou a minha mão. A dele estava quentinha e eu gostei do toque. — É que ela ia acabar fazendo um monte de perguntas, dizendo um monte de coisas... Por isso que não disse nada, pois quis que você fosse tipo um segredo meu, entende?

“Um segredo meu, entende?”

Eu era o segredo dele.

O que isso significava?

Bom, o que isso significava não tinha importância no momento, pois, como Conchito havia aconselhado, eu deveria ser uma boa amiga e ouvi-lo. E a sua “desculpa” havia sido mais do que suficiente para mim, havia sido algo até melhor do que eu imaginava.

Eu estava me tornando uma idiota.

— Isso... — pensei em suas palavras e meu coração deu um enorme salto — é algo muito legal de se ouvir, Davi. E é também a desculpa mais esfarrapada que eu já ouvi.

— Eu nunca ia sumir e deixar de falar com você — ele sussurrou, ainda segurando a minha mão. — Por que você pensou nessa possibilidade?

— Porque é isso que todo mundo faz — respondi, minhas palavras saindo abafadas. — Todo mundo que entra na minha vida se manda sem nem dar tchau. E eu já estou tão cansada disso.

— Não diga isso. Você fala o que pensa, está sempre fazendo os outros sorrirem. Não posso acreditar que as pessoas não queiram ficar perto de você, Anna. Sério, você é a pessoa mais legal que eu já conheci em toda a minha vida — Davi disse carinhosamente.

Fechei os olhos e fiquei um tempo respirando devagar, tentando me acalmar internamente. Porém, só depois de algum tempo de silêncio percebi a situação. Eu estava vulnerável, sabe-se lá porque, e por causa disso acabei falando coisas que não devia. E, mesmo tendo adorado saber que Davi pensava isso de mim, aquele não era o meu jeito de ser. Eu não costumava ficar choramingando por nada.

— Meu, esquece o que eu disse. Eu estou exausta, trabalhei o dia inteiro e acho que estou ficando gripada. Não ligue para as minhas besteiras — falei ríspida e me afastando o máximo possível dele, sentando em um banco de madeira que estava próximo ao muro.

— Eu sempre vou ligar para as suas besteiras — ele me deu um leve sorriso e isso amenizou meu coração. Talvez eu não tivesse acostumada com o fato de ter um amigo e por isso não sabia com agir em situações como essa. — Se você quiser conversar, pode contar comigo — Davi disse sentando ao meu lado.

— Sei disso. E me desculpa se fui grossa com você. É só que... tem horas que eu tenho vontade de jogar tudo para o ar, sabe?

— E como sei — ele respondeu e a gente riu, cúmplices. — A nossa vida é uma bela merda, não é, Anna?

— É. Obrigada então por ser o meu papel higiênico — falei e Davi não aguentou, dando uma daquelas gargalhadas que eu já estava acostumada.

— Nossa, isso foi a coisa mais bonita que alguém me disse — eu ri junto com ele e ainda haviam lágrimas em meus olhos, mas que não eram mais de tristeza. — Vou anotar essa frase para nunca mais esquecer.

— Não lembre-se de colocar embaixo: “Lispector, Anna”. Essa com certeza é uma coisa que ela diria.

— Ah, sim. Uma bela poesia.

Nós então conversamos sobre várias coisas e várias bobagens, principalmente se o meu plano para juntar o casal havia dado certo. Davi tentou espionar, mas não deixei, pois poderíamos acabar vendo algo constrangedor. Nós ouvimos uma música nova, rimos muito, falamos mal da vida alheia... Então, o nosso tempo foi acabando e tudo o que restou foi o silêncio. E ele era tão bom. Só depois de um tempo é que Davi falou novamente.

— Enfim, Anna, eu já estou encrencado até o pescoço. Sabia que se eu for pego fora de casa sou um cara morto? Preciso ir agora antes que sintam a minha falta.

— Já? — questionei com tristeza.

— Infelizmente.

— Então agora é tchau para valer, não é?

— Agora é...

Eu e Davi nos levantamos e apenas o puxei para mim, lhe dando um abraço bem apertado. Aquela era a forma que eu tinha para pedir desculpas por ter sido tão dura e também de dizer que eu iria sentir saudades dele.

É, eu não costumava abraçar as pessoas desse jeito.

Mas talvez eu estivesse ficando doida, quem sabe. Ou gripada mesmo.

— Faça uma boa viagem. E tome cuidado — aconselhei. O cheiro do perfume dele era tão bom que senti vontade de ficar ali mais tempo.

— Eu vou sentir saudade de você, sua maluca — sua voz saiu abafada entre os meus cabelos. — Você é a minha melhor amiga.

— Eu também vou sentir, Davi. Muita. Você também é meu melhor amigo.

— Você vai me ligar? — ele perguntou quando nos separamos, mas ainda havia pouco espaço entre nós. Ele parecia especialmente mais bonito naquela noite e ao fitar melhor o seu rosto percebi que os lábios dele eram rosados, daquele tipo de dá vontade de morder.

Imaginei que gosto teria...

— Anna, tudo bem? — ele me trouxe de volta a realidade e arregalei os olhos quando percebi o que havia pensado.

Que gosto a boca dele teria?

Que porra de pensamento é esse?

— Está — respondi baixinho e dando dois passos para trás. — Estou. Vou ligar sempre às três da manhã só para te irritar.

— E eu vou atender só para brigar com você. E quando eu voltar, estarei aqui se você precisar de mim para conversar.

— Eu espero — falei e era verdade, pois eu precisava mesmo conversar com alguém quando tivesse preparada para colocar para fora minhas dores.

Ele então se foi e eu dei graças a Deus pelo fato de existir agora um abismo de dias entre nós, isso serviria para eu me situar e começar a ver Davi realmente como só meu melhor amigo. Essa minha nova fase sentimentalista poderia começar a confundir as coisas e estragar uma das únicas coisas boas que eu tinha.

A amizade dele era preciosa demais para mim para ser perdida.

Olhei para o banco de madeira e decidi me acomodar por ali mesmo, pelo menos por algumas horas, já que não me atreveria a entrar em casa. Observei as estrelas no firmamento, tão perfeitas, e elas pareciam querer me dizer alguma coisa.

Elas se esforçavam muito para isso.

E enfim, surpreendentemente, eu entendi. Já era tarde demais para fazer qualquer coisa.

A praga que Alex rogara já havia recaído sobre mim.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!