Somente à noite escrita por Ys Wanderer


Capítulo 16
Venha buscar o seu prêmio!




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Milagrosamente aquele dia havia começado bastante frio, do tipo de fazer uma pessoa tremer ao mais leve vento. Olhei pela janela e o céu não parecia nada feliz com isso, as nuvens cinzas e escuras se aproximando tristemente.

Deprimentes.

No entanto, eu me sentia tão bem que seria capaz de sair dançando na chuva.

— Querida, como você está? — vovó perguntou enquanto eu me esticava feito um gato preguiçoso. Ela colocou a mão na minha testa, para verificar a temperatura. — Hum, você não tem mais febre. Isso é bom.

— Pois é, estranhamente me sinto bem — disse coçando os olhos. — Que horas são?

— Já são quase dez — respondeu e eu lamentei mais um dia de aula perdido. Então, percebi que ela sorrateiramente disfarçava um sorrisinho cínico. Como não entendi o motivo, resolvi ignorar.

— Eu dormi muito, acho que isso foi o suficiente para me fazer melhorar. Posso sair da cama?

— Pode — o sorrisinho cínico estava lá novamente. — Mas, Anna, tem certeza que foi só isso que te curou?

— Sim, ué. Por quê? — franzi a testa. — Do que mais a senhora está falando?

Ela sorriu novamente e, mexendo na minha cama, retirou um casaco de capuz azul que estava perdido no meio dos meus lençóis. E então, finalmente me lembrei de algo. Não havia sido um sonho.

Davi havia estado realmente lá e eu dormira no peito dele.

Agarrada ao corpo dele.

Havia sido tão bom...

— É, pelo visto o seu remédio tem nome e sobrenome — ela jogou a jaqueta para mim e isso me trouxe de volta do mundo dos devaneios. — Quando cheguei aqui encontrei os dois dormindo juntos, você agarrada a ele como um filhotinho de macaco — riu. — Então, como foi?

— Como foi o quê?! — perguntei arregalando os olhos e ela sacudiu as mãos, como se tivesse procurando a palavra certa para dizer que... — Hei, não é nada disso que a senhora está pensando! — berrei quando entendi a referência.

— Eu não estou pensando nada — ela revirou os olhos, disfarçando. — É só que... bom, se ele deixou uma roupa aqui é porque tirou o resto.

— Vó, pelo amor de Deus! — gritei, desesperada com os pensamentos sórdidos que poderiam estar passando por aquela mente. — Ele deve ter tirado a jaqueta por causa do calor, não pense bobagem, pois o Davi é só meu amigo, ouviu? E ele estava só cuidando de mim, ok? E sabe por quê? Porque aqueles dois malucos me deram os SEUS calmantes no lugar dos MEUS remédios, e com isso acabei passando mal! — rebati efusivamente. — Senhor, eu quero morrer! — escondi o rosto com um travesseiro.

— Tudo bem, não precisa ficar nervosa — ela sentou ao meu lado e descobriu meu rosto. — Mas que foi engraçado pegar o garoto no flagra foi. Você tinha que ter visto a cara dele quando eu entrei aqui e vi vocês dois daquele jeito. Sério, achei que ele ia infartar — ela gargalhou e eu respirei fundo, mas logo acabei cedendo.

— O Davi é muito tímido — defendi. — E aposto que a senhora deve ter sido bem inconveniente, não é?

— Claro que não, eu fui uma dama — ela disse e lógico que não acreditei. — Mas, sabe o que foi mais legal? Ele estava realmente preocupado com você, acho que só foi embora porque estava muito tarde e ele tinha mesmo que ir.

— Sério? — suspirei e ela percebeu.

— Sério — aquela mulher linda e doida me olhou maternalmente e eu sorri, confirmando com esse sorriso tudo o que ela precisava saber. — Olha, Anna, não tenha medo de viver, ok? Só me prometa uma coisa. — pediu e eu fiquei séria, pronta para fazer o que ela pedisse. — Não me arrume um bisneto, por favor. E se precisar de camisinhas é só pedir!

— Vó! — berrei completamente constrangida enquanto escondia minha cara novamente. — Meu Deus, tem horas que eu queria que a senhora usasse sapatilhas ortopédicas e fizesse tricô todas às tardes ao invés de ser desse jeito — reclamei e ela deu uma risada alta.

— É, mas aí você não teria essa avó gatona! — ela disse, molhando o indicador na língua para logo depois apagá-lo no traseiro, como se ele estivesse quente.

— É o fim do mundo — revirei os olhos e ela, rindo, atirou uma escova de cabelo em mim.

*

— Amiga, como você está? Você não vem para a aula hoje? Espera aí que eu vou colocar o celular no viva-voz... — Andressa disse apressada e eu esperei. — Pode falar.

— Não, infelizmente ainda não vou.

— Mas hoje é sexta feira, se você não vier só vamos nos ver na segunda!

— Eu sei, mas não posso fazer nada. Embora esteja melhor, ainda não consigo comer direito.

— Isso é uma pena — era a voz de André.

— Que tal se a gente reunisse todo mundo no domingo à noite? — a voz era de Davi. Algumas imagens dançaram na minha cabeça e fiquei em silêncio total. — Anna, você está aí?

— Oi, Davi, estou — respondi, voltando.

— Então? — ele insistiu, sem mencionar os últimos acontecimentos, com certeza por causa da presença do casal. — Você acha que vai estar bem no domingo?

— Sim, mas não posso sair, pois tenho compromisso.

— Você não pode desmarcar? — Andressa pediu e a imaginei fazendo beicinho.

— Não dá. Tenho que vender uns bolos.

— Hãm? — todos perguntaram juntos.

— É que todo ano a associação dos moradores faz um arraial para arrecadar dinheiro para a creche comunitária. E a minha avó sempre faz uma porção de bolos, me deixando responsável pela barraca — expliquei. — Por que vocês não vêm ajudar? Vai ser divertido — convidei.

— Que legal! — Andressa respondeu. — Pode contar comigo e com o André. E você, Davi, vai?

— Claro — escutei-o responder e me peguei sorrindo. Seria bom estarmos todos juntos outra vez.

— Como a gente chega aí? — André perguntou.

E agora era só torcer para não nos metermos em nenhuma confusão.

*

— Anna, que saudade! — Andressa se atirou no meu pescoço assim que me avistou no arraial e, com o impacto, caímos no chão feito duas jacas maduras. — Está melhor? — perguntou ignorando as risadas dos outros, e eu torci para não ter quebrado nada.

— Antes estava. Agora... você... está... me esmagando! — reclamei e ela saiu de cima de mim, rindo como uma criancinha sapeca. Retirei um pouco de terra que estava no meu cabelo e ela me ajudou, pois também havia grama grudada na minha calça.

— E aí, quais as novidades? — ela logo quis saber. — Ah, depois você me conta. Adorei esse lugar! Vai ter danças? E aí, vendeu muitos bolos? — falava num ritmo frenético e eu mal podia acompanhar. André somente ria de nós duas e logo veio me dar um abraço, colocando a minha cabeça embaixo do seu braço e bagunçando meus cabelos com o punho fechado. Chutei a canela dele com força e ele gemeu.

— Foi bom te rever, doida — André disse. — E aí, cadê o Davi?

— Atrasado, como sempre. Ah, quero que conheçam umas pessoas — chamei e os aproximei da barraca. — Essa é a minha avó, Sarah, e esse aqui é o Conchito — disse apontando para cada um. — Vó, Conchito, esses são André e Andressa.

Eles se cumprimentaram e logo começaram a conversar, especialmente Conchito e Andressa. Ela perguntou pelo meu outro amigo, Jeferson, e expliquei que agora era ele quem estava com virose, por isso não havia vindo. Nós então passeamos, comemos, conversamos, vendemos bolos, voltamos a passear, e nada de Davi aparecer.

Provavelmente, ele não havia conseguido sair de casa aquela noite.

*

— Anna, acho que por hoje é só, já conseguimos vender tudo. Leve as vasilhas para o carro e você, Conchito, entregue o dinheiro que ganhamos — minha avó ordenou, enquanto retocava o batom. — Vejo vocês em casa, preciso encontrar o Alex — ela se despediu e Conchito foi logo atrás. Todos já estavam indo para perto de um palco, onde aconteceria uma brincadeira, e com isso fiquei sozinha, fechando a barraca.

— Você não guardou nada para mim? — alguém me perguntou e eu sorri baixinho.

— Gente que se atrasa não merece comer — falei, ainda de costas. Continuei a empilhar as coisas e só depois de tudo arrumado é que me virei para olhá-lo. — Mas, você bem que poderia me ajudar a levar isso para o carro — pedi e Davi refletiu o meu sorriso.

Ele então me acompanhou até o carro, carregando a maior parte das coisas, e me ajudou a guardar tudo, nós dois no mais completo silêncio. Somente depois de acabarmos é que enfim um de nós falou.

— Davi... eu gostaria de te pedir desculpas.

— Pelo quê?

— É aí que está o problema — ri desconcertada. — Não faço ideia do que houve, mas aposto que minha avó deve ter falado coisas que não devia.

— Ah, é isso? — ele gargalhou e a tensão que eu sentia se dissipou no ar. — Não se preocupe, eu consegui sobreviver.

— Bom, é que... ela pensou algumas besteiras...

— Pois é... — agora era ele quem estava desconcertado. — Mas até que foi bem engraçado. Não fique preocupada — disse e rimos. — E então, você está melhor? Como se sente?

— Agora estou bem. Obrigada por ter cuidado de mim.

— Foi bom cuidar de você — ele falou e eu mordi os lábios. — Ainda mais porque você ficou dizendo umas coisas bem engraçadas.

— Tipo o quê? — me apavorei.

— Tipo, teve uma hora em que você disse para eu não me esquecer de alimentar os seus Pokémons — contou. — E depois você perguntou quando é que eu te levaria para dançar um tango no programa da Fátima Bernardes — ele gargalhou com vontade e eu quase tive um treco.

— Seja lá o que mais eu tenha dito não leve a sério. Por favor, não acredite em nada que tenha saído da minha boca confusa.

— Em nada? — ele perguntou e me lembrei sobre ter dito que gostava dele. Respirei bem fundo.

— É, em nada — menti.

— Tudo bem — ele respondeu e continuamos a andar. Porém, não consegui seguir mais do que dois passos, pois logo vi uma pessoa que não gostaria de ter visto.

— Ai, que droga — disse, me escondendo atrás dele.

— O que houve?

— Não é nada.

— Como não? — ele ficou na minha frente. — Você está se escondendo desse jeito por que então?

— É que... — apenas olhei fixamente para um garoto, que estava parado na frente do carrinho de pipoca, e Davi acompanhou o meu olhar.

— Um ex-namorado? — perguntou.

— Deus me livre, que nojo.

— Então?

— É que esse infeliz se acha o gostosão só porque tem um monte de meninas atrás dele. Mas como eu nunca me rendi aos seus “encantos” ele fica me difamando, outro dia ele até chegou a tentar passar a mão em mim. E como eu chutei as bolas dele, ele agora vive me perseguindo — contei e Davi fez uma careta de raiva. — E agora, como vou passar sem que ele me veja? Se ele se aproximar de mim vou me meter em encrenca e minha avó vai ficar bem chateada.

— Acho que já sei — Davi agarrou a minha mão e me levou junto com ele. Então, quando passamos na frente de Rodrigo, ele passou o braço ao redor da minha cintura e fingiu que falava algo no meu ouvido, como se fôssemos um casal de namorados.

E eu gelei da cabeça aos pés.

— Ah, obrigada — me soltei dele quando chegamos na frente do palco.

— Disponha — ele disse, sarcástico, e eu corei. Perto dele eu ficava parecendo aquelas protagonistas bobas das fanfics que Andressa lia.

— Se bem que... — eu respirei fundo — eu detesto isso.

— Isso o quê?

— Um cara só respeitar uma garota porque ela está acompanhada de outro cara.

— Tudo bem então. Na próxima eu te dou cobertura para você chutar as bolas dele de novo — Davi piscou.

Em pouco tempo fomos avistados por Andressa e André, e logo Conchito se juntou a nós na frente do palco. A brincadeira que iria rolar consistia em arrecadar mais dinheiro através de um leilão simbólico, no qual o prêmio seria dançar uma valsa com a pessoa “leiloada”. Geralmente o próprio animador escolhia alguém que estava na plateia e essa pessoa era obrigada a ir até o palco. Eu adorava essa parte da festa, a cara de algumas pessoas envergonhadas me fazia rolar de rir. Porém, sempre tinha alguém que gostava de ir por vontade própria.

O tiozinho que animava o leilão começou dando “boa noite” e logo perguntou se alguém gostaria de se oferecer. Como sempre, todo mundo ria, mas ninguém se manifestava.

— Vou lá ajudar as criancinhas — André proferiu. — Sei que Andressa vai pagar bem pelo material — ele fez um olhar sensual e ela ficou com vergonha.

— Então, rapaz, qual o seu nome? — o animador perguntou assim que André subiu no palco.

— André Pinto dos Prazeres — ele respondeu e a galera foi a loucura.

— Minha sagrada Katy Perry, que nome mais divoso! A.D.O.R.E.I! — Conchito gritou e ninguém se segurou.

— Então vamos começar — o animador continuou. — Quem oferece dez reais para dançar com o senhor Pinto?

— Eu! — Conchito levantou a mão freneticamente. — Eu!

— Eu pago vinte — Andressa rebateu.

— Vinte e cinco — uma morena gritou. Andressa a fuzilou com o olhar

— Trinta — foi a vez de Conchito.

— Quarenta — Andressa berrou e me diverti muito vendo os dois disputarem o “bofe”.

— Quarenta e cinco — uma loira ofereceu e o povo gritou.

— Desisto, esse bofe tá muito caro — Conchito abanou as mãos.

— Setenta — alguém ofereceu e todos ficaram admirados. Olhei e vi que era a Joana, a cabeleireira da região. Ela e Conchito não se bicavam.

— Nem morta que eu vou deixar essa mega-hair de quinta ganhar de nós. Vamos, mona, diga quanto você tem aí que eu te ajudo — ele se uniu a Andressa para vencerem.

Dou-lhe uma...

Dou-lhe duas...

— Eu pago cento e dez! — Andressa berrou. Nunca alguém havia sido vendido por um valor tão alto, pois isso era apenas uma forma de diversão, então todos ficaram boquiabertos.

— Vendido para a mocinha ali! — o animador sentenciou e Andressa foi buscar seu prêmio. Conchito olhou para Joana e mandou um tchauzinho para ela.

Como a tal da valsa seria dançada apenas no final, o animador continuou a escolher as vítimas entre as pessoas. Nós nos divertimos muito quando duas irmãs se engalfinharam por causa do bonitão do bairro e quando um garoto espinhento só recebeu lances da própria mãe. Meu casal de amigos teve que ir embora bem antes de tudo acabar e por fim só restamos nós três: eu, Conchito e Davi.

— Agora vamos seguir em frente — o homem no palco deu continuidade. — Deixa eu ver... — ele seguiu olhando para a plateia e parou.

Parou em mim.

PUTA QUE PARIU!!!

— Eu não vou pagar esse mico! — gritei, mas fui ignorada, pois Conchito fez questão de me arrastar até o palco como se eu fosse uma vaca indo em direção ao matadouro.

— Qual o seu nome, belezinha? — o homem perguntou. Nessa hora desejei ter nascido uma avestruz, assim eu poderia enfiar a minha cabeça no buraco mais próximo sem nenhum problema.

— Anna... Fernandes.

— Ok, vamos aos lances. Quem aí oferece dez reais para dançar como a senhorita Anna?

— Eu pago! — Conchito iniciou.

— Eu dou vinte — era um senhorzinho com cara de safado e eu fiz uma careta.

— Eu pago vinte e cinco — ofereceram. Dessa vez era um carinha bonito e eu quis que ele me levasse.

— Eu pago trinta — alguém falou. Na mesma hora fiquei desesperada ao constatar que era Rodrigo, o idiota que eu já havia chutado as bolas.

Essa não.

— Alguém dá mais? — o homem perguntou e ninguém mais falou, me deixando completamente enfurecida. Pedi ajuda para Conchito com o olhar e ele pôs os bolsos para fora da calça, mostrando que não tinha mais dinheiro.

— Eu pago cinquenta — disseram, para o meu alívio. E quando eu vi quem havia falado meu coração deu um salto.

Davi estava me ajudando.

— Sessenta — Rodrigo levantou a mão, me lançando um sorrisinho nojento. Se ele encostasse em mim eu arrancaria o seu p...

Dou-lhe uma...

Dou-lhe duas...

— Duzentos! — Davi ofereceu, lançando um olhar tão feroz para Rodrigo que ele ficou quieto, provavelmente como medo dele ser alguma espécie de ninja assassino. — Duzentos e vinte — corrigiu, e quando percebeu que todos o fitavam, se encolheu e coçou a cabeça.

Definitivamente eu ia ter um treco.

— Uau! — o animador continuou após o susto. — Acho que agora temos um recorde imbatível! Bom, garoto, venha buscar o seu prêmio! — o homem falou e eu continuei estática.

Davi subiu e me tirou de lá pela mão, pois eu nem saberia como andar sozinha. Assim que descemos minha pressão começou a baixar pelo susto e minhas mãos ficaram tão geladas que ele percebeu.

— Espera aqui — foi a única coisa que Davi disse. Minutos depois, ele voltou com uma garrafinha de água mineral e me deixei levar quando me tirou dali, aliviada por estar indo para longe da multidão.

— O Conchito vai ficar preocupado — falei sem saber para onde olhar, assim que sentamos em um banco bem distante.

— Eu avisei para ele que você não estava bem e que precisava de ar.

Grilinhos faziam um cricricricricri...

— Anna?

— Oi?

— Você está bem?

— Aham.

— Tem certeza?

— Sim — respondi. — Graças a você sim — pensei no que ele havia evitado, pois se Rodrigo se aproximasse de mim no mínimo ia rolar uma confusão mais feia do que briga de foice... — Ah, é que eu não faço ideia de como vou te devolver todo esse dinheiro, senhor magnata — brinquei pra amenizar o clima. Davi riu e eu senti todos os caquinhos do meu coração se unirem novamente.

— Como assim devolver? Ora, eu paguei por uma dança, então acho que tenho direito a ela — ele se levantou e ofereceu sua mão para mim.

Não pude evitar sorrir também e a aceitei. Era macia, quente e suave, mas ao mesmo tempo ele segurava forte o suficiente para não me deixar cair. Forte o suficiente para me fazer sentir que eu gostava daquilo.

Gostava dele.

Levantei-me e ele me trouxe para junto de si, envolvendo minha cintura delicadamente com a mão livre, quase sem me tocar. Porém, antes mesmo que fizéssemos qualquer movimento, pisei em seu pé.

Acho que aquela foi a primeira vez na vida que eu desejei ter nascido mais delicada.

E que houvesse menos espaço entre nós.

— Desculpe, mas eu não sei dançar — pedi.

— Deixa que eu te ensino. Sou um dançarino quase profissional.

— Ah, é? — debochei. — Isso por acaso é um talento oculto? O que mais você esconde de mim?

— Muitas coisas. Mas com você eu fico bem o suficiente para ter coragem de contar.

Nós nos olhamos, sem ter mais nada para dizer, e por causa disso procurei refugiar meu rosto envergonhado na curva do seu pescoço. Ele começou a nos embalar suavemente e me deixei levar, mesmo que não houvesse música nenhuma tocando naquele momento. Retirei a minha mão que estava na sua e envolvi meus braços em torno do seu pescoço, meus olhos já completamente fechados. Aspirei seu cheiro e era maravilhoso, uma mistura gostosa de sabonete e loção para bebê.

Estar ali, tão próxima dele daquele jeito, parecia completamente surreal.

E eu queria ficar ali para sempre.

— No que você está pensando? — ele perguntou e o seu hálito morno em meu ouvido me causou um arrepio gostoso. Aliás, todas as sensações que eu sentia naquele momento eram uma novidade simplesmente maravilhosa.

Então, no que eu estava pensando?

Eu estava pensando no quanto as coisas surgem em nossas vidas e nos modificam para sempre, e no quanto eu estava serena e feliz, apesar de tudo, só por estar ali em contato com o corpo dele. Eu estava pensando em como gostava de cada toque dele sobre a minha pele e de como aquela noite estava sendo especial, pois eu tinha reunido as pessoas que eu gostava num mesmo ambiente e milagrosamente elas haviam se dado bem.

Porém, como eu não respondi, ele perguntou novamente, mas dessa vez se afastando e me olhando nos olhos. Minhas mãos agora estavam espalmadas em seu peito e eu podia sentir as leves batidas do seu coração, que à medida que os segundos passavam iam ficando mais agitadas. Comecei a pensar no que aconteceria se nós continuássemos daquele jeito e cheguei a uma conclusão.

— Eu estou pensando que... — aqueles olhos tão escuros, tão bonitos, não me deixavam raciocinar. Então, olhei para a sua boca e imaginei algo que não devia. — Droga, Davi. Eu odeio você.

— Odeia? — ele perguntou, confuso. — Por quê?

— Porque... — respondi, agora sem tirar os meus olhos dos dele. — Porque agora eu estou morrendo de vontade de beijar você.

Meu coração falhou quando percebi o que havia acabado de dizer. Minha respiração ficou entrecortada e se fosse possível, realmente, alguém morrer de vergonha, eu teria morrido naquele instante. Esperei que ele risse, dissesse algo ou até inventasse uma desculpa para ir embora, mas ele permaneceu com os braços em volta do meu corpo e com uma expressão de quem procurava em mim uma nota de brincadeira.

Mas eu não estava brincando.

E ele percebeu isso.

Parei de me mexer e até de respirar, me transformando em uma estátua de apreensão. Porém, me surpreendi quando Davi foi lentamente me puxando para junto de si, unindo nossos corpos ainda mais, e com isso eu fiquei sem saber o que fazer. Ele fechou os olhos e encostou sua testa na minha, seu nariz raspando levemente o meu. Um sorriso brotou em sua boca e eu apertei a gola da camisa dele, tentando acreditar que éramos apenas amigos e algo equivocado estava acontecendo ali.

Pensei nisso com toda força.

E até acreditei.

Mas esqueci tudo no mesmo instante em que ele se inclinou e depositou seus lábios sobre os meus.

E eu descobri, finalmente, que gosto Davi tinha.

Era doce como... maçã do amor. A boca dele era macia e, sinceramente, foi uma das melhores coisas que eu provei na vida. Ele me apertou de um jeito forte, mas apesar de ter tomado a iniciativa parecia que estava com medo de seguir em frente, pois continuou apenas com os lábios entre os meus sem fazer mais nenhum movimento.

Confesso que pensei em interromper o que estava acontecendo, pois eu não fazia ideia de como ficaria nossa amizade dali para frente. No entanto, nada nunca mais seria o mesmo entre nós, por isso eu devia mais era aproveitar o momento.

E eu aproveitei.

Coloquei a minha mão atrás da sua nuca e puxei seus cabelos, envolvendo suas costas com a minha outra mão e diminuindo ainda mais o espaço entre nós. Aprofundei o beijo e logo Davi colocou a língua dele dentro da minha boca, e eu juro, juro que escutei violinos tocando quando eu a senti tão quente. As mãos dele passearam pelas minhas costas e eu gemi quando ele segurou na minha nuca também, de um jeito que eu não imaginei que ele faria. Sua timidez simplesmente foi embora e ele não parecia mais em nada com o velho Davi de sempre, pois a maneira como ele me tocava me deixou completamente insana.

Ele sentia o mesmo que eu.

E isso era maravilhoso demais.

Eu não esperava que beijá-lo fosse ser assim tão intenso, pois ele era o tipo de garoto quieto e calado demais. No entanto, o que estava acontecendo ali era algo muito louco, pois eu nunca havia me sentido daquela forma. E fiquei até com medo.

Boas garotas não deviam pegar fogo daquele jeito ao beijar alguém.

Quando enfim nos afastamos – depois de muito tempo –, desviei os meus olhos do dele e Davi foi me soltando aos poucos, como se não quisesse acabar com o momento. Eu estava ligeiramente envergonhada pelo que havia acabado de acontecer, porém, nem um pouco arrependida. Ele então sorriu para mim aquele sorriso torto que eu já amava desde o primeiro dia e eu soube que estávamos bem.

Ô, se estávamos.

Quem disse mesmo que eu era uma boa garota?

— Nossa... — falei porque era a única coisa a ser dita.

— Então... — sua respiração tão ofegante quando minha, sua mão agora fazendo carinho nos meus dedos.

— Pois é...

O que se diz depois de algo assim?

— Eu... — ele começou a falar. Em sua boca, aquela expressão zombeteira de sempre. Passada a erupção vulcânica, agora somente as cinzas amenas pairavam sobre nós. — Anna, eu...

Um toque de celular quebrou por instantes a nossa bolha. Nós ignoramos e continuamos a nos olhar, aquele silêncio tímido e ao mesmo tempo cheio de palavras. O barulho começou a ficar estridente e a incomodar, deixando Davi um pouco irritado, e com isso acabamos nos soltando de vez.

— Me desculpa — ele gaguejou totalmente sem graça.

— Tudo bem — eu fiz uma expressão neutra.

— Droga — Davi xingou e eu virei de costas, dando privacidade a ele para falar com quem quer que fosse, e também para ganhar um pouco mais de tempo para reorganizar minha cabeça. Ele atendeu o celular e ficou alguns segundo apenas repetindo: "Já? Essa não. Tá bom, Maria, eu estou indo. Ok. Tá. Tchau."

— Eu preciso ir — ele chamou e eu voltei a olhá-lo. Davi então pegou as minhas mãos e entrelaçou às suas. — É que meus pais saíram e eu vim escondido mas eles estão voltando e se eu for pego fora de casa vai ser aquele inferno então eu pedi para a Maria me avisar porque eles sempre avisam quando estão chegando para que... — articulou de uma vez, sem respirar. Coloquei o indicador em seus lábios e o fiz se calar.

— Não precisa explicar — o tranquilizei.

— Mas... — ele continuou, parando um pouco para pensar. — O que vai acontecer se eu for embora agora?

— Não sei — respondi. — Acho que então teremos um assunto inacabado.

— E o que isso significa? — Davi me olhou daquele jeito que me fazia esquecer de tudo e eu mordi os lábios, divertida.

— Significa que, da próxima vez que nos encontramos, teremos que reiniciar tudo de novo. E aí, só então, vamos poder conversar sobre o que aconteceu.

— Eu vou esperar por você, Anna. Por favor, não fuja.

— E você não se atrase — entrei na brincadeira. — Até mais.

— Até — ele se despediu e me puxou novamente, só que dessa vez o beijo foi muito mais delicado, sutil. E nessa hora eu não pensei em mais nada, somente em como as situações, mesmo as mais loucas, parecem que sempre acontecem com uma função maior. — Sabe, Anna, mesmo que amanhã você esqueça tudo, ou mesmo que você decida nunca mais falar comigo, eu só queria te dizer que essa foi a melhor noite da minha vida — ele sussurrou e eu sorri.

— Eu não vou esquecer disso, Davi. Acho que estamos ferrados agora.

— É, eu sei — ele apertou os olhos e respirou fundo. — Tchau.

— Tchau — o soltei devagar e ele enfim foi embora, se virando para acenar para mim apenas quando já estava distante.

— Tchau, Davi — eu sussurrei, tentando assimilar os últimos acontecimentos.

E, definitivamente, depois daquela noite, eu não conseguiria mais dormir tranquilamente como antes.

 


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