Afterlife escrita por Leandro Zapata


Capítulo 9
Nova Jerusalém




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Tudo naquela cidade me impressionou. Imagine uma cidade do Rio Grande do Sul onde todas as casas são bonitas e bem trabalhadas; onde as ruas são perfeitamente limpas e bem cuidadas. Nova Jerusalém parecia um pouco com essas cidades, a única diferença é que tudo era trabalhado com ouro, prata, bronze e pedras preciosas. As ruas daquela cidade eram feitas de ouro, as calçadas de prata e bronze. Não havia um arranha-céu, todos os prédios tinham no máximo cinco andares. Notei que não havia sombras. A luz, por alguma razão, estava em todos os lugares. Não havia uma fonte de luz, como o sol.

A cidade era cercada por muros tão altos quanto montanhas. Havia dezenas ou centenas de torres de vigilância. Cada torre tinha um anjo imponente com asas maiores do que as de Rachel, que pareciam com as asas de uma águia. As asas desses anjos tinham uma curvatura que ia sobre suas cabeças e as pontas inferiores chegavam a tocar o chão. Nenhum deles parecia ter menos de dois metros de altura.

– Arcanjos. - Disse Týr do bolso da calça. Eu mal podia ouvi-la. - Esses são arcanjos. São os segundos na escala dos anjos. São tão poderosos como mil anjos, mas não tanto quanto querubins.

Não respondi.

As pessoas daquela cidade estavam felizes e sorridentes. Pareciam não ter problemas, e provavelmente não tinham mesmo. Estavam no Paraíso, quais problemas poderiam ter? Continuei andando e atravessando a cidade e olhando.

– Precisamos sair rápido daqui. A presença de Deus aqui é mais forte que em qualquer outro lugar do Paraíso.

– Para onde temos que ir mesmo? - Eu sussurrei. Espero que ela tenha ouvido

– Stonehenge. Temos que chegar à dimensão do mestre.

– E porque exatamente?

– Você não entendeu nada do que eu falei no Corredor das Memórias?

– Na verdade, não. - Eu disse sinceramente.

– Enfim, Stonehenge é o único templo da Morte. Por ele se é capaz de entrar na dimensão da Morte, o seu Castelo. É um lugar que não está nem na Terra nem no Paraíso nem no Inferno. Stonehenge foi originalmente construído aqui no Paraíso, mas a Morte também fez um na Terra, pois a maioria do seu trabalho é feito lá, mas o de lá foi destruído por ser considerado um templo pagão.

– Certo. Entendi. Então temos que ir para lá para falar com a Morte?

– Exatamente, porém não podemos...

A voz dela foi diminuindo aos poucos, sumindo na minha mente. A razão de isso ter acontecido foi o que vi. Em um dos prédios na cobertura eu vi algo que me tirou o fôlego. Era uma garota com cabelos castanho-claros e com luzes, lisos e soltos sobre os ombros. Os olhos no mesmo tom original do cabelo, só que um pouco mais claros. As feições de seu rosto eram arredondadas, e a franja caía fazendo o contorno do seu rosto. Ela tinha os lábios fartos. Contudo, naquele momento ela estava um pouco descabelada e vestia um pijama, como se alguém a tivesse tirado da cama às pressas. Apesar de sua roupa ser larga, eu conhecia bem as curvas do corpo dela para saber que ela não era muito magra, nem muito gorda.

Aquela era Elena.

Corri o mais rápido que pude em direção àquele prédio, empurrando as pessoas com os braços. Elas estranhavam e davam gritos de susto. Aparentemente correr não era algo comum no Paraíso. Abri a porta do prédio com força e subi os cinco lances de escada pulando de dois em dois degraus. Cheguei ao topo ofegante. Abri a porta do terraço com tudo, ela bateu com força na parede. Olhei para os lados desesperadamente procurando por ela. Mas o terraço estava vazio. Týr estranhou e saiu do bolso voando, ela estava confusa.

– Que merda você esta fazendo?! - Ela parou bem próxima ao meu rosto, olhando bem nos meus olhos. - Por que correu daquele jeito?!

– Eu vi a Elena aqui em cima.

– Quem?

– Elena. Minha namorada... Ou ex. Sei lá, depois que morri não sei como está nossa situação.

– Mas como ela estaria aqui se ela ainda está viva? - Ela parou de voar e pousou no meu ombro. As marcas de sua estadia no dragão ainda pareciam vivas e doloridas, mas sob controle. Ela parecia estar exausta.

– Eu não sei. Mas posso jurar que ela estava aqui. Eu tinha certeza... - Eu estava de certa forma decepcionado. Eu queria tanto vê-la de novo. Mas de certa forma eu estava aliviado, porque se ela não estava ali era porque estava viva. Meus sentimentos e minha mente ainda estavam num turbilhão. Era muita coisa para absorver em pouco tempo.

– Leo... Posso te chamar assim? - Ela não esperou uma resposta. - Eu não sou humana, então não entendo dos sentimentos humanos. Nós, fadas, temos muito pouco interesse sobre a raça de vocês ou qualquer outra, mas já vivi bastante tempo para saber que nem tudo é como queremos. Mas quem sabe um dia vocês não se encontram de novo.

Ela parecia sincera. Dei um sorriso triste e ela voltou para o meu bolso.

Saí do prédio de cabeça baixa e pensando. O que será que aconteceria dali para frente? Nós precisávamos encontrar a Morte; e depois? O que faríamos?

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Elena, que estava deitada, sentou na cama assustada, ofegante e suando frio. A estátua de Anúbis estava sendo espremida pelos seus dedos. Ela jogou a estátua no chão, o que não lhe causou nenhum dano. O que diabos tinha acabado de acontecer? A Morte disse que Leonard não seria capaz de vê-la, mas observando-o do alto daquele prédio naquela linda cidade ele olhou diretamente nos olhos dela! Ele a viu! E correu na direção dela! Ela não queria ter abandonado o prédio, queria ter esperado por ele, mas algo a expulsou daquele prédio. O que era?

Ela foi até o banheiro e lavou o rosto. Passara das três da manhã. Todos na casa estavam dormindo. Voltou ao quarto, pegou a estátua no chão e deitou. Aquela era a terceira vez que usava a estátua para observar Leonard. Na primeira ele estava no Jardim do Éden, estava em uma fila enorme e algumas criaturas que ela deduziu serem anjos estavam tentando amarrar um dragão. Na segunda ele estava num corredor imenso e tinha uma fada sentada em seu ombro. Elena estranhou a fada, achou até um pouco engraçado, mas logo se acostumou. Eles conversavam. Ficaram assim por um tempo, então ela resolveu voltar à realidade. Sua mãe dirigia de volta do enterro.

E então agora. Quando estava indo dormir depois de um dia triste. Mas ela não pretendia vê-lo, apenas adormeceu com a estátua na mão. E sonhou com ele. Será que essa era a diferença? Vê-lo normalmente não permite que ele a veja, mas se for sonhando ele é capaz de vê-la? Se sim, seria capaz de tocá-la? Ela ficou intrigada por um tempo. Pensativa. Resolveu adormecer com a estátua em sua mão. Ela sonhou, mas não foi com ele.

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Eu cheguei ao outro portão da cidade exausto. Mas eu parecia ser o único exausto. Talvez o fato de eu lembrar-me o que é exaustão me permitia senti-la. Provavelmente todas essas pessoas tinham a vida eterna e não se cansavam nunca. Será que eu tinha a vida eterna? Ou será que eu poderia morrer? E se morresse, para onde iria? Enfim, eu não sabia. E talvez nunca chegasse a saber. Eu nem sabia se tinha inimigos naquele lugar.

Esses pensamentos dominaram minha mente em toda a caminhada cruzando a cidade. Quando cruzei o portão da cidade novamente o ar mudou. Quase literalmente. Enquanto estava dentro da Nova Jerusalém me sentia feliz, completo, mas ao sair dela parecia que eu estava normal. Não sentia mais aquela luz. Era como se eu estivesse na Terra de novo. Notei que agora a luz fazia sombra e que havia uma fonte de luz, mas não era o sol. Era algo muito alto no céu e não possuía forma. Perguntei-me se no Paraíso havia noite, lua e estrelas.

– Alguma ideia de como vamos chegar até a Inglaterra sem pegarmos um avião? - Týr disse do meu bolso.

– Temos que ir de carro, ou de ônibus, obviamente. - Eu disse.

– Claro que não vamos ter como pegar um ônibus aqui direto para lá. Temos que chegar a alguma cidade principal.

– Tel-Aviv. É uma das cidades mais importantes de Israel. Temos que chegar até lá, então poderemos alugar um carro.

Andei pela cidade perguntando onde era a rodoviária mais próxima. Foi então que me veio à mente que mesmo eu falando português com eles, eles me entendiam. No Paraíso não deve haver separação de línguas. Todos devem entender o que qualquer um fala, esteja a pessoa falando japonês, inglês ou africano.

Caminhei algumas horas até finalmente encontrar a rodoviária. Não precisei pagar pela passagem ou comida. Por que as pessoas trabalhavam se não precisa ter dinheiro? Aquilo soava estranho para mim. Mas naquele mundo não havia malícia, exceto por mim. As pessoas trabalhavam pelo prazer de trabalhar, por diversão. Tinham em mente que nada daquilo pertencia a eles, que tudo é de todos. Repartiam o que possuíam com prazer. Isso era bom. Por que então será que a Morte quis me colocar aqui? Será que ele quer destruir um sistema tão magnífico e belo? Com qual propósito?

Entrei no ônibus e sentei no meu lugar designado, que era o último na fileira da direita na janela, peguei a passagem da poltrona ao lado também, assim se Týr quisesse sair para tomar um ar ela poderia e conversar comigo também, sem que eu parecesse um louco falando sozinho - pelo menos em minha cabeça, por que ninguém seria capaz de vê-la. Abri minha Coca-Cola de 600 ml, tomei um pouco e coloquei no porta-copo. Abri o saco de doritos e comi. Eu estava pensativo. Pensava somente em Elena e em como sentia falta dela. Eu não sabia há quanto tempo eu não falava com ela - um dia, uma semana talvez? Não fazia diferença, para mim parecia uma eternidade de qualquer forma.

Quando eu estava vivo costumávamos ficar horas conversando por celular a noite. Algumas vezes não tínhamos nada para falar, mas não desligávamos, ficávamos apenas curtindo o silêncio um do outro até dormimos - ela me disse algumas vezes que meu silêncio era o único confortável, que não havia necessidade de falar; isso era bom porque eu não sou uma pessoa que gosta de falar muito - e quando acordávamos dizíamos bom dia. Eu sentia como se estivéssemos dormindo na mesma cama. Senti uma dor no peito. Seu sorriso era tão lindo. Toda vez que eu a fazia sorrir eu sentia meu mundo completo e feliz. Fazê-la sorrir daquela forma todos os dias, esse era meu maior sonho. Mas agora de uma hora para outra tudo acabou. Ou não? Será que algum dia eu irei abraçá-la de novo?

– Leo! Você está me ouvindo?! - Týr estava voando na minha frente - No que você está pensando?

– Nada. O que foi? - Os ferimentos dela pareciam bem melhores.

– Estou com fome, e você está comendo todo o doritos!

– Desculpa. Pega um pouco.

Ela pegou um. O dorito era do tamanho do dorso dela. Eu contive um sorriso.

– O que foi? - Ela perguntou. Rabugenta como sempre.

– O dorito é do seu tamanho.

– E dai?

Eu ri. - Você é sempre rabugenta assim?

– Cala a boca. Espero que quando chegarmos a Stonehenge o mestre me libere. Você me irrita.

– Eu te irrito como?

– Você quase não fala, está sempre com essa cara triste e não entende metade das coisas que eu falo.

Eu fiquei quieto. Ela não entendia minha dor. Ela não sabia como era perder alguém da forma que eu perdi. Tudo bem que quem morreu fui eu, mas ainda assim. Eu sentia falta dela do mesmo jeito que ela deveria estar sentindo de mim.

– Viu! Exatamente o que eu estou falando! Você do nada fica quieto. Eu queria que você deixasse ler a sua mente.

– Eu sei. Eu sou assim mesmo. Uma hora você acostuma.

– Hunf.

Ela estava de mal humor. Mas acho que esse era o jeito dela. Uma hora eu acostumo também.

Meia hora mais tarde nós chegamos à Tel-Aviv.

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Estreito de Bering, lado Russo, Paraíso

O barqueiro que guardava o píer terminou de amarrar o barco feliz da vida enquanto cantarolava. Ele estava no Paraíso! E justamente por isso ele não notou o imenso lobo cinza caminhando em sua direção. Ele também não notou que o lobo tinha cada olho de uma cor. O direito era azul e o esquerdo preto. Quando ele finalmente notou a criatura, quando ela já estava no começo do píer, não se importou. Os animais não atacavam os humanos ali. Era como se todos fossem domesticados.

O barqueiro se assustou quando o lobo avançou rapidamente. E com um grito ele sentiu os dentes do lobo no seu pescoço. Mas ele não sentiu dor alguma. Ele nem ao menos sangrou. Almas não possuem corpos. Suas formas são apenas reflexos de suas vidas na Terra. Ele desapareceu no ar sem deixar nenhum vestígio.

O lobo começou a mudar de forma. Ficou sobre as patas traseiras, as patas dianteiras viraram braços, o focinho encolheu e as orelhas arredondaram. Em poucos minutos ele estava na forma humana. Ele sorriu maliciosamente e andou até o final do píer, onde um barco imenso estava atracado. Aquele barco era diferente dos demais. Ele não era feito de metais conhecido pelo homem. Ele era feito para navegar em um lugar muito especial onde poucos navegaram. O Abismo.


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