Tetris escrita por Stefani Niemczyk


Capítulo 4
Nem nerd, nem designer, nem gay.




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Cheguei em casa sem saber o que pensar. Mas isso não significava que eu estava com a cabeça vazia. Na verdade, era o contrário. Havia muita coisa passando em minha mente ao mesmo tempo, da forma mais desordenada possível.

Tirei os sapatos e caí no sofá. Tentei me organizar. Mentalmente.

Eu não tinha amigos. Ok, chorei por isso ontem. Acordei decidido a mudar. Tentei, mas as experiencias e, eu diria, minha intuição me provaram que esta não era a resposta. Não havia saído como eu esperava. Não havia sido produtivo.

Pensei nas outras pessoas no trabalho. Me esforcei, mas não consegui pensar em ninguém que, de fato, pudesse ser uma amizade em potencial. Procurei lembrar das pessoas que conhecia fora do trabalho. Não eram muitas, mas, não custava tentar. Mesmo assim, não parecia que eu encontraria nelas um amigo.

É como eu disse. Eu podia fingir me interessar por assuntos que não me interessam para andar com alguém, conversar com alguém, sair com alguém. Mas eu sabia que minhas atitudes seriam falsas, minhas emoções seriam falsas e eu me sentiria da mesma maneira de ontem toda vez que chegasse em casa.

Também não queria que ninguém me convidasse para sair porque ficaria com pena de não me chamar. Não quero parecer - nem ser - um coitado. Isso não estabeleceria uma relação saudável, sem falar que, eu estaria vivendo uma ilusão.

Como as pessoas conseguiam encontrar amigos de verdade com tanta facilidade? Sem ao menos tentar, apenas pela "sorte" de estarem no mesmo local ao mesmo tempo e terem interesses em comum.

Interesses em comum.

Talvez fosse isso o que faltava em mim. Interesses que interessassem as outras pessoas. Eu podia conversar sobre qualquer assunto, mas as coisas que realmente atraíam a minha atenção eram consideradas "infantis" e "coisa de desocupado" pelos outros.

Não, não estou querendo dizer que não tenho culpa e os outros estão errados. Mas é que, no Brasil, games e quadrinhos são imediatamente assuntos associados à crianças. Ou a adultos imaturos.

Eu sabia que existiam feiras e convenções que reuniam fãs de HQs, jogos e todo esse mundo chamado "nerd" ou "geek". Já pensei em ir em uma dessas, mas quando via vídeos e notícias destes eventos, eu não me sentia tão inserido nessa atmosfera. Aquelas pessoas sabem MUITO sobre quadrinhos, MUITO MESMO sobre games, MUITO sobre animes, séries, filmes underground e tal, mas eu não era assim. Eu gostava do básico, conhecia o básico. Também não entendia a graça de passar meses fazendo uma fantasia perfeita de Naruto.

Eu também gostava de desgin, óbvio. Várias vezes eu me pegava olhando para o design de móveis, canetas, talheres, carros, frascos, copos e várias outras coisinhas. Também ficava mentalmente julgando as revistas, panfletos e sites que via. Mas isso é algo que só interessava a designers. Poderia até ser que alguém gostasse dessa área, mas, se não fosse designer, não seria uma conversa longa.

Na faculdade não fiz amigos e, logo que me formei, entrei na empresa onde trabalho. Eu era o único designer lá e não conhecia outros. meu networking, numa escala de zero à dez, estava a baixo de zero.

Haviam, também, eventos sobre design, mas eram mais focados na parte acadêmica e eu já estava fora da universidade há dois anos. Não daria certo.

Talvez eu devesse praticar algum esporte. Poderia conhecer alguém lá.

Não, isso não seria bom. Eu não gostava de esportes e começar qualquer atividade só para encontrar amigos seria um tiro no próprio pé. Eu pareceria um desesperado. Sim, eu sou, mas os outros não precisavam saber.

Lembrei do almoço daquele dia. O Carlos, o Paulo e o Fábio eram amigos. Não sei se iam um na casa do outro em fins de semana e faziam churrascos juntos, mas, pelo menos na hora do almoço, conversavam e se sentiam melhor. Davam umas risadas, paravam de pensar no trabalho, se sentiam acolhidos. Mesmo que por uma hora.

Para mim, isto já estava bom. Não precisava de uma companhia que ficasse vinte e quatro horas grudada em mim. Talvez fosse alguém que só entrasse em contato comigo algumas poucas horas do dia. Mas que fosse verdadeiro, que fizesse eu me sentir à vontade, que me fizesse rir de verdade e me sentir importante.

Lembrei daqueles dois garotinhos do condomínio. Eu não sabia se eles seriam amigos para sempre ou, pelo menos, por um bom tempo, mas eles eram amigos. Ainda iriam crescer, tinham muita coisa pra mudar, mas ali, naquele momento, eram grandes amigos.

Por que era tão difícil?

Então eu lembrei da risadinha deles. Olhando para mim e gargalhando por eu ser gay. Por um lado, fiquei feliz de estarem se divertindo e terem com quem compartilhar essa risada. Por outro, fiquei triste por estarem rindo de alguém por ser gay.

Gay.

Isso era outra coisa que me impressionava em mim mesmo. Eu era gay e não conhecia nenhum gay. Quando eu via garotos gays na rua, sempre estavam com alguém. Fosse um amigo, uma amiga ou um grupo. Era difícil ver um cara gay que andasse por aí sozinho.

Esta imagem também se solidificava quando eu via alguma matéria sobre LGBTs na TV. Eram sempre grupos em festas, paradas e tal. Parecia que os gays - e, claro, isso se estende a todas as outras letras daquela sigla - automaticamente se aproximavam. Simplesmente por serem gays.

Não eram pelos hábitos, pelo gosto musical, pelas roupas, pelos esportes, pelas profissões... Apenas por serem uma "minoria". Claro que exista quem diga que ser gay implica num "estilo de vida gay". Este estilo de vida, supostamente, seria um conjunto de normas, hábitos, práticas e gostos que as bichas tem em comum.

Usar roupa colada, viver em festas, gostar de "divas" internacionais, falar gírias típicas desse nicho, conhecer marcas de roupas, falar palavras em inglês no meio das frases, frequentar academia, procurar outros viados com aplicativo de celular, etc...

É claro que esta imagem realmente se encaixava em boa parte dos gays. Mas eu não acreditava que eram uma regra. Não acreditava porque sabia que não era. O que eu sabia era que EU não pertencia a esse grupo. Não fazia nem ao menos metade dessas coisas.

Sei que é uma visão estereotipada. Tudo quando se trata de "grupos" é uma visão estereotipada. Mas, querendo ou não, todo estereótipo vem de uma predominância. E, se esse era o estilo predominante, este nicho não era para mim.

Será que esse era meu problema? Ser uma pessoa que não se encaixava em nenhum rotulo?

Os caras da empresa se encaixavam na imagem do "brasileiro de cinquenta anos heterossexual de classe média". Falavam da esposa, dos filhos, da casa, dos pais, de futebol, de mulheres, de carros, de fórmula um, de UFC, de política, etc...

Talvez eu não me encaixasse em estereótipo nenhum. Não era designer o suficiente para ser um designer, não era nerd demais pra ser nerd nem gay demais pra ser gay.

Geralmente, as pessoas que se sentiam assim eram orgulhosas disso. Adoravam dizer que não se encaixavam em nenhum padrão e, sem perceber ou querer, acabavam constituindo um próprio grupo, o dos "undergrounds".

Eu não era nenhum desses. Não estava feliz por ser diferente. Na verdade, eu queria era ser igual a todo mundo. Gostar do que todo mundo gosta, fazer o que todo mundo faz, na mesma intensidade. Talvez assim eu já teria encontrado amigos há muito tempo.

Havia, também, um outro problema que me cutucava quando a questão era o "mundo gay". Minha vida amorosa/afetiva/sexual.

Eu nunca havia me apaixonado por cara nenhum. Talvez porque eu mal conhecesse as pessoas. Também nunca havia ficado com homem algum. Eu não frequentava ambientes LGBT nem procurava por sexo. Além disso, eu apenas sentia falta de um namorado quando eu estava tendo momentos de crise. Isso me fazia pensar que eu não queria um namoro, mas só alguém pra fazer com que eu me sentisse melhor quando estivesse triste. Isso é tão egoísta!

É incrível como os gays entram no "mundo gay" com tanta facilidade. Muitos deles começam a ir em baladas sem ao menos serem assumidos. Quando assumem, é porque encontraram um namorado. Os poucos gays que já havia conhecido eram festeiros, loucões e extrovertidos. Assim como o Iago. Ele era o gay que havia na minha sala da faculdade.

Será que esse era meu problema? Eu nunca havia ido a uma balada gay antes. Talvez fosse lá que os viados conhecessem outros viados e formassem seus bandos para andarem por aí. Afinal, como esta descoberta começa na adolescência e não dá pra ficar andando com bichas sem que os outros descubram que você também é uma, eles tem que se reunir em um lugar sem os olhos de quem reprime.

Sinceramente, não poderia ser isso. Eu já havia ido em algumas festas da faculdade e não dava para conversar lá. Era tudo escuro com uma luz forte piscando na sua cara enquanto pessoas suadas derramavam cerveja em você. Definitivamente, não era um ambiente para fazer amigos.

Também não poderia ser isso porque, se um adolescente não assumido tinha que ir numa balada gay para conhecer outros gays, ele automaticamente seria "tirado do armário". O que eu quero dizer é, se todo mundo sabe que a balada é para gays, é óbvio que ele é gay.

Claro, isso explica a quantidade de mentiras que vários pais ouvem todos os dias, mas, mesmo assim, se alguém os visse, mesmo que fosse na fila, já seria um desastre.

Mas e o assumidos? Se alguém os visse lá, não haveria problema. O problema era que ninguém ia a baladas gays para fazer amizade. A maioria dos caras queria sexo.

Neste momento, me senti hipócrita. Eu estava falando sem saber exatamente como era uma balada gay. Mas não podia ser muito diferente de baladas hétero. Afinal, eram tudo pessoas. Se não dava para ver ninguém por causa do escuro nem escutar a conversa por causa da música, o único objetivo era ficar esfregando língua com algum qualquer.

Comecei a me sentir culpado. Culpado e mais hipócrita ainda. Eu estava reclamando por não ter amigos com os mesmos interesses que os meus sendo que eu nunca procurei amigos nos locais certos.

Eu nunca havia ido a uma convenção geek. Nunca havia ido a um evento de design. Nunca havia ido a uma balada gay.

Talvez um dos objetivos de criar espaços com um público alvo específico fosse, realmente, fazer pessoas com interesses semelhantes se conhecerem.

Ok, pode tirar o "talvez" da última frase. Era isso mesmo.

Me senti um ingrato. Reclamando da vida quando, na verdade, eu não fazia tudo o que podia para melhorar minha situação. Tentei na empresa, mas, não rolou. Quem sabe o meu erro foi apenas procurar no lugar errado?

Eu não tinha certeza se era isso, mas também não tinha certeza de que não era.

Vi uma luz no fim do túnel. Tá, não vou exagerar tanto, mas, podia ser que eu poderia conhecer alguém se fosse em um destes lugares. Eu nunca havia tentado, então não tinha como saber. O que eu sabia, apenas, era que continuar quieto no meu apartamento não iria fazer amigos caírem do céu e entrarem pela minha janela.

Lembrei daquela frase: "O não você já tem". Por que não tentar um "sim"? Se não desse certo, eu não ia ficar pior do que estava.

Era isso. Minha nova tática era ir a algum lugar cujo tema atraísse pessoas com os interesses fossem próximos dos meus.

Uma convenção nerd? É, era uma boa. Apesar de eu não me senti 100% nerd, eu poderia conhecer alguém legal. Alguém que tivesse lido "Batman - A Piada Mortal" e quisesse comentar sobre o Coringa. Alguém que estivesse ansioso para jogar o novo "Final Fantasy".

O problema era que eu não conhecia nenhuma. Rapidamente fiz o que qualquer pessoa do século vinte e um faz quando não sabe alguma coisa.

Perguntei para o senhor Google.

Encontrei uma lista de eventos. Droga. O próximo seria só dali há dois meses! Não haviam muitos. Eu estava numa situação crítica, não dava para esperar tudo isso.

Pulei então para a parte de design. Pior ainda. Apesar de haverem vários eventos, congressos e exposições disponíveis, poucos eram voltados para design gráfico - que era o que eu fazia. Eu não sabia muito sobre design de produto ou outros ramos. Além disso, muitos destes eventos eram puramente acadêmicos e profissionais. Não eram do tipo que você ia para ficar conversando.

Deletei esta possibilidade também. Pelo menos por enquanto.

Passei para a comunidade gay. Pesquisei quaisquer lugares que concentrassem LGBTs. Obviamente, o primeiro resultado da busca que apareceu foi a Tetris.

Mesmo quem não era gay sabia o que era a Tetris. A publicidade deles era fodida, a fachada era gigantesca e a popularidade invejável. Todo mundo sabia que a Tetris era uma balada gay gigantesca e com muita estrutura.

Várias cantoras famosas já haviam feito shows lá, o que ajudava na divulgação do local. Haviam outras baladas e alguns bares LGBT, mas nenhum deles tinha o status da Tetris.

Eu passei a vida toda sendo e gay e vivendo ali perto, mas nunca havia prestado atenção na Tetris. Eu sabia o que era e, vez ou outra, ouvia falar dela, mas nunca pesquisei a respeito.

Acessei o site do estabelecimento e, claro, a primeiro coisa que vi foi um cara musculoso sem camisa com um copo na mão. Só depois percebi que era a galeria de fotos do site.

Em baixo havia a agenda de shows. Vários DJs que eu não sabia nem pronunciar o nome. De acordo com essa agenda, o local só não abria às segundas.

"O lugar onde a diversão, o entretenimento e o respeito são garantidos".

Nossa!

Aquela parecia ser minha melhor alternativa no momento. Eu poderia tentar ir a outro lugar, mas a Tetris era, com certeza, a melhor. Se eu fosse em algum lugar inferior e não gostasse, eu iria achar que todo local de LGBTs era assim. Eu queria ter uma boa impressão, ter uma boa experiência.

Diferentemente das outras duas opções que pensei, a Tetris abria quase todos os dias. Não precisaria esperar dois meses para ir.

Analisando pelas fotos do site, havia gente bem diferente ali. Não eram só aqueles bombadões que eu vi na primeira página. Haviam adolescentes com cabelos esquisitos, meninas góticas, caras de camiseta folgada e cabelo raspado, drag queens, todo tipo de gente.

Pelo menos eu não me sentiria um estranho ali.

O pior que poderia acontecer era eu ficar sozinho, num canto, olhando todo mundo se divertir. Mas eu já estava acostumado com isso, mesmo. Além do mais, se isso acontecesse, eu poderia simplesmente ir embora. Voltar para meu apê com a consciência limpa por ter tentado.

Se eu teria outra crise de solidão ou não era outra história. O que importava no momento era que eu estava me sentindo confiante para tentar.

Tentar fazer amigos.

Tentar ir a uma balada gay pela primeira vez.

Tentar deixar de ser sozinho e me sentir alguém pela primeira vez.

Era isso, estava decidido. Eu iria na Tetris!


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Notas finais do capítulo

E aí, queridos?!

Bom, para quem estava começando a enjoar do Rafa, aqui vai uma boa notícia: no próximo capítulo começam a aparecer novos personagens!!!

Também vamos começar a ver mais ação e menos "O diário de problemas emocionais do Rafa" haha!

O que estão achando até agora? Me contem tudinho, tudinho!

Beijão!