Tetris escrita por Stefani Niemczyk


Capítulo 2
Eu nunca fui bom em manter relações...




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Não demorou muito para eu lembrar da crise da noite passada quando acordei na quinta-feira de manhã. O lençol amassado estava lá para me lembrar.

Fui até o banheiro e me olhei no espelho.

Eu não era um cara feio. Ou, pelo menos, não me achava um cara feio.

Eu tinha um metro e setenta e cinco. Pesava sessenta e três quilos. Cabelo bem curto, com maquininha dois mesmo. Ruivo. Não usava barba. Me vestia até que bem. Meus olhos eram bem azuis. Meu rosto era simétrico (à medida do possível).

Sorri.

Meu sorriso também não era feio. Meus dentes eram bem cuidados.

Meus óculos eram pequenos, discretos, com armação preta. Combinavam com o formato da minha cabeça.

Bem, com a minha aparência eu estava satisfeito. Claro que mudaria uma coisinha ali e outra aqui, mas nada que me levasse à outra crise.

O que me faltava eram amigos.

Talvez eu não fosse uma pessoa legal e nunca percebi. Talvez eu afastasse as pessoas sem querer. Talvez eu não soubesse dizer o que elas queriam ouvir para se sentirem melhores quando estavam tristes. Talvez eu não soubesse me animar com as notícias boas que elas tinham.

Não sei.

Nunca soube.

Ao meu ver, nunca fui uma pessoa ruim ou difícil de se conviver.

Quando eu era pequeno, no jardim de infância, eu tinha amigos.

Ok, a gente só brincava de massinha e desenhava, mas, mesmo assim, as crianças brincavam comigo.

No ensino fundamental eu também tinha amigos.

Dois amigos, na verdade. O Pedro e o José Luis.

Nós conversávamos na escola, fazíamos os trabalhos juntos e nos sentávamos em carteiras próximas. Só.

No final do Ensino Fundamental eu comecei a me distanciar deles. O motivo é óbvio: sexo.

Com treze, quatorze anos você começa a sentir tesão pelas pessoas. A descobrir beijo, sexo, pornografia, masturbação.

E, então, o machismo do mundo permite que (e ensina) os meninos comecem a falar de mulher, peito (de mulher), bunda (de mulher), vagina e cu (de mulher). Começam a virar mini-predadores que ficam olhando cada bunda que passa por eles na escola e dando notas.

Naturalmente, começam a ir em festinhas e matinês pra pegar as meninas. Começam com as primeiras paqueras, os primeiros "foras", os primeiros beijos.

Um começo de vida sexual perfeito.

Para quem é hétero.

Enquanto os menininhos que gostam de menininhas estão tentando impressionar suas presas, os menininhos que, vendo pornografia, descobrem que olham mais o homem do que a mulher, começam a se sentir deslocados.

Alguns tem mais facilidade, outros não, para dizer a si mesmo: eu sou gay.

O fato é que isso não seria problema se eles não percebessem que, a partir desta (auto)afirmação, são incluídos numa categoria de "subcidadão".

Os gays nas novelas só servem para fazer graça. O tio faz uma piada de dois caras de mãos dadas. O pai diz que é errado quando vê imagens da Parada Gay na TV. Os amigos da escola - reproduzindo discursos sem pensar - entram nessa onda.

Cada pessoa é uma pessoa e as reações são as mais diversas.

Alguns aceitam de boa e, no auge dos seus - pasmem - quatorze anos, gritam para o mundo todo que são viados.

Uma quantidade de, digamos, 0,0003% dos casos são assim.

Outros, percebendo que seus interesses se aproximam mais dos assuntos do grupinho de meninas do que do grupinho de meninos, começam a andar com as garotas.

Existem os que não aceitam isso e, numa tentativa (inútil) de "mudar", começam a pegar meninas como se o mundo fosse acabar no dia seguinte.

Há também os que se fazem de cult-intelectual-hipster-underground e viram esquerdinhas que "preferem não aceitar rótulos da sociedade".

Outros - como eu - inconscientemente se fecham. Ficam sem saber como reagir, sem saber para onde ir e tornam-se cada vez mais reservados, quietos, calados, tímidos e excluídos dos grupos. Claro que tudo isso se aplica a meninas lésbicas também.

Por este motivo, não tive muitos amigos no Ensino Médio. Eu tinha um grupinho com o qual eu fazia os trabalhos, mas não conversava com eles como eu conversava antes, com o Pedro e o Zé Luís (que agora estreavam seus primeiros aneizinhos de compromisso com as ex-coleguinhas de sala).

Terminei a escola e fiquei um ano sem fazer nada.

Ok, não foi literalmente assim.

Minha mãe tinha uma floricultura na época e eu ajudava ela lá, mas não era um trabalho.

Eu ainda não sabia o que fazer da vida profissionalmente.

Nessa época, eu só ia de casa para a floricultura e da floricultura para casa.

Não tinha ninguém para sair nos tempos livres.

Acho que foi ai que começou minha solidão.

É claro que você deve estar pensando: "Afe, você se isolou de todo mundo só porque é bicha, a culpa é sua de estar sozinho, não foi atrás de ninguém, não buscou puxar assunto, blablablá..."

Sim, eu poderia ter mantido amizade com o pessoal. Não é só a orientação sexual que define as amizades. Mas, na época, eu estava com medo, inseguro, incerto sobre tudo.

Como seria minha vida? Eu viveria fingindo ser hétero, nunca gostando realmente do sexo? Ou seria um marido que trairia a esposa com o colega de trabalho?

Seria muito melhor viver com um cara. Mas como eu ia contar isso pros meus pais? Nós nunca havíamos falado disso em casa, eu não sabia qual seria a reação deles.

Na minha época, não havia internet para pesquisar relatos de outras pessoas. Eu não conhecia outros gays. Não sabia o que fazer.

A pior parte é que algo dentro de você (não sei porquê) parece te pressionar para que você se assuma. É por isso que acho ridículo quando héteros vão dar conselhos a gays que não se assumiram e dizem "ah, você não precisa se assumir pra ninguém, nenhum hétero se assume para os pais".

Simplesmente não tem nada a ver! Não é tão fácil aparecer na casa dos seus pais de mãos dadas com um cara bombado e peludo como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Infelizmente, não é.

Depois daquele ano, entrei numa faculdade de Design Gráfico. Era particular, então eu trabalhava numa livraria de dia e estudava a noite. Foi nesta livraria que comecei a me interessar por HQs e Graphic Novels. Com meu salarinho, eu pagava metade do curso e meu pai me ajudava com a outra metade.

Na faculdade é que eu não iria arrumar amigos mesmo. As pessoas pareciam canibais. Era um tentando ferrar o outro. O pior era o cinismo. Se faziam de amigas mas, quando aprendiam algo ou descobriam algum software novo, ficavam caladinhas, só para os outros não "roubarem" uma chance dela conseguir um estágio ou algo assim.

Apesar disso, consegui me virar bem lá.

Quero dizer, pelo menos até o final do segundo ano.

Havia um cara gay na minha sala. Ele era daquele tipo que fala alto, gesticula bastante, bem desinibido e extrovertido. Que brinca com todo mundo, que tem opinião pra tudo. Ele conhecia todo mundo da faculdade e era a estrela das festas.

Vendo aquele cara todo dia, mostrando pra todo mundo que era gay e, mesmo assim, sendo amado e adorado, começou a mexer comigo.

Ele era claramente gay e todo mundo sabia disso. Mesmo assim, as pessoas queriam estar com ele, iam até ele, convidavam ele para sair e tal. Com isso, fui percebendo que não era o fim do mundo ser gay.

Nunca cheguei a falar com ele. Ok, devo ter trocado algumas palavras nos primeiros dias de aula, mas nenhuma conversa construtiva. Muito menos falar sobre minha sexualidade.

Porém, como disse, aquele sentimento que te pressiona a sair do armário começou a inflar cada vez mais em mim. Até que, no final do segundo ano da faculdade, contei para os meus pais.

Eles não sabiam como reagir. Nem eu. Era uma situação delicada. Alguns meses depois, meu pai parou de me ajudar a pagar a faculdade. Ele arranjou uma desculpa de que precisaria do dinheiro pra arrumar não sei o quê em casa. Mas eu percebi o verdadeiro motivo.

Depois que eu contei, minha relação com eles mudou. Eles não se sentem mais à vontade quando estão comigo. As conversas parecem artificiais, como quando você está puxando assunto com alguém só por educação.

Este tipo de rejeição só me fez ficar mais tímido e retraído ainda. Eu já pensei várias vezes em sentar e conversar com calma sobre isso com eles. Quem sabe eu não quebrava o gelo e eles não agiriam mais como robôs comigo? Mas eu não conseguia. A insegurança, o medo de piorar a situação e a comodidade de deixar tudo como está falavam mais alto. Gritavam mais alto.

Terminei a faculdade e arrumei emprego numa agência de publicidade pequena. Emprego bom, salário legal e tal. As pessoas de lá também são legais. Nem insuportáveis, nem surpreendentes. Cada um apenas vivendo sua vidinha e sendo educado um com o outro.

Eu era bem quieto no trabalho. Respondia se me perguntassem alguma coisa e sabia continuar (à medida do possível) uma conversa, mas nunca, nunca puxava assunto. Eu simplesmente não conseguia.

É, eu nunca fui bom em manter relações.

Mas estava na hora de mudar isso. Ou, então, eu passaria a vida toda sem saber o que era receber um Whatsapp me chamando pra sair num sábado à noite. Sem saber o que era rir de verdade com alguém, não por educação. Eu precisava tomar uma iniciativa.

Naquele dia mesmo eu iria mudar. Eu iria puxar assunto com o pessoal do trabalho. Por mais simples que fossem, era a minha maior chance de ter uma amizade de verdade. Se eu não conseguisse começar uma conversa, pelo menos eu dormiria mais tranquilo por ter, ao menos, tentado.

Saí do meu prédio e, através do para-brisa do carro, olhei para o céu. Estava nublado. Não dava para ver o sol, pois haviam nuvens na frente, mas o dia estava bem claro. O céu bem azul, bem bonito, como se sorrisse para mim e dissesse: "sim, hoje você começa a mudar sua vida".


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam?

A partir do próximo capítulo o Rafa vai começar a escrever seu próprio destino!

Só não diga a ele que eu falei isso. Ele vai achar muito "frase de Facebook".

Beijinhos!!!



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