Selvagem escrita por RedLily


Capítulo 9
Ré - Dividir a dor


Notas iniciais do capítulo

Olá, leitores.
Esse capítulo é o maior que já postei aqui, como podem ver. E eu planejo manter um padrão parecido, ainda existem muitas coisas para acontecer.
Um dos segredos é dividir a dor. Se carregarmos o peso
de nossa dor sozinhos, envergamos nossa coluna. Confie em alguém. Seja um estranho ou um amigo próximo com quem você hesita.
Dividindo a dor, a felicidade é multiplicada.
Sem mais delongas ou verdades expressadas de forma mais exata através da matemática:
Boa leitura ❤️



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O dia amanhece quase no mesmo instante em que Mitra acorda.

Os raios solares invade, o recinto iluminando até o último centímetro cúbico, com sua paz e seu ar solene. Tudo neste lugar exala encantamento, ela percebe.

O canto de pássaros invade sua mente, envolvendo seus pensamentos que no instante adormecem no cântico profundo, que de forma carinhosa, a embriaga. A janela está aberta, ela percebe, de forma quase familiar. A árvore, lá fora, balança em sua dança majestosa, tornando-se ainda mais frondosa.

— Bom dia. — a voz sauda, rouca e familiar.

Ela se senta automaticamente. Cal ri, o som mais leve quanto o canto de pássaros que escutou mais cedo.

— Acalme-se, lutadora. — ele ri levemente. — Neste instante não sou seu oponente.

Ele se senta na cama, ao lado dela. Naquele instante ela parece a mesma garotinha de sete anos que chorava à toa e tinha medo do escuro e do mundo.

Não que muita coisa tenha mudado.

Os olhos estão levemente arregalados, como se de alguma forma, depois de todo aquele tempo, a presença de Cal ainda a surpreendesse ao invés de ser a mesma.

Os dedos calejados de viajante mexem no cabelo dela, repletos de carinho. Dourado encontra o brilho amendoado e se funde, fazendo-a sentir pela primeira vez em muito tempo que alguém que se importa e preza por ela. Por seu bem-estar, por seu respirar, por sua vida.

Uma vez que se perde alguma coisa de forma tão bruta, uma vez que se perde tudo por tanto tempo e de forma tão rápida, o ganho do amor fraternal mostra-se o tesouro mais luminoso dentro da escuridão que existe dentro dela. Dentro do vácuo repleto de nada, sempre, independente da cor espacial, independente das constelações, independente dos meteoros, independente das lembranças vai existir algo que destoe. Porque em meio à morte existe vida, e em meio à vida, existe morte. No preto existe o branco e no branco existe o preto. Na escuridão existe o colorido e no colorido existe a escuridão.

E é exatamente isso que constata: se algo for escuro, sempre vai existir luz.

Mesmo depois de tempos contáveis mas que para ela, são incontáveis como grãos de areia que se dizimam aos poucos com sua proximidade, ela percebe que Cal não mudara e jamais mudará. É como se, de algum modo, a muralha que havia construído longe dele fosse dizimada assim como o tempo agora que está ao lado dele.

Por mais que o tempo passe, que anos transcorram e os segundos devorem um ao outro por toda eternidade.

Ele é Cal. Ele é seu tio e ao mesmo tempo seu pai.

Ele é sua âncora. Ele é seu porto seguro.

— Bom dia. — Mitra responde, hesitante e talvez tímida, mesmo tendo ele como a pessoa mais próxima. Quando se passa tanto tempo somente em sua própria companhia, voltar a entender e a ser entendida, falar e escutar, tudo se torna extremamente distante. Os olhos amendoados têm uma compreensão fraterna e aconchegante, que cisma em acolher e envolver em seus braços a pequena garota chorosa e temerosa, que cresceu.

Talvez esta seja a realidade mais arrebatadora.

— Eu vou até um lugar aqui perto pegar o café da manhã, um dos melhores da cidade. — ele se levanta, afastando as mãos de seu rosto gentilmente. — Mas não vou trazer café, claro. O café de Nina é o melhor de todos. Você vai gostar tanto quanto eu, acredite. — ri levemente, fechando a porta e mesmo assim mantendo sua pose de sábio. Um instante depois, em uma fração de segundo, ele abre a porta o suficiente para sua cabeça passar, uma confusão de castanho, um emaranhado de cachos sedosos num rosto marcado pelo tempo. — E, acredito não ter comentado antes, mas eu realmente gostei do seu amigo, ele pareceu um ótimo cara pelo que conversamos ontem... Yǒu shí, wǒmen zhuīqiú de shì yuǎn yuǎn dī yú wǒmen de bízi. Wǒmen bù zhīdào. Dàn zài zuìhòu, dāng wǒmen zhōngyú kàn dào, tā shènzhì bǐ wǒmen xiǎngxiàng.* Se você se lembra do que lhe ensinei, você pode traduzi-la. Talvez com algum tipo de ajuda. — ele pisca, mas não disse o porquê de ser tão enigmático. E Mitra o olha com confusão justamente por isso. — Oh, querida... A vida é um mistério. Decifre esta nota. Até mais, pequena lutadora. — com um pequeno barulho ele fecha a porta, a maçaneta girando minimamente num último movimento. Como num reflexo, ela procura por um caderno e um lápis, e encontra na terceira gaveta de uma cômoda ao lado da cama, cujo tinha sobre a superfície um abajur.

Mas canetas, ou lápis... Droga, ela não tinha.

Mitra abre a porta de supetão, sem se importar com o barulho que ela faz ao finalmente encostar na porta oposta. O caderno velho cheio de anotações ainda está em sua mão. Ela segue até o quarto de Nicolau sentindo o piso de mármore incrivelmente gélido contra seus pés descalços, abre a porta sem maiores cerimônias.

— Nicolau, caneta, lápis. — ela diz alto o suficiente para que ele acordasse com os arregalados. Na verdade ele já parecia acordado, só que de olhos fechados como se estivesse meditando sobre os lençóis. — Caneta, lápis. — ele escuta o apelo, se sentando de forma rápida enquanto Mitra abre a mesma cômoda que há em seu quarto, com o mesmo abajur. Os quartos são cópias um do outro, tirando os quadros que fica, sobre a cabeceira da cama. Mitra percebe mas não reflete, ela ainda sabe o que o tio disse. E não poderia esquecer nem uma letra.

Nicolau abre o guarda-roupa e de lá tira uma espécie de caderno com capa de couro, com um suporte para caneta ao lado. Ele a estendeu para Mitra que pega no mesmo instante, como se precisasse daquilo para viver. Escreveno caderno as mesmas palavras, sobre diversos números telefônicos — Restaurantes mexicanos, pizzarias, lojas de roupas e alguns nomes regionais — de forma rápida, as letras saindo desleixadas. Ela repete mentalmente a frase, até falar em voz alta. Nicolau olha aturdido para ela, completamente perdido. Mas identifica que a língua falada é mandarim — apesar de ter demorado um pouco para diferenciar de japonês.

No entanto, o que eu posso dizer é que quando Mitra olha para ele, ela não esperava que ele estivesse usando — somente — uma boxer preta Calvin Klein.

Instantaneamente o rosto de Mitra cora, e o de Nicolau também.

Porque ela havia esquecido que estava com uma camisola vermelha pequena e justa demais.

Ela sabe que Nina está por trás daquilo quando deixou o vestido em seu guarda-roupa. "Aqui faz calor, querida. O ideal é usar algo mais fresco." Ela havia dito quando Mitra disse quase de forma automática que ela só dorme de blusas largas porque é mais confortável.

O caso é que Mitra sentiu calor no meio da noite. E apesar de não ser muito fã de vestidos, ela o colocou resmungando sozinha. Lá venta bastante, o que é bom. Mas a combinação da camisa com os lençóis a faz simplesmente evaporar.

Nina, quase como se soubesse o que está acontecendo, passa na frente do quarto que está com a porta escancarada. Seu olhar instantaneamente segue para Mitra, a poucos centímetros da parede.

— O tamanho exato! — ela exclama, contente. — Ficou lindo, Mitra. E bom dia, aliás, pra vocês dois. — ela desvia o olhar de Nicolau. Ela fala como se estivesse invadindo a privacidade de um casal. E isso faz o rosto da garota arder como fogo. Ela usa um pano vermelho sobre os cachos loiros, separando os cabelos rebeldes de seu rosto e iluminando-o de algum modo. Ela usava um avental escrito "Made in Italia" — talvez ela tenha comprado por lá. Mas ela está envergonhada demais para pensar sobre isso. Ela nem havia percebido a blusa branca que Nina usa por baixo do avental, ou mesmo as sapatilhas em seus pés.

Ela só consegue pensar que havia conhecido um cara em menos de duas semanas e ele já viu mais do seu corpo do que alguém que não fosse um familiar viu.

— E-eu... — ele começa, totalmente desconcertado enquanto a loira, após a aparição rápida, segue até seu quarto, fechando a porta com um pequeno barulho. Pega uma camisa azul amassada e a coloca com rapidez, a cabeça um pouco baixa.

O que ela não sabia é que Nicolau a achava grandiosa demais para ser vista por seus olhos. E por esse motivo ele ainda olhava para seus pés depois de colocar a camisa.

— Nos ve... Vemos, hm, mais tarde. — Mitra finalmente se pronuncia desviando o olhar do dele e voltando para seu quarto.

Ela nunca poderia imaginar que ele é tão bonito por debaixo das roupas. Quero dizer, ela poderia ter imaginado se tivesse parado para pensar sobre isso. Mas ela não esperava vê-lo semi-nu.

Fecha a porta e desliza novamente para a cama. Ela ainda segura o caderno e a caneta, e dessa vez presta atenção o suficiente para descobrir que na capa do caderno existe a imagem de um barco velejando. Como num desenho, sobre o fundo reciclado de cor bege. E a caneta é pesada e gostosa de se escrever. Do lado se lia "Nederland". Bem, seu pai é holandês, não é lá muito estranho que ele tivesse objetos de lá.

"Pequena lutadora". O apelido reverbera por seu subconsciente, fazendo-a ser invadida por uma nostalgia sufocante. Lembranças dos velhos tempos.

O barulho de pássaros volta no mesmo instante em que adentra o quarto, como se todos tivessem feito silêncio para escutar a voz de Cal. Ela imagina que eles deviam ter voltado a cantar assim que ele foi embora. É um som harmonioso, repleto de uma melodia que cessa os pensamentos barulhentos. Mas talvez não os suaves. Como a voz de Cal e a cor das bochechas de Nicolau.

Sabe que se estivesse em casa repudiaria cântico incessante da voz da natureza. Mas, naquele lugar, onde tudo parece positivo e encantador, a adoração às mínimas coisas se torna inegável enquanto tudo se torna grandioso.

A cada segundo que passa mais incluída neste mundo aconchegante ela se sente.

Os olhos fitam o teto com um brilho reflexivo e uma tonalidade profunda, como se fosse um buraco dourado, que absorve o universo a sua volta, ao invés de uma convencional Dunkelheit que absorvia tudo com seu brilho negro.

São universos, cada uma delas. E como uma anomalia espacial, em cada olho existe um buraco negro que também tem o hábito de luzir como estrelas. Nos olhos de Mitra, escuridão é luz. Entretanto, todas as sombras são subjacentes por trás do ouro celestial, que como estrelas próximas, ilumina tudo com um brilho de cegar.

Se levanta quase como se fosse obrigada a isso, mas com seus movimentos de lutadora e o modo como se move, quase como uma dança há muito praticada. Abre a porta cujo atrás sabe que estará o banheiro, o cheiro de limão siciliano lhe invadiu as narinas. Há toalhas limpas e perfeitamente lavadas dobradas sob a pia de mármore, numa repartição de vidro logo abaixo. Olha-se no espelho. Os olhos destoando de seu rosto de forma que, mesmo para ela, parecem absorvê-la. Desvia o olhar. Ela pega as toalhas e pendura-as no boxe, despindo-se sem maiores dificuldades e ligando o chuveiro, a água gélida correndo por todo seu corpo. Ela odeia tomar banho de água quente. Se sente suja. E talvez por esse motivo sua pele tivesse a aparência de bem-cuidada, mesmo que ela não se preocupe com isso. Ela não procura em revista que tipo de creme deve usar, ou que água gelada era boa para a pele. Mitra não é uma garota de 17 anos convencional.

O banho foi rápido, e ela tem um cheiro muito forte de limão siciliano no corpo quando sai do banheiro. Talvez Nina gostasse do cheiro. Mas se lembra de que a essência favorita de Cal é a de algas marinhas.

Se olha no espelho novamente, de forma rápida. Esta enrolada na toalha branca, e com a outra seca o cabelo quase distraidamente. Abre a porta do banheiro e segue até sua mala, abrindo-a e tentando dobrar suas roupas — que estão amassadas. No dia ela opta por uma camisa roxa e lisa. O short é uma espécie de legging que vai até pouco antes do joelho. Mitra se olha no espelho. A aparência quase fantasmagórica.

Ela não se importa. Na maior parte do tempo ela parece assim.

Sai do quarto, fechando a porta em seguida. Desce as escadas de madeira, sentindo sua textura por estar descalça. Respira fundo ao seguir para o segundo lance de escadas, olhando para a mesma janela da noite anterior. O dia lá fora é quase fictício. A luz do sol mancha as folhas do verde mais vívido, enquanto algumas outras parecem amarelas. Ao longe, árvores e plantas luzem como se tivessem lâmpadas em seu interior, e não seiva de plantas. O céu está límpido, e é impressionante o modo como tudo parece uma pintura neste lugar. Um quadro perfeito pintado pelo mais talentoso pintor.

Um pouco desnorteada pela paisagem ela desce os degraus, seguindo até a cozinha pelo piso de madeira.

Todos na mesa param de comer por um instante. Nicolau cora instantaneamente, disfarçando muito mal estar prestando atenção na comida ao invés dela. Ele nunca irá aprender que não sabe disfarçar e muito menos mentir. Mas ela não sabe disso.

Se senta de frente para ele.

— Eu diria bom dia se não tivesse dito antes. — Cal diz depois de terminar de conversar com Nina, que sorri disfarçadamente. Ele ri. — Mas o que vocês querem fazer hoje, crianças?

Cal sabe que ela odiava quando era chamada de criança. Mesmo quando tinha sete anos. No entanto, ela não parece se importar muito.

— Podemos ir à praia ou... cuidar da horta. O que acham? — a loira se pronuncia, Mitra pega uma das broas da cesta e colocou sobre o prato, olhou para o moreno como se dissesse "bem, isso aí é contigo."

— Hm, eu acho que... Que tal cuidar da horta por hoje? Mitra não parece querer sair... Acertei? — ele olha para ela quase como se fosse seu psicólogo. Ela controla uma risada amarga.

— Acertou. — ela responde, olhando para o prato e mastigando a broa com geléia de amora e pasta de amendoim. Ela percebe que a embalagem não é do Brasil. É um produto americano, nota olhando disfarçadamente no rótulo. Percebeu quando Cal pega uma jarra térmica e põe café na xícara, oferecendo-a para ela, que agradece em seguida.

— Por mim tudo bem. — a loira concorda.

— Já está com açúcar na medida que você gosta. — ele avisa, sabe a medida exata por ter o paladar parecido com o dela. — E é, por mim também. Gosto de passar um tempo lá. Acredito que vão gostar também.

O casal olha-a com expectativa, ela dá o primeiro gole com indiferença. O café é forte, e talvez até um pouco ardido, mas ela saboreia a sensação.

— E aí, o que achou? — Cal pergunta. Nicolau desvia a atenção da torta de limão percebendo as reações de Mitra.

— Realmente... maravilhoso. — ela diz, um pouco tímida. Está levemente impressionada, nunca havia bebido um café tão bom.

— Essa foi quase a mesma reação de Nicolau. — Cal ri levemente. — E acredito que a minha também na primeira vez que provei, se lembra, amor? — ele olha de forma tão doce para Nina que a morena sente a necessidade de desviar o olhar assim que a mão dele encontrou a da loira.

— Fico realmente agradecida que tenham gostado tanto. — ela diz com um sorriso bobo, a mão pequena em contraste com a de Cal. Nicolau também desvia o olhar, bebendo mais café.

Mitra acaba de comer o pão, cortando um pedaço da torta de limão de limão e colocando em seu prato.

— É italiana? — o moreno pergunta, analisando os traços de Nina.

— Sou sim. — ela sorri, olhando do garoto para Cal. — Foi lá que Cal me conheceu.

— Eu trabalho em um restaurante italiano, no Bronx. A dona do restaurante também é italiana. — ele diz alegremente. — E também foi lá que eu conheci Mitra. — ele sorri, desviando o olhar de todos os presentes. Quase como se tivesse medo do que exala dele. Mitra olha para ele e sente as bochechas arderem levemente, voltando sua atenção a seu prato rapidamente.

— Então você sabe de comida italiana!? Isso é ótimo! — a loira vibra, quase de forma materna. — E quando vocês se conheceram?

O garoto olha para a morena, que o olha no mesmo instante. Ela abre um sorriso mínimo repleto de sarcasmo, ele abre a boca e um instante depois a fecha.

— É da natureza dos Dunkelheit! — Cal riu. — Rapidez e intensidade. — ele sorri levemente, olhando nos olhos de Nina, que cora se lembrando de quando se conheceram.

A morena acaba de comer o doce e seus olhos se voltam para um bolo que tinha biscoitos na borda. O sardento segue seu olhar, reconhecendo a sobremesa.

— É tiramisu? — ele pergunta, se lembrando de uma típica sobremesa italiana que servem no restaurante.

— É sim. — Nina sorri, admirada. Cal fita Mitra por um instante, que olha fixamente para Nicolau. — Quer?

— Ah, eu quero sim. Obrigada. — o de bochechas levemente avermelhadas sorri minimamente. A loira corta o doce e coloca em um prato de porcelana, oferendo-o para ele. — Foi você quem fez? — ele diz depois de saborear primeira fração do bolo.

— Foi, sim. — ela sorri. — É um dos doces preferidos de Cal.

— Por que não prova, Mitra? — a garota olha para o mais velho instantaneamente, ela dá de ombros, desviando os olhos dos dele.

— Pode ser. — ela olha para o garoto a sua frente, desviando o olhar rapidamente ao perceber que Cal sorri levemente com isso. Mitra o olha como se dissesse "ah, por favor!", rola os olhos e ele apenas abre um sorriso maior ainda.

Pelo menos Nicolau não viu.

Nina oferece o prato e a morena lança um olhar sarcástico e ligeiramente raivoso para o tio. Ele ainda está acostumado apesar de tanto tempo, e solta uma risada nasalada, quase imperceptível.

— Está realmente muito bom, Nina. — o garoto comenta.

— Eu só trouxe algumas coisas pro café, mas a maioria quem fez foi ela. Uma cozinheira de mão cheia. — o mais velho sorri, e ela abaixa a cabeça levemente, sorrindo e envergonhada.

O garoto acaba de comer, e a morena acaba logo depois. Se olham por um instante antes de Mitra beber todo o conteúdo de sua xícara, focando-se nos olhos castanhos.

— Certo, meninos. Então vamos nos levantando que agora é hora de jardinagem! — a loira se levanta, sorrindo.

•••

— Eu colho primeiro hortelã ou os morangos? — Nicolau pergunta.

— Acho que os morangos são um pouco mais rápidos. — a morena responde.

Ambos usam aventais próprios para jardinagem. A anfitriã quis ir à uma praia ali perto, e os dois recusaram o convite. Obviamente, Cal juntou-se a loira e ambos partiram para um passeio romântico.

Os jovens, certamente, não querem servir de vela. Mesmo que o garoto os admirasse.

— Quer fazer alguma coisa mais tarde? — o garoto pergunta de forma gentil, sorrindo para ela docemente.

Ela o olhou arregalando os olhos levemente e voltando seu olhar para para a fileira de vinhas novamente. Nicolau está no mesmo corredor que ela, ambos têm duas grandes cestas para ajudar na colheita.

Sinceramente, quando eles disseram que havia uma horta atrás da casa, nenhum dos dois havia pensado que seria daquele tamanho.

Ou que haveria tanta diversidade.

— Você quer ir para a... Aquela, hm, Rua das Pedras? — ela tenta pronunciar o nome, mas o sotaque é tão forte que as palavras saem estranhas demais.

— Sim. — o moreno ri levemente, mas não comenta nada sobre a pronúncia.

— Ah. — ela solta, pegando um cacho de uva saudáveis e o colocando na cesta. — Eu queria ir amanhã... Mas talvez seja chato me ter ao seu lado quando aqui tem tantas mulheres bonitas. — disse num tom que beira o raivoso, por mais que tentasse esconder.

— Não. Eu prefiro a sua companhia. — ele diz, ligeiramente sério, ajudando-a com um cacho de uva que tinha dificuldade em tirar. A mão dele está sobre a dela, e ela sente uma necessidade enorme de olhar no fundo dos olhos dele e saber o que há lá. Mas ela não tem coragem de fazer isso.

Uma lutadora tão corajosa que agora mais parece uma medrosa, fracamente... O efeito que ele tem sobre ela afeta até sua respiração.

— Obrigada. — ela sorri de lado quase no mesmo instante em que ele o faz. O sorriso de Mitra é envergonhado, um pingo de doçura surgindo de uma rachadura na muralha, o dele é extremamente doce.

Depois de colher mais da metade das frutas, eles finalizam a colheita. Os últimos raios de sol atravessam as árvores laterais quando eles resolvem ir até a sala assistir um filme. É um de ação que ambos gostam. Eles têm um gosto bem parecido, e isso faz com que o garoto fale bastante sobre os filmes que havia assistido. Ela aos poucos vai se abrindo, como um botão de rosa. O progresso é lento, mas mesmo que o moreno não a conhecesse desde que nasceu ele poderia ler nos olhos dela que é solitária.

Ele quer mudar isso. Mesmo sem saber por quê.

— Então quer dizer que você não gosta de filmes de terror? — ele pergunta com um sorriso bobo.

— Não. — ela retesa a mandíbula. "Não preciso de filmes terror quando tenho os meus filmes de terror particulares", pensou mas não diz nada.

Ele nota que não deveria ter perguntado isso, mas tenta amenizar a tensão que havia se formado.

— Eu também não. — ela olha para ele de soslaio. Ele parece sério. Volta sua atenção à televisão novamente. Já está escuro, e o relógio marcava oito horas da noite. O casal ainda não chegou.

— Devem estar se divertindo. — o garoto observa, bocejando em seguida.

Ela sabe que não demoraria muito até ele pegar no sono.

Quando o filme está quase acabando, ele dorme. O corpo aos poucos amolece enquanto ele perde a consciência, o que o faz deitar no sofá sem nem mesmo perceber. A cabeça pende para o lado, e isso faz com que ele, gradualmente, se inclinasse até estar deitado no sofá de camurça, de cor vinho.

O tempo passa, e a garota olha para ele totalmente hipnotizada. E antes que sequer pudesse perceber ela está ajoelhada diante dele, os dedos estão a milímetros de seu rosto. O coração bate incontrolavelmente rápido e ela não sabe porque está fazendo isso. Ela só sabe que tinha uma necessidade muito grande de tocá-lo... E de não precisar se explicar depois. Só sente que precisava sentir sua pele sob sobre seus dedos, a textura de seus cabelos, a maciez de suas bochechas sardentas...

E como um ímã, sua mão contorna sua bochecha, parando por um único instante com medo de que ele acordasse. Os dedos tracejam o contorno de seus olhos, seu nariz, sua boca, acariciaram suas bochechas e ela segue até seus cabelos, tão sedosos. Ela tem vontade de emaranhar suas mãos nos fios escuros, de tocá-lo por inteiro. Ela havia esquecido de como é maravilhoso poder tocar alguém, poder sentir que há outro coração batendo ali, pelo mesmo motivo. A sensação de sentir alguém vivo tão próximo. A sensação de simplesmente sentir a verdade de alguém.

Um murmúrio escapa dos lábios dele, e ela quase automaticamente se deita, rolando para debaixo do sofá.

"O que deu em mim?" Ela se pergunta, vendo que ele está levantando. Segue até o corredor, e para um único instante, olhando para a sala com os olhos diminutos de sono, o cabelo desgrenhado.

— Mitra? — ele sussurra, olhando a sua volta. Volta a andar assim que pensa que tudo é um fruto de sua animação.

Ela suspira aliviada quando pensa que ele está longe o suficiente para não escutá-la.

O auto-controle de lutadora evaporou. Ela não pode deixar isso acontecer novamente.

Mas sabe que quando um raio cai em um lugar, ele vai ter maior chance de cair ali novamente.

"Por pouco." Sussurra, saindo debaixo do móvel.

•••

Já se passam da meia-noite, e depois do lanche que os anfitriões trouxeram, todos haviam ido dormir.

Mitra escolheu a blusa mais fresca que tinha, e colocou um short largo, vermelho como sangue que também era macio. A camisa é grande e preta, mas o tecido é fino, de modo que ela não precisara usar o vestido e não sentirá calor.

E então, depois de tomar um banho gelado e refrescante, ela se aconchega nos lençóis. O sono aos poucos vai a inebriando, depois de passar um tempo em claro pensando no que fará para decifrar a fala do tio.

Foi o momento em que o passado resolveu atacar.

•••

Era tarde, ela poderia saber. Estava dormindo quando escutou os gritos.

Acordou instantaneamente, se desesperando. Era Jessamine, ela reconheceu a voz da amiga de sua mãe. A porta de carvalho estava firmemente fechada, mas jamais estaria protegida o suficiente para não escutar as lamúrias que pediam por liberdade "deixe-me", "solte-me". Ela gritava, e a garota se encolheu ainda mais indo ao encontro da parede. Apertou o coelhinho de pelúcia com mais força, os olhos arregalados, desesperados. O coração batia rápido, ela estava paralisada. Mas sendo ou não um filme de terror ela sentia que o mal estava perto. Ela sabia que estava acontecendo mais do que podia saber e conter. Sabia que ela não poderia fazer nada. Que tudo estava fora de seu controle. Mas perto demais. Ameaçador demais. Escuro demais. E distante.

Isso comprimiu seu coração, e lágrimas escorriam por seu rosto.

A única coisa que ela queria era que aquilo acabasse.

E acabou. Demorou, mas finalmente havia acabado. Ela a encontraria e tudo ficaria bem, ela diria que não havia acontecido nada. E na realidade nada jamais teria acontecido.

Ela queria estar certa.

Porque quando abriu a porta do quarto de Jessamine, percebendo que ela estava no banheiro, havia uma grande mancha de sangue sobressaindo dos lençóis brancos.

Não gritou, porque não tinha voz. Não chorou, porque não tinha mais lágrimas. Mas se apavorou, porque não existe limite no que podemos sentir. Sentiu medo, porque sabia que o sangue de Jessamine poderia ser o dela. Sentiu horror, porque o sangue dos bons também poderia ser derramado como água.

E se aterrorizou, porque não sabia quem nem o quê havia causado aquilo.

A água do chuveiro caía no ritmo de seu coração.

— Mãe! — gritou. — Mãe! — ela gritou mais uma vez.

Mas não teve resposta.

E com um coração que já havia bombeado sangue demais num único segundo, com um coração que sentia emoções demais, com olhos que haviam visto demais, ela seguiu até o quarto de sua mãe.

Mas nada, nunca, seria demais. Porque até o infinito poderia ter um limite, mas tudo o que viu e sentiu jamais teria. Tudo o que viu e sentiu jamais seria leve quanto uma pena. Tudo o que viu e sentiu jamais seria inócuo.

Adit estava com os pulsos cortados, e sangue manchava o chão. Pingando incansavelmente. A pele manchada de carmesim e a mesma faca de prata que havia visto a mãe segurando muitas vezes.

O cordão prata estava escarlate.

E os olhos de sua mãe estavam fechados.

A visão tingiu-se em vermelho. Um grito morreu em sua garganta.

Nada, nunca, ficaria bem.

•••

Ela acorda, um grito corta o ambiente e ela se senta. Puxa o travesseiro num reflexo, e antes que possa se dar conta, entra no quarto de Nicolau e tranca a porta.

— Mitra? — ele se levanta e segue até ela, que soluça e tem o rosto manchado de lágrimas.

Solta o travesseiro, o abraçando como se ele fosse sua salvação.

— Shhh... — ele tenta tranquilizá-la, as mãos em seu cabelo.

Ela parece querer mergulhar nele, e na sensação boa e nova que é senti-lo contra si. Parece embriagada, e no momento nada importa. Não importa se ele é um estranho que conheceu em poucos dias. Não importa se ela nunca havia tido esse tipo de contato com alguém que não fosse sua avó, seu tio ou sua mãe. Não importa. Porque ela está quebrada, está com medo, está sofrendo. Está morrendo. E ele é capaz de fazê-la se esquecer de onde mora com um único olhar. Ele é capaz de remendar o que dentro dela está quebrado. E ela não sabe porquê, mas tem certeza disso. Ela tem certeza de que ele não é um estranho.

Ela tem certeza de que ele é a luz.

— Nicolau... — ela soluça.

Ele sente-se responsável por ela, ele quer protegê-la a todo custo mesmo que ela negue proteção. Ele quer sentir tudo por ela mesmo não sabendo por quê. Ele quer, simplesmente, colorir seu rosto com um sorriso. Fazê-la se sentir feliz como nunca. Fazê-la sorrir como uma criança, e dançar com ela nas tardes de sábado sem saber por quê. Em nome da felicidade. Quer que ela seja feliz, que tudo recomece e se torne novo.

Porque sabe que para ela tudo havia perdido a cor.

— Você pode dormir comigo hoje. — ele sussurra, a pegando no colo como se realmente fosse uma criança minúscula e desprotegida. Incrivelmente vulnerável.

Ele seca suas lágrimas e lhe canta músicas em diversas línguas até dormir, e a observa até os mínimos detalhes. Do cabelo até o queixo fino. Do jeitinho independente e vulnerável de forma subjacente até o pescoço pálido. Da camisa manchada até os pés que parecem pequenos, infantis e ao mesmo tempo esculturais. A cor de sua bochecha e a pele pálida, o ritmo de sua respiração.

Ele dorme pensando que se pudesse dar seu sorriso à ela, ele o faria.


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Notas finais do capítulo

Hey, o que acharam?
Eu tô ainda meio abalada com tudo isso, e com a sensação do Nicolau. É realmente esmagador.
Sobre a tradução: desculpem o mistério. É realmente necessário. A frase será revelada no próximo capítulo.
Até mais xx



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