O dia em que aprendi a voar e outros contos escrita por Ana Gabriela Pacheco


Capítulo 1
O dia em que aprendi a voar.




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Eu devia me apresentar não é mesmo?

Meu nome é Francisco Bolgard, sou filho de brasileiro e neto de italiano. Eu realmente gosto de escrever, gosto de apresentações e coisas que escrevo e depois me arrependo. Também gosto de escrever, pelo simples fato de que não faço nada da minha vida, sou um velho. E também porque eu não posso esquecer o que escrevi.

Mas vamos ao que eu realmente queria contar; quando eu era só um garotinho e minha avó era viva, ela vivia me contando histórias. Ela sentava em sua cadeira de balanço, a frente havia uma mesinha com leite e bicoito, e sua velha xícara de porcelana com café.

Não era sempre que podíamos nos ver, mas quando chegava a hora, quando eu estava na casa da minha milagrosa e santa avó eu guardava tudo. Agora sou um velho e tenho poucas lembranças, mas elas sempre foram as melhores.

Pouco tempo depois, quando eu tinha exatamente catorze anos, minha avó faleceu.

Eu me acostumei em ouvir histórias que minha avó contava, mas quando ela morreu, preso em meu próprio pensamento, criei eu mesmo, algo que poderia contar aos próximos. Algo que eu levaria pra minha vida, que contaria a minha amada, ao meu filho e ao meu neto.

Mas eu nunca tive nenhuma dessas chances, não tendo guardo-as na lembrança, assim como guardo o sorriso no rosto de minha avó quando eu chegava na casa dela.

A única história que ainda me lembro porém parece ser vaga, é a história de que um dia minha avó voou. Quando fiquei mais velho eu não acreditei naquilo é claro, mas ela disse que quem voa uma vez nunca esquece a sensação; de sentir a brisa,ver o chão longe e bater as asas.

Eu me lembro também de perguntar a vovó duas coisas; se um dia eu voaria, e se ela seria um anjo.

Ela me respondeu, com muita clareza, que não era um anjo, mas que qualquer um podia voar. Também me disse que podemos voar por dois motivos; por ser bom demais, ou por ser maldoso demais.

Voltando, eu nunca acreditei nisso, sempre fui muito realista e não achava que uma pessoa por ser bondosa demais ia sair voando por aí, muitos menos quando é má.

Achei que fui normal até meus trinta anos, o auge de minha carreira como empresário de turismo. Mas pelo que descobri, ou pelo menos tirei essa conclusão, eu era um cara extremamente rude, um cara impaciente, sem empatia, pés nos chão e que mesmo assim chegou onde chegou.

Eu saí pro almoço e fui ao meu apartamento, por alguma razão eu almoçava sozinho e comia a minha comida, que não era lá aquelas coisas. Tinha acabado de levar uma alfinetada ao ouvir de meu próprio chefe a frase, que mesmo velho me lembro:

—Você é tão rude, que mais rude que isso, passa do chão onde você anda Francisco.

Então ao voltar, me senti um pouco leve demais pra quem tinha comido dois pratos de comida, e comecei a flutuar na portaria.

Sim, flutuar.

Eu mechi os braços e me movi, era como um pássaro, era bom.

Alinhei minhas pernas e fui entendendo aos poucos e quando finalmente peguei o jeito, bati meus braços, quando eu batia, eu me afastava do chão e ia cada vez mais pra perto das nuvens.

Eu voei, voei bem longe de tudo e de todos.

O ar lá era bom, não era como de uma metrópole que nem São Paulo, eu voei tanto, me senti feliz e sorria como nunca havia sorrido, sorria como sorria quando chegava a casa de minha avó, que caso eu não tenha falado se chamava Célia Bolgard.

Dia três de novembro de dois mil e três foi o dia em que voei e então contra minha vontade pousei em um longo campo seco.

Ao andar um pouco vi uma gaiola cheia de corvos, não eram pássaros agradavéis, mas ao meu estado naquele ano, eu diria que em pássaro eles eram o retrato perfeito de mim.

Soltei eles, eles grasnalham um pouco pra mim e voaram um pouco desesperados, senti pena pois minha avó vivia dizendo que não se prende pássaro numa gaiola, pois é como tirar a vida de quem só a teve.

Então percebi que haviam cordas neles, cordas de bexigas e eles pareciam não conseguir voar, todas as cordas estavam presas no único corvo que estava na gaiola, o que não podia voar.

Eu percebi algo muito importante ali, pois pelo problema de um os outros estavam destinados a ficar ali.

Desamarrei lentamente da perna do pobre pássarinho machucado e amarrei metade dos pássaros em um braço meu e metade no outro.

Não sei por que, mais queria aquele sentimento pra mim denovo em quanto eles voavam pra algum lugar.

Eles foram voando comigo e acabei a pensar duas coisas:

Uma delas foi que eu realmente era rude, fui rude minha vida toda e por minha causa outras pessoas não poderiam ser livres, digamos.

A segunda das coisas foi; eu aprendi que pássaros como corvos não tem lar, eles voam sem destino, voam em liberdade, dão um toque de escuridão ao mundo e ao céu azul.

Depois desse dia, acreditei na história da minha avó Célia e percebi o quão enganado estive de pensar que humanos não podem voar.

Minha avó voou só uma vez na vida, e ela era muito boa.

Eu voei uma vez na vida, e era amargo. Ainda sou um pouco na verdade, mas percebo que sou livre, não tenho limites pra nada, sempre fui a escuridão no céu longíquo e azul.

Hoje sentado escrevendo, lembrando da minha avó, do dia em que aprendi a voar e do dia em que finalmente aprendi que humanos só tem limites se eles mesmos imporem limites, lembro de como o resto de minha vida foi boa.

E hoje, fecho os olhos, e posso ver os corvos voltando pra voar comigo novamente.

 


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