Jim

Abro os olhos devagar, sem fazer a mínima ideia de onde me encontro. Parece-me um quarto de luzes apagadas e uma única janela fechada, não me dando liberdade de saber onde exatamente estou.

– Louis? – Balbuciei. Deslizei para fora da cama onde estava sentando no chão com as costas encostadas no colchão. Senti falta de algo e percebi que meu corpo estava mais leve do que costumava ser. Dei uma olhada em mim mesmo, passando as mãos pelos meus cabelos, sentindo-os úmidos. Ainda estava com as mesmas roupas que usava no Paraíso e até cheguei a pensar que tudo que eu havia passado era apenas um sonho. Porém nunca vira este quarto antes.

Fiquei de pé e mais uma vez tive aquela sensação de que algo me faltava.

–... Eu não vou te deixar sozinho com um cara que você nunca viu na vida Ezekiel – Ouvi uma conversa por trás da porta entreaberta do quarto. O nome me era muito familiar.

– Fique tranquilo, ele não me parece uma ameaça – Respondeu outra voz masculina.

– Ah, beleza então. Estava só querendo confirmar se eu podia ir para casa. Não queria ter saído de lá mesmo.

– Matthew! – E o som de uma porta abrindo e fechando foi ouvida. “Matthew”? Que nome estranho para algum anjo. Ezekiel era comum, mas... Matthew? Até que a ficha caiu. Eu não estava no Paraíso coisa nenhuma. Todo aquele ocorrido com Miguel e Uriel foi verdadeiro e agora eu estava na Terra.

Com isso em mente, relutante, virei à cabeça vagamente querendo confirmar se minhas asas continuavam onde sempre estiveram. Ao não conseguir enxergá-las eu comecei a me desesperar. Procurei alcançar o lugar onde as penas deveriam começar a sair, e mais uma vez nada. A única coisa que pude sentir foi duas grossas cicatrizes em formato em V por baixo de minhas vestes.

Pode me chamar de escandaloso, mas gritei por conta disso. Para um anjo, perder as asas é a pior coisa do mundo. Você se sente humilhado, preso, desonrado. Se sente sujo. Inconscientemente eu estava soluçando. Mas que coisa! Tudo estava indo mal. Muito mal.

Caí de joelhos enquanto prensava meu rosto contra as mãos, chorando descompassadamente. Murmurava perdões para Deus e até mesmo para Miguel, apesar de já saber que nada adiantaria. Geralmente um anjo caído nunca mais retorna para o Paraíso.

A luz do quarto foi acesa, mas pouco me importei. Estava ocupado demais me mutilando internamente pelas coisas que falei. Não que eu me arrependesse, pois tudo que eu dissera fora verdade.

– Você acordou – A pessoa que entrara no quarto havia dito, se aproximando – Por que está chorando?

Não respondi. Não consegui, para falar a verdade.

– Não quer falar. Entendo – O homem se agachou ao meu lado, dando algumas leves tapas em minhas costas – Mas poderia me dizer pelo menos o seu nome?

– J-J-Jim. – Respondi entre soluços.

– Certo Jim. Olhe para mim, por favor – Hesitante levantei os olhos para ele, parando de chorar instantaneamente – Sou Ezekiel.

Pela segunda vez em cinco minutos dei conta de como sou lerdo. Ezekiel era um nome comum, pois era o nome do humano de quem eu deveria ser o anjo da guarda. E ao ver seu rosto confirmei que era ele mesmo de quem eu deveria ter cuidado todos esses anos que fiquei de bobeira no Céu. Ezekiel tinha cabelos lisos e loiros e tinha olhos cinza como tempestades. Quando falava dava a impressão de que tinha a boca torta, já que só usava um dos lados dela para sorrir e falar. Também tinha uma argola de metal atravessando o lóbulo de uma de suas orelhas.

– Ezekiel – Repeti para mim mesmo. Eu sabia tudo sobre ele, embora raras vezes eu tivesse o resgatado.

– Isso mesmo. Como foi parar no meio da rua daquele jeito? – Indagou curioso.

– Eu... – Não ia falar para ele que eu era um anjo. Seria loucura. Ezekiel não iria acreditar e o máximo que faria seria me mandar para um sanatório. E também, imagine só descobrir que seu anjo da guarda nunca o ajudou nas horas necessárias? Sinceramente, eu estava ciente das coisas que eu o fiz passar. Coisas terríveis. Resolvi mentir – Eu não sei.

– Cara, você precisa de um banho. Não quer que eu te pague um táxi ou coisa parecida para te levar para casa?

– Não tenho casa – Não mais. Completei mentalmente.

Ele parou por alguns segundos, pensativo. Mas logo deu de ombros.

– Tenho que pensar direito então no que fazer em relação a isso. Por ora acho que te emprestarei meu banheiro. Tome um banho e eu procuro algumas roupas para emprestar a você.

– Mas...

– Pode ir. Logo ali – Apontou para uma porta logo ao lado da entrada.

Suspirei e enxuguei o rosto molhado, me direcionando para o banheiro indicado. Lavar-me parecia uma ótima ideia.

...L&W...

Saí do Box com a toalha ao redor da cintura. Como era bom sentir água quente descer pela sua pele. “Lá em cima” não havia banheira aquecida á gás, você só tinha duas opções: Encarar a cachoeira mais gelada do mundo ou ficar sem a frescura de tomar banho mesmo. Afinal, anjos normalmente não tem motivo para se banhar.

Com isso, passei para o quarto aonde eu havia acordado e em cima da cama encontrei algumas mudas de roupa. Ezekiel não parecia estar por perto, então pude caminhar livremente pelo cômodo sem ter vergonha.

Olhei melhor o que me trouxeram. Jeans que me pareciam que ficariam largos demais em mim, uma camiseta branca de gola e uma simples blusa de moletom cinza clara. Roupas de humanos. Era estranho, pois por toda a minha existência ou eu usava aquelas clássicas vestes romanas ou então ternos e (muito raramente) armaduras de combate.

Numa das paredes, reconheci um espelho de corpo inteiro. Andei sem pressa até ele e tentei fazer com que meus olhos alcançassem um ponto estratégico de minhas costas. Pude enxergar com nitidez o formato em “V” vazio e de um vermelho assustador. Limitei-me apenas em suspirar.

– Que peninha. Perdeu as asinhas! – Escutei uma voz. O som dela era diferente de todas as outras que você poderia escutar. Serena, passava pelos seus ouvidos como música. Nem precisei olhar para saber quem era.

– Aiezer – Murmurei cansado – O que você quer?

Ele estava sentado na janela, apoiando os cotovelos nas coxas e o queixo entre ambas as mãos. Seu sorriso era largo.

– Não posso vim checar meu colega? – Revirei os olhos – Fique sabendo sobre o que aconteceu. Louis me contou. Lamento pelas suas asas.

– Também lamento – Soltei, deixando a toalha cair e começando a me trocar.

– Ele te mandou uma mensagem. Quer ouvir? – Indagou, sem mudar de expressão ou sequer de posição.

– Louis é um anjo mensageiro, por que ele mesmo não me vem entregá-la?

– Entendo – Deu de ombros, com aquele bendito sorriso de orelha a orelha – Bem, isso encurta meu trabalho.

– Jim? Está tudo bem aí? – Ezekiel perguntou do outro lado da porta – Achou um celular... Ou algo assim?

– Uia! – Aiezer, por mais improvável que pareça, esticou um pouco mais sua boca, animado – Mal chegou e já arranjou um namorado para dividir o apartamento?

E riu. Mostrei-me irritado, ao sibilar:

– A gente conversa depois.

– Okay – Se jogou de costas, como se estivesse despencando. Mas voltou a altura dos meus olhos voando. Acenou – Até mais Jimmy.

Aiezer conseguia irritar às vezes. Mas não era o cara do lado dos maus.

Alcancei a porta, abrindo-a e encontrando Ezekiel ali, com cara de interrogação. Acho que ele me ouviu conversando. Se for isso, estou ferrado. Mas a me ver em suas roupas, deixou um pequeno sorriso torto se alastrar pela sua face.

– Lhe serviu melhor do que em mim mesmo – Exclamou ele.

– Hã – Comecei sem saber o que dizer – Valeu por tudo isso. Não tenho como te agradecer.

– Nem precisa – Sob seus olhos pude enxergar aros escuros, grandes olheiras indicando o provável cansaço e sono que ele sentia.

– P- pode dormir tá? Se... Você quiser, é claro – Me enrolei nas palavras.

– Ah – Bocejou por um longo tempo – Okay. Só vim ver se estava tudo bem mesmo.

– Você não tem medo que eu seja algum tipo de traficante de órgãos ou coisa assim? – Levantei uma sobrancelha.

– Nada – Repuxou os lábios – Não acredito que você seja isso. Até mesmo se fosse algum delinquente juvenil Matthew teria te reconhecido. Ele conhece quase toda essa cidade – Voltou a bocejar. Sério; estou começando a achar que a qualquer instante ele irá cair duro no chão!

– Matthew... Seu amigo né? Hã... Ele é algo como um cara super popular, coisas assim? – Não era para eu ter continuado com aquela conversa. Ezekiel já estava fechando os olhos enquanto falava, como se suas pálpebras fosse muito mais pesadas do que de costume.

– Líder de gangue. Uma das mais conhecidas aqui da cidade – Então o percebi reprimindo mais outro bocejo – Sei disso porque banco algumas coisas deles.

Foi quando ele encostou-se à parede que tomei uma atitude:

– Certo Ezekiel, pode ir pra cama... Eu acho que me viro daqui em diante. Prometo que não te roubarei nada e muito menos tentarei vender um órgão seu.

Acho que ele mal conseguiu ouvir minha fala até o fim, pois já desmaiou ali no corredor mesmo. Por sorte, consegui segurá-lo a tempo antes que sua cabeça batesse no chão.

Dormia profundamente e ao vê-lo ali deitado no chão pisquei algumas vezes. Ezekiel era com certeza mais pesado que a mim, então seria difícil carregá-lo até sua cama. Apesar do pessimismo, já fui um anjo muito teimoso, e quando dei por mim já estava o arrastando pelas axilas da maneira mais delicada possível (O que tem de delicado sair arrastando uma pessoa pelo chão?).

Graças a Deus, consegui acomodá-lo aonde eu queria.

Ao sair do quarto, encostei as costas na porta agora fechada, e tudo que passava pela minha mente era: “Tenho de recompensar todos esses anos em que fiquei vagabundeando”.

Este é o Jim: