Smother escrita por stardust


Capítulo 2
Good morning, gecko




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Descemos, e a mãe da Emma ficou me olhando dos pés a cabeça. Fingi não perceber.
“Charlie, Emma nunca foi para Claremont, será que você poderia mostrar pra ela como a escola funciona e onde ficam as coisas e tudo mais?”, propôs ela. Emma revirou os olhos e se afastou para a geladeira.
“Ahn, claro”, eu respondi.
“Eu sei me virar sozinha, mãe.”
“Mas o que custa ir conhecer o lugar com o Charlie? Ele pode te mostrar tudo de lá”, replicou ela, se virando pra filha com seriedade.
“Ele não é um guia”, respondeu Emma. “Mas já que sou assim tão dependente, tudo bem, eu vou conhecer a porcaria da escola com ele.”
A Sra. Adams deu um suspiro cansado e massageou as têmporas, aparentemente já acostumada com as atitudes da filha.
“Quando as aulas começam, Eliza?”, ela perguntou.
“Nessa segunda mesmo”, minha mãe respondeu, meio hesitante. Eu não era o único surpreso pela mudança de Emma, pelo jeito.
“Ah, ótimo.”
“Bem, Jane, já vou indo”, concluiu, se levantando.
“Mas tão cedo?”. Jane se levantou também.
“Sim, sim, peço desculpas, mas tenho coisas pra fazer em casa...”.
“Então... tudo bem, obrigada pela visita”, ela disse, dando outro abraço sufocante em mim e em minha mãe. “Vamos, Emma, educação”, ela exigiu.
“Tchau, Sra. Price. Obrigada pela visita”. Mas disse isso olhando pra mim. Um olhar curioso, um pouco selvagem. Como o de uma leoa prestes a atacar sua presa. Franzi a testa pra ela. “Adeus, Charlie”, completou.
“Hm... tchau”, respondi, coçando a nuca e colocando as mãos nos bolsos.
“Voltem sempre! Um prazer recebê-los”, adicionou Jane. Juntou as mãos sob o peito, o que de certa forma lhe deu um ar hospitaleiro. Era baixa, gordinha e com pequenos tufos de cabelos curtos.
Após chegarmos em casa, minha mãe deu um suspiro e disse: “meu deus, sua amiga mudou bastante, não é?”.
“Mudou”, respondi, simplesmente. Não estava muito a fim de pensar nisso. Várias coisas tinham me passado pela cabeça, mas principalmente opções sobre o que aconteceu com Emma pra fazê-la mudar assim.
Subi pro meu quarto e fiquei estudando e pensando, mesmo sem querer isso. Não tenho muito controle sob a minha mente.
Pensei que Emma pode ter mudado por ter perdido o pai, mas não sei. Eu também perdi o meu e não mudei. Só fiquei triste por um bom tempo, depois aceitei. Ficar reclamando não ia trazer ele de volta. Voltei a ser o que sempre fui, sem essa tristeza toda. Claro que, por vezes, ela voltava, mas eu dava um jeito de afastá-la. Mas a mente da Emma é bem diferente da minha.

Esfreguei os olhos, ainda cheio de sono. A luz do sol mal entrara pela janela do quarto e eu já ouvia os gritos da Emma e sua mãe. Puxei o lençol pra minha cara, mas é claro que isso não ajudou a me fazer ouvir menos.
“Eu não vou pagar nenhum remédio pra você quando ficar doente! Se pegar um câncer no pulmão, não me responsabilizo.”
“Ah, mãe, pelo amor de Deus. Foda-se meus pulmões. Vou continuar a fumar, querendo você ou não”, e ouvi a porta bater.
Olhei pro relógio ao meu lado. Apenas 8 da manhã. Que pessoa acorda nesse horário em um sábado?
Dei um pulo, me assustando com o barulho de algo batendo na janela. Enfiei a cabeça nela e quase levei uma pedrada na cara.
“Mas o que...?”, exclamei, desviando a tempo.
“Bom dia, lagartixa”, ela disse, rindo. Lembrei que eu durmo só de samba-canção e soltei um som de surpresa, voltando o rosto pra dentro. Vesti qualquer coisa e voltei pra janela.
“Que diabos é isso?”, perguntei, abrindo melhor a janela pra conseguir ver Emma.
“Vou subir aí”, ela respondeu. Antes que eu pudesse protestar, ela apoiou os pés na janela da cozinha e subiu com um impulso.
“Uma invasão, que agradável.”
“Você é tão branquelo!”, ela exclamou, ignorando meu comentário. “É verão, lagartixa, você não toma sol?”, perguntou.
“Claro que sim.” Mentira. “E você não pode falar muito”, completei, observando suas pernas brancas.
“Panaca.”
“Hm... a discussão de vocês duas me acordou”, falei, mas não estava reclamando. As aulas estavam quase voltando e eu ainda estava acostumado a acordar tarde demais.
“Culpe minha mãe. Ela reclama que pareço uma chaminé e faço da casa dela uma plantação de tabaco em chamas. Exagerada”, replicou, retirando um cigarro do bolso da calça jeans.
“Meu Deus, não fume aqui”, eu disse, erguendo as sobrancelhas. “Minha mãe vai pensar que fui eu. E se não pensar, vai concluir que você invadiu aqui e pode... pensar coisas erradas.”
“Tá bem, tá bem”, ela disse, guardando o cigarro. “Quer sair?”, perguntou, abrindo o zíper da jaqueta preta e arregaçando as mangas.
“Pra onde?”. Primeiro eu quase recebo uma pedrada na cara, depois meu quarto é invadido por uma maluca que escala paredes e se enfia em janelas. Agora ela quer sair. Ótima ideia.
“Sei lá, só sair. Ir pra uma aventura, lagartixa. Sabe o que é?”, ela perguntou suavemente, tirando uma mecha de cabelo da frente dos olhos.
“Tipo... andar por aí?”, perguntei. É extremamente idiota responder uma pergunta com outra pergunta.
“Vem”, ela disse, agarrando minha mão e me puxando em direção à janela. Se enfiou nela e caiu no meio de algumas folhas.
“Isso é meio alto...”, falei, olhando pra baixo.
“Só enfia as pernas aí e cai.”
Fiz o que ela disse, e caí desajeitadamente, o que fez ela rir. Levantei e passei a mão na calça pra tirar a sujeira.
“Quase que você quebra as pernas”, ela disse, ainda rindo. Um riso contagiante e gostoso, mas que logo sumiu. Ela ajeitou a touca cinza na cabeça e puxou o cabelo pra trás.
“Não tenho tanta habilidade em pular de janelas quanto você.”
“Sou profissional”, ela brincou. “Tá, agora vem”, disse, puxando minha mão.
“Pra onde é que você vai me levar?”, pergunto, andando atrás dela.
“Sem perguntas, lagartixa.”
“Você só vai me chamar disso agora... Vou te chamar de chaminé.”
“Igual minha mãe, que ótimo. Saio de casa pra não ser chamada disso e vem você com essa”, disse ela, mas não com irritação. Até esboçou um sorriso. “Falando em chaminé...” e pegou um cigarro.
Fiquei só seguindo ela por um bom tempo, no silêncio. Ouvia apenas ela assoprando a fumaça e nossos pés esmagando pedrinhas.
Emma era diferente de todas as garotas que eu conhecia. Ela sempre foi diferente assim. Mas não de um jeito ruim.
Andamos até chegarmos à saída da cidade, onde começava a estrada. Olhei pro meu relógio.
“Faz um tempão que estamos andando. Aonde você quer chegar?”, perguntei, acelerando o passo pra atravessar a rua com ela.
“Já estamos quase lá”, disse ela. Andamos por mais um tempo, até que chegamos em uma parte da estrada que era uma ponte. “Meu pai me trazia aqui”, comentou, jogando o resto do cigarro no chão e o amassando com a bota. Achei estranho ela querer me trazer em um lugar tão íntimo dela. “Olha, dá pra descer aqui”, disse ela, segurando na mureta de pedra e apoiando nos pés na terra. “Só não escorrega, lagartixa.”
Acompanhei ela, tentando não sair rolando. A terra estava úmida, provavelmente tinha chovido ali ontem.
“Eu já passei por esse lugar antes”, comentei. “Mas nunca tentei descer aqui.”
“É um lugar interessante. Um dos poucos que ainda não foram poluídos completamente por esse pessoal... babaca”, completou, pulando até o fim da descida íngreme.
Não era exatamente um rio. Parecia mais um pequeno córrego, cheio de pedrinhas na margem, mas com um fluxo de água regular. Mas a água era limpa.
Emma sentou na terra e acendeu outro cigarro. Eu queria perguntar por que ela fumava tanto, mas não o fiz.
“Ele... me trazia aqui pra descansar. Depois da escola. Dizia que era bom pra esvaziar a mente. Ficar quieto, só olhando a água fazer seu caminho. Ou ficávamos deitados na terra, olhando as nuvens”, disse ela, dando uma tragada.
“É um lugar bonito”, comentei.
“É mais do que isso, Lagartixa.”
E ficamos em silêncio. Ela acabou seu cigarro, e o guardou de volta na caixinha. Acho que aquele lugar estava completamente fora da “lista de lugares que Emma Adams deseja jogar bitucas.”
De repente ela levantou.
“Eu nem sei porque eu te trouxe aqui”, disse, tirando a terra da calça. Levantei e fiz o mesmo. “Não fale pra ninguém sobre esse lugar.”
Não entendi porque, mas assenti. Ela franziu a testa e se abaixou pra pegar uma das pedrinhas. Observou-a por dois segundos e em seguida a atirou pra longe. Depois pegou outra, que dessa vez não jogou longe.
“Toma.” Ela pegou minha mão e colocou a pedrinha lá. Era esbranquiçada, lisa e cheia de pontinhos marrons. Ergui as sobrancelhas. Ela me encarou. Encarei ela de volta. Nos encaramos. Desviei o olhar.
Aqueles olhos azuis eram tão... estranhos. Bonitos, é claro. Mas estranhos.
E então ela começou a subir. Não me chamou pra ir junto, não se despediu. Apenas foi, com mais um cigarro nos lábios avermelhados e secos.
Emma Adams é um mistério. Um mistério que eu quero desvendar.


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