Preces de Braun escrita por hwon keith


Capítulo 4
Expirando nas lacunas esquecidas




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Espirais de fumaça subiam. No fádico dia, lembro-me bem de acompanhar a visão tragando um cigarro caro. O que eu expirava contrastava com o outro amigo nebuloso e eu sorri brevemente na constatação.

Mas quem narra é indigno de atenção. Minhas lamentações são gratuitas.

A primeira visão que tive de Noka fora através do véu sufocante que riscava o céu. Caminhava com os ombros duros, o cabelo balançando atrás em uma cortina de penduricos, os olhos atentos. É ridículo afirmar que não me vira. Caso o fizesse, quem sabe teríamos dado certo.

Seu irmão Nick vinha em seguida. Havia tomado banho recentemente, fios loiros brilhavam. Girava, parecendo buscar a atenção de alguém. Voltou-se para frente e as sobrancelhas juntaram-se numa irritação. Sempre tive a impressão que “esperar” não constava em seu vocabulário.

Estacaram na frente da faixa amarelada. Gritos ainda pronunciavam-se. Claro, eu não esperava menos. O acidente de ônibus fora deveras chocante.

Recebi então uma ligação. Ele novamente. Mais problemas.

Desci da mureta e apaguei meu fumo, partindo.

Nick trincava os dentes num descontentamento tão inconstante que Noka deslizou sua visão para o garoto quando esse riu.

– Eu no tinder – defendeu-se.

No silêncio exasperado que seguiu-se o menino ergueu o rosto. As dançantes nuvens acinzentadas não lhe davam o direito de analisar mais profundamente o caos. Uivos agonizantes e berros amedrontados envolviam-os em torpor desconfortável, pondo-se no lugar daquele cujas veias inundavam o concreto sujo.

Satoru sumira. Sabiam que não viriam boas novas em seguida, mas também comentar uma batida entre automóveis quase na soleira da casa era patético.

Passando ao lado dos transeuntes perplexos, algo magro e comprido sorria na distância. Captou a atenção dos irmãos no ato. Tal como um modelo anoréxico, as bochechas estavam comprimidas pelos ossos saltados das maçãs. Com vestes gastas e longos cabelos grisalhos obviamente tratava-se de um idoso. Um idoso particularmente feio. Sua bengala consistia num alto pedaço de madeira, a ponta parecendo afiada.

– Deve espetar os pássaros que tentam comer a pipoca que sem querer caiu do seu pacote – debochou Nick. Engasgou-se sentindo o calor quente nas costas, alguém vindo por trás.

Reconheceu-o pelos cabelos presos. Arqueou a sobrancelha com esforço, anulando a vermelhidão que insistia pintar sua cara.

– Pensei que estaria beijando outras bocas – recebeu-o, ácido.

Satoru simplesmente olhou-o com algum interesse.

– Fui comprar comida – balançou a sacola amarelada, os objetos dentro colidindo com um ruído.

– Temos isso em casa – retrucou o loiro.

– Não porcarias.

– É só isso que temos.

Seguiu-se uma momentânea indisposição, provavelmente gerada pelas últimas gotas de paciência sugadas de Noka. Esta virou-se para ambos os dois homens, umas linhas finas entre as sobrancelhas, gesto tão parecido quanto seu parente fizera momentos antes.

Em troca recebeu um suspiro teatral.

Divida entre qual dos dois socar, ateu-se ao sapatos sujos de Satoru. Havia uma mancha escura no couro branco.

– Molho de tomate – comentou ele, cortando futuras indagações. Olhou para Nick, cuja necessidade de saber o porquê daquilo era totalmente perceptível – Comi um cachorro quente mais cedo.

Com todos perdendo o interesse pela situação, voltaram aos murmúrios desesperados das vítimas. O homem velho não estava mais lá.

– Sete mortos.

Nick bocejou. Sua missão no momento consistia em conseguir enfiar o máximo possível de salgadinhos que sua boca permitia nela. Com isso, soou trancado.

Enquanto o garoto iniciou seu momento de engasgo com os flocos de milho, Noka observava os rostos coloridos da televisão narrarem o acontecimento fatal anterior.

– “Colisão entre ônibus e carro deixa os ocupados de ambos mortos.” - imitou. Sentou de rompante ereta, surpresa – Os olhos.

Intimidado pelo tom de voz nervoso da irmã, Nick calou-se do lamento “eles deviam fazer um gosto melhor, esse queijo parece sua meia” e prestou pela primeira vez atenção no noticiário, agora congelado numa foto da câmera de segurança, que nem numa série. Porém, nesta não havia zoom macroscópio que até átomos eram avistados.

Sem dúvida no rosto de um transeunte despercebido que por pouco escapara da colisão, andando na rua, havia dois pares de globos oculares de um azul brilhante.

Demônios.

Os lábios de Nick formularam o nome que os dois presumiam sem mesmo raciocinar. Um ataque tão direito seria uma carta extensa e muito bem assinalada para uma guerra. Sabendo que cada domínio da cidade possuía um bando, a culpa cairia em Jamie.

Existindo um detalhe além, entretanto, perdeu-se na mudança de assunto dos apresentadores, assim como dos pensamentos dos telespectadores.

Alta madrugada, silêncio extenso e frio. O único loiro da casa agitava-se nas cobertas gélidas, puxando-as ao máximo para seu rosto. Indiscutivelmente não estava afim de buscar mais um cobertor no armário alto, não. Perdeu para sua luta minutos depois. Congelaria ali, ou teria uma gripe. As duas opções eram horríveis igualmente.

Pulando para alcançar a alça da sacola com a manta, parou. Certa ranhura ouvia-se talvez na escada, talvez lá embaixo. Vinha do lado que seu ouvido esquerdo captava. Girou o rosto. O barulho adaptou-se para ambos. Gorgolejo subiu também. Qualquer que fosse a criatura criadora com certeza possuiria face física tão abominável quanto Gabriel. Com sorte.

Espalmou a mão no papel de parede próximo da porta. O quarto do lado era de Satoru. Desejou que esse, não si próprio, descobrisse o causador dos ruídos. Não ganhava nada na procura, ou quem sabe uma doença cardíaca futura.

Na segunda perca da noite, saiu lenta e silenciosamente do cômodo e com algum choque localizou Satoru já observando-o, de pé e em porte de um facão. Gesticulou para Nick calar-se. Foi-se para a escada, desceu com calculada leveza. Fulgurosos momentos antes do desaparecimento da linha de visão de Nick, congelou-o de surpresa. Havia sorrido-lhe.

Como todos deveriam saber, Nick jamais esperaria em cima como bom moço amedrontado. Nem a perspectiva de horror brutal ou impactante tiraria-lhe a alma curiosa que tão gostosamente alimentava diariamente. Sendo assim, seguiu o de cabelos presos.

Estranhamente, o barulho cessou. Satoru seguiu porta afora. A brisa noturna encheu-os com cheiro de borracha queimada. Postes acessos de tediosa luz amarelada completavam a vazia rua.

Ou esperavam estar solitária. Abaixo das sombras comuns da madrugada, de certo uma silhueta comprida repousava escondida. Faiscou algo avermelhado vindo de lá.

– Nick – pela primeira vez, Satoru chamou-o.

A visão correu e espalhou-se como água em temperatura ambiente de uma piscina recém enchida. Todos os pequenos pontos de luz na noite juntaram-se e foram embora. Teve certo zoom mental na mente do loiro, a imagem clareando e o conhecimento revelando-o.

Nick expirou. Jamais, sequer, remotamente imaginara aquilo ali.

Barrete vermelho. Contou a Satoru, o último carecendo explicações. Era um duende malvado do folclore inglês. Alto, feio, velho, segurando uma lança afiada. Sua distinção: Um gorro avermelhado, parecendo uma boina sem bordas.

Vermelho porque avivava-se no sangue das vítimas de algum confronto violento. Ou belo de um chupim filho da puta.

– Oh-ho – Nick soltou baixinho – Não tenho a menor ideia de como se livrar disso.

Satoru aproximou-se. Mexeu a mão com a faca. Nick negou. Então gesticulou para voltarem para casa. O que Noka não sabe, Noka não briga.

– Que legal essa faca. Posso brincar de autópsia com ela?

Qualquer sorte que dispunham no dia abandonou-os. Noka residia parada na soleira, atenta. Ela sabia. O irmão bufou audivelmente. Ok, era uma bosta ter um doente psicótico próximo, mas se não mexessem com ele não seriam espetados. Cada um na sua batida.

A gelada e afiada lâmina passou de raspão pela bochecha de Nick, rasgando-a levemente. Ele ofegou, jogando-se para lado oposto.

O barrete correu para a briga e não parecia disposto a perder sangue fresco.

Girando a faca contra o ser, Satoru apoiou uma perna da frente para sustentar seu corpo inclinado. Barrete escapou milésimos, o cajado indo contra a cintura do outro. Cortou-o na certa e Satoru cerrou os dentes.

Um chicote cheio de pregos encarcerou Barrete vermelho pelo pescoço. Nick puxou-o e o duende despencou ao chão, largando a arma, as mãos de antigas rugas em vão buscando diminuírem o aperto. Noka havia desaparecido dentro da casa, atrás de um livro com a resposta de como livrar-se dele.

Satoru apertava o rasgo com a camisa já suja e ele e Nick fitaram-se por breves momentos, o respeito e certa gratidão inundando os olhos do mais alto. Algo que não demonstrara à Noka, em sua primeira salvação.

Distraído não percebera as mãos do barrete irem do pescoço apertado até as pernas de Nick, onde enfiaram com violência as unhas afiadas, gerando um grito dolorido e a soltura do chicote. Varrendo pingos escarlates para o concreto, o Braun receoso chutou o duende no rosto e afastou-se centímetros.

De rompante, o chicote estava no pescoço do loiro e o ar escapava-lhe em agonia gigantesca.

Então, sem nem porquê, a grave e sonora voz de alguém levantou-se num grito, a fala que Nick não soubera absorver por causa de seu cérebro nublado, mas reconheceu como uma frase da Bíblia.

O barrete guinchou e sumiu na noite, largando de souvenir um de seus horríveis dentes.

Satoru bateu em ajuda, afrouxando o aperto e retirando sua própria camisa, enrolando-a na pele machucada pelos pregos. Nick engasgou e segurou Satoru pelos ombros, necessitando de algum apoio na dor lancinante.

Quando pode procurar Noka pelos olhos, viu-a próxima, não preocupada observando-o como planejara, mas sim parada, branca de susto.

Quem salvara-o constava de um homem alto, nuns vinte e poucos anos, dono de cabelos espetados pretos que desciam pela testa e nuca como spikes. Terno e gravata frouxa consistiam em suas vestes, ele agora fitando Noka.

Na luz esbranquiçada da lanterna que a garota pegara, os olhos do homem eram de um azul gelado.

A consciência de Nick escapou e apagou-se como a fumaça do cigarro do homem, no momento que Satoru cumprimentou-o.

– Ko.


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