Malkuth escrita por Lilith, Sr Paganini


Capítulo 4
Das palavras ao rapto


Notas iniciais do capítulo

Oioi,
Mais uma vez pedimos desculpa pela demora da postagem... Postaremos os próximos com mais frequência.
Lilith e Paganini.



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Passaram se quatro, cinco, seis dias. As semanas correram e se transformaram em meses; cinco. O dia da grande lua se aproximava mais a cada dia, e com ele os dezesseis anos de Athame e, consequentemente, o dia de sua partida.

O nervosismo de Athame só crescia. Via chegar cada vez mais perto o dia de sua viagem e sentia um nó em sua garganta. Não decepcionaria a todos. Todos os dias, sua avó a ensinava as coisas necessárias. Utilidades de plantas, línguas necessárias, imagens, significados... Mostrava-lhe livros, mapas e rotas. Instruíra-lhe sobre runas, amuletos, rezas e purificações. E a tudo isto, Elizabeth estava atenta, com seus grandes olhos verde brilhantes. Elysia havia dito que na noite de lua cheia, dia do seu aniversário e data antecessora a qual iria partir, haveria um grande Sabá; uma grande festa, na qual bruxos e bruxas se uniam para beber, celebrar e agradecer à deusa. Elizabeth ficara extremamente ansiosa, e às noites dançava em volta da fogueira, imaginando estar em um Sabá. Ernestine agora havia aceitado a condição de suas filhas, e com elas compartilhava um pouco do seu saber. Estava feliz de uma forma que Athame não via há muito tempo; tinha ficado mais bonita. Os cabelos retomaram a sua vida de antes, com seus grandes e grossos cachos negros que se estendiam até sua cintura. As maçãs do rosto estavam mais róseas e os grossos lábios, mas vívidos. Falava mais, sorria mais.

Certa noite – um dia antes da grande noite-, sentadas em frente à fogueira, Elysia contou histórias para suas netas e sua filha. Contou uma em especial que Athame sabia de cor... Quando a grande deusa desceu dos céus e andou entre elas. Contou este e entre outros casos.

– A bruxaria é tão antiga quanto o próprio homem... – E assim, olhos fixos nas chamas, começava suas histórias. –... Nossos antepassados usavam magia em seu dia a dia, nas suas caças, invocando xamãs para ajudá-los através de fogueiras. – Elysia parou por uns instantes olhando para o fogo que se balançava lentamente empoleirado nas madeiras. – O mesmo fogo que nos ajudava, agora nos devora... – Sorriu entristecida.

“Há anos atrás, quando a sociedade de bruxos ainda era muito vasta e todos nós possuíamos liberdade de praticar nossas atividades costumeiras, conheci uma pessoa diferente de todas as outras que eu já havia conhecido. – Enquanto Elysia falava a fogueira à sua frente ajudou-a a narrar sua vivência, mostrando pessoas e cenários. – Ela era mais solidária do que todos, mais alegre e de beleza inigualável. Juntou-se a nós, e passou a se hospedar na minha casa. Tornamo-nos grandes amigas. Eu estava nos meus quatorze anos; ela aparentava ser um pouco mais velha. Andávamos juntas, conversávamos sobre muitas coisas. Dividíamos experiências. Mas, no entanto, para mim, apesar do fato da garota saber coisas que nem os mais sábios conheciam, ela era apenas uma forasteira. Até que, certo dia, ela levou-me às margens de um riacho no reino de Thiphareth. Disse-me que seria necessário partir, pois necessitava voltar para sua casa. Disse também que tempos difíceis chegariam, mas que não deveríamos perder a fé. Que a deusa sempre estaria olhando para nós. Depois, disse adeus e sumiu entre as grandes árvores.”

Athame prestava muita atenção a cada palavra que sua avó dizia.

– “Dois anos depois, os primeiros cristãos chegaram aos sete reinos. De início, eles se confinavam nos cantos da cidade, sempre isolados. Mas depois, foram se multiplicando e, com isso, ganhando espaço. Um ano depois, acharam-se no direito de nos impor suas doutrinas. A grande guerra aconteceu e os sete reinos entraram em um caos terrível. Como vocês sabem, a deusa desceu para resolver. Estava revoltada como eu nunca havia ouvido falar.”.

“Eu a vi. Falei com ela pessoalmente. Nunca imaginei que ela pudesse querer falar comigo, justamente comigo. Ela me disse que tudo ficaria pior; mas que eu deveria permanecer firme, pois um dia tudo voltaria ao normal. Foi então que eu percebi. – Elizabeth tossiu; “Desculpe.” - Era ela! A minha amiga que havia partido. O jeito como falava comigo. O olhar, o sorriso. A voz...”.

“Antes de subir, ela disse-me que um século depois, nasceria aquela que nos traria a liberdade outra vez; e disse mais. Eu deveria levá-la ao templo situado em Thiphareth, para que fosse abençoada. Eu, incrédula, pensei que não viveria todo esse tempo para testemunhar esse acontecimento. E aqui estou.”

“Cem anos depois, Ernestine deu-me a notícia que havia engravidado. Em nove meses, você nasceu Athame. Levei-a ao templo em Thiphareth sem saber direito o que esperar. Então ela veio mais uma vez, em carne. Pegou-a no colo e beijou sua cabeça. Disse que o futuro do nosso povo se encontrava em suas mãos, e que eu deveria, no tempo certo, instruí-la sobre o necessário.”

– E você viveu tanto tempo assim? – Elizabeth perguntou curiosa. Os olhos verdes bem abertos.

– Nós bruxos somos reconhecidos pela nossa longevidade... E beleza. – A anciã ofereceu-a uma piscadela.

– Bem... Então eu quero ser bruxa também... Posso? – Disse a pequena Elizabeth agarrando a sua bonequinha de pano.

– Não se vira uma bruxa... Nasce-se uma. - Elysia tocou delicadamente na bochecha de sua neta e sorriu. Pegou sua ocarina antiga, e começou a tocar uma canção leve.

Elizabeth sorridente levantou-se e pôs-se a dançar em volta da fogueira como sempre fazia, mas dessa vez puxou sua mãe pela mão. Ernestine hesitou, mas deixou-se levar pelas notas que pairavam no ar e, com sua filha, dançou.

Athame sentia seu coração leve, feliz... Via a sua família alegre, sorrindo... Não se arrependia de ter dado uma surra em John. Se não o tivesse feito, não estaria desfrutando desse momento ímpar. Sentia seu cabelo ser levantado e sua pele arrepiar. O vento estava presente em sua vida. Sempre. Sentia como se pudesse voar.

Então ouviu um ruído. De início pensou que estivesse ouvindo coisas, mas prestou mais atenção. Um arbusto se movia. “Psiu!” alguém chamou.

– Vó, tem alguma coisa ali...

A música cessou, Ernestine e Elizabeth pararam repentinamente de dançar.

– Alguém aí? – Elysia perguntou.

Silêncio.

– Athame, eu acho que você está precisando dormir. – Sua mãe disse, preocupada.

– Tudo bem... Eu acho que vou mesmo... Boa noite.

Athame entrou na casa, achando bastante estranho o que havia acabado de acontecer. Entrava em seu quarto imersa em pensamentos, quando foi surpreendida por braços que lhe agarraram por trás e a puxaram para dentro do quarto. Quando entendeu o que estava acontecendo, tentou gritar; no entanto o desconhecido foi mais rápido. Apertou uma das mãos sobre a boca da garota e a empurrou contra a parede. A fez ficar de frente para si. Athame respirava com urgência e tentava falhamente se debater, mas o estranho do escuro a imprensava com seu corpo. Ficaram ofegando por um tempo, suas respirações sincronizadas.

O quarto estava escuro, eles não podiam se ver. Athame tinha medo de quem pudesse estar ali. Seria o John? Teria ele descoberto onde estavam e havia ido até ali para vingar-se dela? Seus pensamentos corriam, mas seu instinto defensivo foi mais rápido. Mordeu a mão do rapaz, com toda a força que possuía. Gemendo de dor, ele esqueceu-se de Athame, que já se soltara e se virara em direção à porta. Com a mão pingando sangue, o jovem puxou-a pelo braço mais uma vez, fazendo com que ela não chegasse a sequer atravessar o portal.

Tudo se passou em silêncio absoluto.

Depois de se debaterem de forma extremamente desajeitada, o garoto conseguiu empurrá-la na cama, ficando por cima e prendendo seus punhos, deixando-os imóveis. Athame conseguiu então ver seu rosto, graças à um facho de luz que entrava pela janela.

Era muito bonito. O mais belo que já vira. Cabelos castanhos e encaracolados. Olhos escuros. Tão escuros que Athame sentia que poderia afogar-se neles. Mas afinal, quem ele era? Quem ele achava que era?

– Mas que tipo de merda é es...?

– Shiu! Fica quieta!

– Como assim “fica quieta”?! Quem você pensa que é para me prender desse jeito?

– Sinto muito, mas não é hora para apresentações, lindinha.

– Vamos! Saia de cima de mim, seu imbecil! Saia logo... – cochichava- E não ouse me chamar mais assim...

– Ou...?

–... Ou corto sua garganta.

– Opa! – levantou as mãos como quem pede desculpas- Tudo bem... Pode ir...

– Engraçadinho... – Athame levantou, massageando seus pulsos. Foi em direção a uma vela e a acendeu. – Afinal, que merda é você?

– Muito prazer... Chamo-me Cycero, milady... Ao seu dispor. – Disse entre risos, fazendo uma reverência desajeitada. – E qual é a sua graça...?

Athame revirou os olhos. “Às vezes os homens são tão imbecis.”.

– Isto não é da sua conta.

– Athame...? Está tudo bem aí dentro? – Sua mãe gritou lá de fora.

– Melhor impossível. – Murmurou entre dentes.

Cycero caminhou lentamente em direção à Athame, que levou sua mão à gaveta da cômoda atrás de si, pegando algo que parecia uma adaga. Ao ver o que a garota tinha na mão, Cycero recuou dois passos.

– O que você quer aqui? Diga agora. – Athame disse ameaçadora. Seus olhos eram como chamas que desejavam poder carbonizar o rapaz.

– Calma... Tudo bem... Eu... Eu não quero fazer mal... Não quero machucar ninguém... Nem roubar... Eu só... Só preciso de ajuda... – balbuciou, abaixando o olhar.

– Ajuda?

– Eu... Fugi da minha casa. E eu não tenho pra onde ir... Por favor, eu lhe imploro... Dê-me abrigo... Em nome da deusa...

“Em nome da deusa...”. Será que poderia confiar nele?

– Olha... Eu não sei... Aliás, a casa não é minha. É da minha...

– Athame?

– Vó? – Escondeu rapidamente o punhal atrás de si.

– O que está havendo aqui? Quem é esse garoto?

– Me perdoe todo esse tumulto, senhora... Chamo-me Cycero. – Estendeu a mão para cumprimentá-la. – É um prazer imenso conhecê-la... Senhora Elysia.

– Como sabe meu nome? Minha deusa, o que houve com sua mão?

Cycero possuía um corte circular na mão direita. O sangue que havia derramado estava seco; no entanto, restara uma feia cicatriz no local, além do inchaço da região então roxa.

– Ah... Não foi nada... Acho que me machuquei em algum lugar. Não tem importância.

– Venha cá, vamos dar um jeito nisso.

Elysia levou-o para a cozinha, com Athame logo atrás. Começou a amassar ervas distintas.

– Afinal de contas... Como sabe o meu nome, rapazinho?

– Sempre ouvi falar da senhora; desde pequeno. Sou neto da senhora Myrcella, ela a conhecia...

– A Myrcella? Por onde ela anda?

– Bem... Ela faleceu... Faz um tempinho, sabe... Dizem que foi seu coração... Mas nada tira da minha cabeça que foi envenenamento...

– Quem faria uma coisa dessas?!

– Não sei... AAAI! – Senhora Elysia passara as ervas amassadas no ferimento e enrolara com um pano.

– Meus pêsames... Ela era uma ótima pessoa... Mas você ainda me deve explicações. O que veio fazer aqui, afinal?

– Vim pedir ajuda. Eu fugi de casa... E o que sempre ouvi falar, é que a senhora tem compaixão dos pobres. Imaginei que se compadeceria de mim...

– Tudo bem... Você pode passar essa noite aqui. Ernestine, por favor, traga umas colchas pra este garoto dormir.

– Quem é ele? – Disse Elizabeth entrando na salinha e apontando para o garoto.

– É o nosso convidado, querida. – Deu um sorriso e saiu da casa.

Alguns minutos depois, Athame foi para o seu quarto indignada com a bondade da sua avó. “Como ela pode hospedar em casa alguém que ela nem conhece?”. Debruçou-se sobre o parapeito da janela e, sob o luar, viu alguém ajoelhado perto da fogueira. Seu corpo numa convulsão dolorosa. De longe as lágrimas podiam ser vistas caindo no chão.

Sua avó chorava.

Senhora Myrcella era sua melhor amiga.

***

Por volta da madrugada, Athame percebeu que realmente não iria conseguir dormir. Sua cabeça estava cheia demais, e apesar do cansaço o de sono, decidiu levantar e dar uma volta. Ao seu lado, na mesma cama, estavam dormindo sua mãe e Elizabeth. No canto direito do pequeno quarto, Cycero repousava envolto em cobertores. Parecia tão menos irritante enquanto dormia... Ela não queria pensar dessa maneira.

Saiu vagando pela casa, passeando pela pequena sala olhando os maços de ervas pendurados no teto. Sentia-se muito bem e protegida naquele lugar. Sentiria falta dali; do conforto, do sossego, da tranquilidade...

Passou pela porta do fundo que a conduzia para o quintal onde, todas as noites, reuniam-se à beira da fogueira acesa. Restavam apenas as brasas. Parou por um instante e fechou os olhos, enviando uma prece silenciosa à grande deusa, agradecendo pelo cuidado e atenção, e pedindo que a orientasse em seu caminho. Sentiu um vento acariciando-lhe delicadamente a pele, tocando-lhe de forma cálida os cabelos; teve plena certeza de que suas preces haviam sido ouvidas.

Começou a andar lentamente, apreciando a sensação nos seus pés ao andar na grama macia. Passou com cautela por entre alguns pequenos pés de lavanda que desprendiam um cheiro inebriante. Olhou para o céu, cheio de estrelas. A lua imponente destacando-se; estava quase cheia. Olhando para ela, sentia como se estivesse olhando diretamente para a deusa. “Diana é o gato lua que governa os ratos estrelas”, certa vez sua avó dissera-lhe quando pequena. Ficou por uns instantes admirando o céu e a sua beleza. Quando resolveu tirar seus olhos dele, viu algo que lhe chamou a atenção; um casebre, a alguns metros de distância da casa de sua avó. Desde pequena o vira ali na fazenda, mas nunca aberto como o estava vendo. Havia alguém em seu interior, pois de dentro via uma luz; fraca, mas significante. Caminhou até ele. Sempre havia achado que era uma espécie de lugar onde eram guardados instrumentos de cultivo e ferramentas. Andou até a pequena construção de madeira e empurrou com cuidado, a porta que estava entreaberta. O lugar estava iluminado com muitas velas, pequenas e grandes, e era completamente diferente do que Athame poderia imaginar. Livros e mais livros de capas duras e grossas se acumulavam organizados em estantes apoiadas nas paredes, enquanto outros repousavam abertos juntos a papeis e mapas em cima de uma mesa. Ali dentro havia mais ervas e potes do que dentro da casa, se fosse possível dizê-lo. Olhou ao seu redor e, tentando afastar o medo da sua voz, perguntou.

–Quem está aí?

–Oi, minha querida... Que bom que você está acordada. Eu já ia mesmo lhe chamar; preciso conversar com você.

O coração de Athame deu um salto quando sua avó apareceu, de repente, atrás de si.

–Ah! Oi avó... O que faze aqui há esta hora? Não deveria estar descansando para amanhã?- disse com um sorriso.

–E o que você me diz, han?

–Touché. - Elysia riu.

–Bem, na verdade eu estou aqui porque preciso lhe passar algumas informações.

–Ah, sim... Entendo.

–Venha, filha.

Elysia conduziu Athame à mesa empoeirada e cheia de livros que estava numa das extremidades do casebre. Ao debruçar-se sobre ela, Athame percebeu que um dos papéis se tratava de um mapa, marcado com a sua rota. Sobre sua superfície, um pentagrama havia sido rabiscado e algumas palavras escritas. Nomes de reinos, de pequenas cidades e dos cinco elementos.

–Nas últimas madrugadas, andei olhando mapas e estudando a melhor rota possível pra você fazer. Achei esta aqui. Você deve começar seguindo a nordeste, no sentido do reino de Veh Geburah; este é o primeiro lugar ao qual você deverá ir. Tome, aqui está a rota com os destinos seguintes.

Athame olhou o mapa, e notou mais uma vez o pentagrama rabiscado.

–Avó, o que significa este pentagrama?

–As cinco pontas da estrela, como você provavelmente já sabe, são os cinco elementos. Ar, Água, Fogo, Terra e espírito.

–Sim, eu sei... Mas o que ele representa aqui no mapa?

–Bem... Eu imaginei que talvez... Olhe filha... Talvez cada um de seus desafios esteja diretamente ligado a cada elemento. Se eu estiver correta, o primeiro será o ar. Mas isto é apenas uma hipótese.

–Entendo... Bem, espero que eu consiga...

–Querida... - Elysia tocou o queixo de sua neta, levantando seu rosto. - Nós acreditamos em você. A deusa acredita. Ela lhe protegerá e lhe ajudará em seu caminho.

–Eu sei que ela estará comigo... – disse Athame sorrindo.

–Eu tenho outra coisa pra você. Espere aqui.

Elysia desapareceu atrás de uma estante cheia de livros enormes, e voltou pouco tempo depois arrastando um baú.

–Me ajude filha... Não estou tão bem como estava há um século... – Sorriu ofegante.

Athame ajudou-a a puxar o baú; estava realmente pesado.

Elysia abriu-o e de dentro tirou algo reto e não muito leve enrolado em um pano púrpura brilhante. Athame não sabia o que era aquilo que sua avó queria lhe dar. Depois de colocar o embrulho em cima da mesa, a anciã abriu o pano e revelou uma coisa que deixou Athame boquiaberta.

Uma espada de prata. Simples, no entanto de extrema beleza. Fina e delicada, como se tivesse sido feita por mãos de fada. Athame não sabia o que dizer. Não sabia como manejar uma espada, afinal nunca havia sequer tocado em uma.

–Era minha. Usei-a durante a grande guerra. Todos os bruxos devem forjar a sua própria espada, no entanto acredito que não há mais tempo suficiente para que você mesma faça. Tome, agora é sua.

–Avó, eu não posso... Eu nem sei como usar!

–Claro que pode! E eu tenho certeza que o Cycero lhe ajudará a manejá-la.

–O Cycero? Porque ele?

–Ah, não me diga que você acha que ele vai lhe deixar seguir sozinha...

–É melhor que deixe... Não tenho o menor interesse em tê-lo ao meu lado.

–Tudo bem então... – Disse Elysia entre risos. - Vamos, pegue-a...

Athame segurou firme o cabo da espada; não era tão pesada quanto aparentava ser. Era deslumbrante... Tão bela...

–Você precisa purificá-la.

–Purificar? Como?

–Com seu sangue. Tome, faça um pequeno corte na palma da sua mão. – Elysia ofereceu à neta uma pequena adaga que tinha sempre em seu cinto.

Com cuidado e apreensão, Athame fez corte um na sua palma esquerda, que acabou ficando fundo. Deixou que o sangue caísse e molhasse a lâmina muito afiada. Vendo o sangue escorrer ao longo da espada, ela estranhou quando o sangue não chegou a sequer pingar no chão. A espada absorveu cada gota do líquido, e em seguida assumiu um brilho tão esplendoroso, como nunca havia visto. A espada era sua.

–Pronto. Está maravilhosa. Guardei este tempo todo para o momento apropriado. Muito pesada?

–Nem tanto... Consigo segurá-la bem. – Athame levantou a espada.

–Bem, acho melhor que vá dormir. Hoje terá um dia longo. Vou ficar aqui, e fazer algumas preces. Vá... Durma bem...

–É... Acho que vou mesmo... Boa noite avó. Obrigada por tudo. – Após dar um breve abraço em sua avó, Athame virou-lhe as costas e foi em direção à porta.

–Filha... Antes de ir... Só mais uma coisa.

Athame olhou de volta para sua avó. Ela já estava ajoelhada frente à mesa com os olhos fechados. Não olhava para sua neta.

–Acho que deveria ir ao riacho pela manhã logo quando acordar, para se purificar. Vou deixar pronto aqui neste mesmo lugar, um bastão com ervas. Você deverá traçar, na beira do riacho, um círculo mágico. Invoque os cinco elementos da forma como mencionei em algumas de minhas histórias... Em seguida, você poderá acender o bastão com ervas e balançá-lo ao redor do seu corpo. Faça preces à deusa em agradecimento. E de preferência... Esteja nua.

***

Pela manhã, Athame levantou antes de todos da casa. Era o seu primeiro ritual de purificação, e tudo estava acontecendo muito rápido. Ao voltar para o quarto de madrugada, ficou mais alguns minutos observando a espada à luz da pequena vela em cima da cômoda e, em seguida, guardou-a em baixo da cama. Já pela manhã, o dia estava ensolarado e alegre. O vento brincava com seus cabelos e as borboletas faziam questão de lhe desejar feliz aniversário, voando em torno de sua cabeça. Havia chegado o dia do seu décimo sexto aniversário, e também, do seu primeiro Sabá. Saíra da casa na ponta dos pés para não acordar ninguém e estava indo em direção ao casebre. Ao abrir a porta, a primeira coisa que viu em cima da mesa foi o bastão de purificação; tinha o tamanho do seu braço e era de madeira. Em uma de suas pontas estava amarrado com cordas finas um maço de lavandas e sálvias brancas, ervas apropriadas para esse tipo de ritual. Pegou-o junto com um palito de fósforo e saiu do casebre. Havia levado consigo uma adaga que achara na gaveta do móvel em seu quarto, caso alguém a surpreendesse; a mesma que tinha usado para ameaçar Cycero na noite anterior.

Depois de andar por alguns minutos, ouviu o barulho do córrego à sua frente. Passou entre as últimas árvores que a separavam do riacho e se maravilhou com a paisagem à sua frente. Uma campina aberta, rodeada por altos pinheiros e cortada pelo córrego. Lindas flores de diversas cores se espalhavam pelo local. O sol lhe tocava a pele como uma carícia serena. Athame andou com os pés descalços em cima da grama macia; o musgo das pequenas pedras lhe fazia cócegas. Olhou em volta. Não viu ninguém, então sentiu-se completamente à vontade para se despir. Deixou o bastão apoiado em uma pedra do tamanho de sua cintura que se encontrava ao seu lado, e lentamente tirou suas vestes puídas deixando-as caídas no chão. Sentiu um arrepio quando o vento lhe tocou os bicos dos seios, deixando-os rígidos. Seus cabelos negros lhe caíam nas costas. Virou-se para leste e disse:

–Ar. Você que está comigo em todos os tempos. Você que acalenta e acalma. Eu peço que venha até mim e leve toda insegurança e temor.

O vento ao seu redor agitou-se em resposta, fazendo com que seus cabelos se levantassem.

–Água. Você que limpa. Que mata a sede. Que nutre as pessoas e os campos. Eu peço que venha até mim e lave do meu corpo toda impureza e da minha alma todo ódio. – Disse, virando-se para oeste.

Sentiu em seu corpo um frescor, e em suas pernas uma sensação diferente, como se ondas batessem nelas. Olhou então para sudoeste e falou:

–Fogo. Você que aquece. Você que conforta. Você que destrói, mas também restitui. Eu peço que venha até mim e queime todo o medo e todas as lembranças ruins.

Sentiu como se estivesse rodeada por chamas; mas elas não a queimavam. Aqueciam-na com lentidão e cautela, como se beijassem seu corpo. Sentiu ao seu lado, em cima da pedra grande, o barulho do crepitar de chamas; o fogo havia acendido seu bastão. "Isso foi muito útil. Obrigada."

Olhando para sudoeste, disse:

–Terra. Você que alimenta. Você que transmite segurança. Você que fortifica. Eu peço que venha até mim e me sustente quando for preciso.

Sentiu mais uma vez o cheiro das lavandas de sua avó, cheiro de terra e grama. Sentiu as pedrinhas abaixo de seus pés.

Por fim, virou-se para norte e levantando seus braços, disse:

–Espírito. Você que preenche. Você que faz parte da deusa. Você que faz parte de mim. Eu peço que venha até mim e me transmita o amor, a compreensão e a ajuda da deusa quando eu mais precisar.

Depois de abrir o círculo, Athame virou-se para a pedra e pegou o bastão. Suspendeu-o vendo a fumaça perfumada se desprender das ervas. O fogo apagou-se, deixando sozinha apenas a brasa. Fechou seus olhos e pensou na grande deusa.

–Grande deusa. Eu estou aqui para fazer o que me foi destinado. Não sou a melhor pessoa, nem a mais apta. Mais estou totalmente disposta a servi-la e salvar meu povo. Obrigada pela confiança e pela benção. Sei que me ama, e a amo também. E sei que posso contar com a sua ajuda quando precisar.

Abriu seus olhos. Sentia-se extremamente bem e viva. Agradeceu a presença dos elementos e baniu o círculo. Em seguida, admirou o riacho. Sentiu uma enorme vontade de lançar-se nele. Decidiu que não haveria problema e entrou no rio. A água estava uma delícia. Deu alguns mergulhos. Pequenos peixinhos coloridos passavam por entre suas pernas fazendo-lhe cócegas.

Pensou que já estava na hora de sair do riacho e voltar para casa. Assim o fez. Caminhou até onde estavam caídas as suas vestes e as levantou. Estava prestes a se vestir, quando ouviu um assovio lascivo. Olhou para os lados de forma urgente.

–Posso participar do banho com você, lindinha?

–O que?! O que você pensa que está fazendo aqui? Vai embora! – Seu rosto ruborizado queimava de ódio.

–Calma... Só achei que esse banho foi extremamente refrescante, e pensei que iria gostar da minha... Companhia. – Disse caminhando lentamente na direção da garota, com um meio sorriso.

–Afaste-se de mim, seu imbecil. Agora! – Olhou para o chão procurando a adaga que havia deixado ali. Não estava mais ali.

–Procurando alguma coisa? – Ainda andando em sua direção, Cycero exibia a pequena adaga em sua mão direita. – Pra que você a quer?

–Pra acabar com você, oras! – Athame se escondia atrás de suas vestes.

–Hum... Resposta errada, lindinha. – Disse ele, lançando a adaga para trás de si.

–Não chegue perto de mim. Eu estou avisando.

–Ei... Eu não vou fazer nada de mal a você... É só que... Não sei. Sinto-me atraído por você.

–É? Que pena. – Athame abaixou-se e pegou o bastão de purificação e avançou pra cima de Cycero.

Não se importava se a sua roupa tivesse caído e que estivesse nua, ou que Cycero estivesse olhando fixamente para seu corpo. Preocupou-se apenas em bater nele com o bastão. Foi o que fez.

Cycero caiu no chão gemendo de dor enquanto Athame curvava-se sobre ele e batia com o bastão em suas costas e pernas.

–Para... Sua... Maluca... Ai!!!

–Isso... É pra você... Aprender... A não... Se aproximar de mim... Sem minha autorização...

–Tudo bem... Desculpa... Porra! Para de me bater! Ai!

Athame virou-se e vestiu sua roupa, enquanto Cycero estava deitado de bruços.

–Cycero?

–Oi... – Olhou para ela. Tinha um filete de sangue escorrendo pelo nariz e alguns hematomas nas bochechas.

–Desculpe.

–Tudo bem.

–Vem cá. – Ofereceu-lhe a mão para ajudá-lo a levantar.

Levou-o até as margens do riacho e limpou seu sangue.

–Não me surpreenda mais dessa forma, sim?

–Certo milady.

Voltaram para a casa. Elysia, Elizabeth e Ernestine estavam sentadas à mesa comendo e conversando. Elisabeth excitada com a festa que haveria à noite, Ernestine agitada com os preparativos; no entanto, Elysia parecia um tanto desanimada. Conversava pouco e abaixava o olhar.

Athame sentou-se com Cycero na mesa e começaram a comer. Elizabeth olhou para o cabelo molhado de sua irmã e abriu bem os olhinhos.

–Ame! Você tava no riachinho?

–Sim... Estava lá...

–Você me leva lá depois? Por favorzinho...

–Claro que levo...

O dia passou muito rápido. Por volta das sete horas, os convidados começaram a chegar. Bruxas, Magos, Feiticeiras e Druidas se assentavam ao redor da fogueira acesa e conversavam sobre vários assuntos. Mesas cheias de frutas, pães e vinhos atraíam os olhares. Um bruxo de longa barba branca com vestes púrpura tocava uma flauta de bambu. Outro de grandes cabelos negros tocava uma ocarina rudimentar. Uma mulher de cabelos vermelhos tocava sua lira; e Athame estava em seu quarto olhando seus vestidos velhos, sem saber qual o mais aceitável, quando sua mãe entrou trazendo um embrulho dourado.

–Pensei que iria querer algo especial para vestir em seu aniversário...

–Mãe... Não precisava...

–Não é muito, sabe... Era meu quando eu tinha sua idade. Acho que vai ficar bonito em seu corpo.

Athame tomou o pacote em suas mãos e o desembrulhou. Deparou-se com um tecido de seda vermelho. Estendeu o vestido e vi que tinha mangas longas e uma fenda na perna esquerda que ia até a metade da sua coxa. Com ele estava um corpete duro, prateado. Lembrava uma armadura.

–Muito obrigada mãe... De verdade.

–Filha... Eu quero que me perdoe. Por tudo. Por ter sido cega e fraca este tempo inteiro. Perdoe-me.

–Mãe, a culpa não foi sua... Eu sei que não foi.

Mãe e filha se abraçaram e se despediram. Athame, deslumbrada, vestiu seu novo vestido e calçou suas botas. Passou os dedos por entre os cabelos e se olhou no espelho. Estava realmente bonita. Seus grandes cabelos negros caíam em cachos pelas costas e lhe emolduravam o rosto. Abaixou e pegou a bela espada em baixo da cama e prendeu-a em seu cinto de couro, ao lado da adaga. Resolveu ir à festa.

Saiu de seu quarto e andou pela casa. Quando passou em frente ao quarto de sua avó, viu-a ajoelhada em direção à janela, rezando. Decidiu deixá-la sozinha. Saiu da casa pela porta dos fundos, entrando direto na concentração de bruxos. Sentiu olhares em cima de si e sorriu levemente para eles. Do outro lado da celebração, Cycero estava recostado em um pinheiro com uma taça de vinho na mão. Ergueu-a para Athame, como num brinde. Ela sorriu-lhe.

Sua mãe, perto da mesa onde estavam as frutas, atraía olhares masculinos com toda a sua beleza e sensualidade. Elizabeth conversava com um grupo de sábios druidas sobre como era conversar com árvores. Mesmo estando entre tantas pessoas desconhecidas, Athame sentia-se bem.

Sua avó enfim chegou ao local, e agradeceu a todos pela presença. Disse muitas palavras. Falou que essa era noite de alegria e celebração, pois além de ser uma festa sagrada, era aniversário de sua neta mais velha, a qual salvaria a todos. Apresentou-a a todos e enfim, disse que todos poderiam beber como quisessem e comer o quanto quisessem.

Quando a música começou, Elizabeth segurando sua bonequinha começou a demonstrar sua alegre dança ao redor da fogueira e algumas bruxas a acompanharam sorrindo no ritmo das palmas dos bruxos. Elysia estava sentada conversando com mais outras duas mulheres. Athame então caminhou até Cycero que estava sozinho.

–Então hoje é seu aniversário...

–Bem... É o que parece.

–Vamos... Deixe de mau humor... Tome. Dê um bom gole neste vinho.

–Eu sou assim. Acostume-se. – Tomou a taça de sua mão e virou todo o líquido, que lentamente aqueceu seu corpo.

–Eu não tive como lhe dar algo melhor... Até por que você me mutilou duas vezes...

–Eu já pedi desculpas. – Athame revirou os olhos.

–... Mas encontrei esta flor. Achei-a linda e diferente. Lembrou-me você. – Cycero ofereceu-a a flor. Por um instante não parecia tão imbecil.

–Então obrigada... – Athame aceitou a flor com um sorriso.

–Ah sim, então você sorri... Achei que tivesse perdido seus dentes quando quase arrancou minha mão...

–Você não pode estar falando sério...

–Não... Na verdade, ia lhe dizer que acho seu sorriso o mais lindo que existe.

–Está bem, eu não vou deixar você me beijar.

–Mas... Por quê?

Elizabeth veio correndo e pegou a mão de Athame.

–Ame, você disse que ia me levar ao riacho... Eu quero ir agora...

–Não Lizie... Hoje não vai dar. Depois eu a levo.

–Depois não serve. Você vai embora.

–Elizabeth, está de noite. Podemos nos perder e...

–Deixe pra lá! Fique aí com seu namoradinho.

–Elizabeth!

A menininha saiu correndo na direção dos pinheiros. Athame correu atrás dela. A pequena menina corria e dava gargalhadas.

–Bem, afinal você veio!

–Elizabeth, pare já!

Elas corriam, e cada vez mais se afastavam da festa. Não sabia onde estavam quando sombras as rodearam.

–Então vocês vieram até nós não é? Suas pequenas bruxas putinhas.

–Saiam de perto de nós. Agora.

Soldados armados as rodearam. Eram cinco.

–E você pequenininha... Quem a visse não acharia que você é uma bruxa imunda...

–Solte a minha irmã, seu filho da puta!

–E você, hein? Acho que você pode nos servir para alguma coisa... – Disse outro atrás de Athame, agarrando seu queixo com força. - Tão bonitinha...

–Bem, acho que devemos levá-las conosco, não? O padre vai adorar esses presentinhos. Ele vai comê-las e depois jogá-las na fogueira.

–Se bem que poderíamos fazer isso por ele... – Todos riram.

–Socorro!!

–Shiu! Fica quietinha garota... Eles não vão ouvi-las. Afinal, daqui a pouco eles estarão mortos também.

–Não se eu puder impedir!

Cycero levantou sua espada e arrancou a cabeça de um dos soldados que estavam atrás de Athame. O outro olhou assustado e empurrou Athame no chão e em seguida a espada atravessou-lhe o peito. Assustada, Athame olhou para Elizabeth. No entanto os guardas a estavam levando embora.

–Ame! Socorro! – Elizabeth gritava e chorava, com os braços esticados.

–Lizie! Eu vou te salvar! – Athame corria na direção dos guardas que levavam Elizabeth.

Um terror crescia no peito de Athame, e ela não sabia o que fazer. Só conseguia correr e correr; até que tropeçou em uma pedra e caiu em uma poça de lama. À sua frente estava caída a bonequinha de pano de Elizabeth. A garota pegou-a e olhou pra frente em busca de sua irmã.

Sua pequena irmã havia sido levada.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado :3