Malkuth escrita por Lilith, Sr Paganini


Capítulo 3
Reconciliação


Notas iniciais do capítulo

Oi pessoas,
Demorou um pouquinho para postarmos este capítulo, mas ele está aqui! Espero que gostem...
Boa leitura.
Lilith e Paganini



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/575903/chapter/3

Ao adentrar na salinha apertada, mas aconchegante, Athame e sua irmãzinha sentiram-se igualmente tranquilas e felizes. No entanto, Ernestine não sentia-se tão satisfeita quanto suas filhas. Havia tido um grande trabalho para encontrar um homem infiltrado na sociedade cristã; Fizera isto com a pretensão de afastar de si e de suas pequenas as suspeitas de bruxaria, para que tivessem uma tranquila vida normal. Porém encontrava-se novamente na casa de sua velha mãe; de nada adiantara todo sacrifício. Achava que o destino havia sido demasiado duro consigo e, a cada dia, amaldiçoava sua família e as deusas. A cada surra, a cada estupro, oferecia em pensamento as lágrimas amargas e as dores para sua mãe; seu passado a marcava profundamente.

Sua mãe – a velha anciã- Elysia (dizem por aí que certa vez seu pai teria ido aos Elíseos e por isso, o seu nome), sentia-se extremamente aliviada por tê-las ali mais uma vez. Todos os dias fazia preces às deusas pedindo que as protegesse. Que estivesse com elas. Detestava o rumo que a sua filha havia tomado; Casar-se com um dos malditos, conviver com um deles? Repugnava essa ideia. Tinha se decepcionado quando esta decidiu abandonar seu povo e seus conhecimentos, mas não deixaria que o mesmo acontecesse com as suas netas. As amava incondicionalmente, e queria repassar seu maior legado, sua sabedoria.

Numa de suas preces, a suprema deusa lhe apareceu; ficara maravilhada com tamanha beleza e poder. Há tempos não a via em todo o seu esplendor. Ela lhe dissera que os bons tempos não demorariam a chegar. Que chegaria o tempo em que seu povo receberia a liberdade. “Uma poderosa e jovem deusa será descoberta e se levantará dentre os mortais para salvar o povo aflito”. Dissera-lhe que deveria ter com sua neta mais velha Athame e, para esta, ensinar todos os seus conhecimentos; “Mostre a ela todas as magias possíveis; Instrua-a. Pois o futuro dos sete reinos encontra-se nas mãos desta jovem.”. Elysia prontamente aceitou e, antes mesmo do nascer do sol - logo quando os ventos lhe trouxeram a notícia do regresso iminente-, levantou-se e foi preparar a casa para recebê-las.

Depois de todos os abraços e boas vindas, e de tê-las confortado em sua pequena cozinha, acalentadas pelo doce cheiro mate de chá fervente, Elysia olhou-as por um instante. Notou que estavam pálidas e magras demais, e que possuíam extensos hematomas em seus corpos. Há algum tempo não as via... Tinha certeza que não levavam a melhor vida na Malkuth atual, e ainda mais com aquele imbecil com o qual sua filha estava casada, mas não imaginava que a situação era tão grave. Sua filha antes possuía grandes cabelos grossos e negros, esbanjava uma enorme sensualidade até mesmo na forma como se movia; agora parecia frágil e comum, com os cabelos malcuidados, e as costas encurvadas. Athame, na flor da sua idade não exalava toda jovialidade que poderia. Parecia cansada, preocupada e triste. Lembrava-se dela tão falante quando pequena... Tão sorridente agitada. Apenas a pequena Elizabeth conservava e saboreava a inocência e felicidade fácil da infância, sempre com sua pequena boneca de pano esfarrapada e puída.

– Eu sabia que em um momento breve, as tornaria a ver. Minhas filhas... Como senti saudades suas... Todas as noites rezei... Todas... Desde que...

– Mãe, por favor. Não é hora de falarmos sobre isso.

– Tudo bem... Você é quem decide. Bem, acho que vocês merecem um pouco de descanso... Tomem, bebam esse chazinho quente. Depois vocês podem repousar... Parecem muito cansadas...

Athame tomou dois bons goles do chá e sentiu-se aquecer por completo, como se houvesse bebido amigáveis raios solares. O calor que a bebida lhe transmitia parecia querer derreter toda a angústia e preocupação que lhe afogava. Sentiu-se sonolenta; havia passado por tantas coisas até aquele momento, e o dia tinha apenas acabado de começar. O entorpecimento a envolveu, e só despertou quando sentiu as mãozinhas enrugadas da sua avó afagando os seus cabelos. Eram a únicas que restavam na cozinha.

– Vó... Onde está mamãe?

– Sua mãe está observando as minhas lavandas, querida. Ela gosta disso... Dê a ela um tempo.

– E a Elizabeth... Onde...?

– A pequena acabou caindo no sono... Levei-a para o novo quarto de vocês. É um tanto pequeno, mas acredito que vá comportar todas vocês. É o melhor que tenho a lhes oferecer...

– Está ótimo, avó... Obrigada... A senhora não sabe o quanto lhe agradeço...

– Não agradeça minha filha. – Elysia tomou as mãos de Athame entre as suas, tão pequenas, mas fortes. – Tenho absoluta certeza de que você recompensará a todos nós...

Athame baixou os olhos. Sentiu novamente o peso da responsabilidade que lhe fora dado, e temeu. Temeu o provável fracasso. Não queria desapontar uma nação... Muito menos uma deusa. No entanto, sentia-se tão fraca, tão pequena e indefesa. Não achava que conseguiria.

– Bem... Acho que um banho lhe fará bem. Volto já filha.

A anciã retirou-se e deixou Athame mais uma vez sozinha com seus pensamentos, tendo de encarar o destino que lhe fora imposto. Por que ela? Por que não outra? Haviam tantas por aí, mais fortes, mais bonitas... Até mais inteligentes. Não entendia o que possuía de tão especial. Sempre se considerara normal. A deusa havia lhe dito em sonho que a sua avó a instruiria sobre o necessário. Mas ainda sentia medo... Não sabia o que a aguardava logo em frente.

Elysia voltou para a cozinha, desta vez para levar Athame consigo. Um cômodo no fundo do casebre, humildemente pequeno como todos os outros. O padrão amadeirado do chão que se repetia do início ao fim do lar, e junto com ele as flores e plantas aconchegadas em pequenos canteirinhos repousando gentilmente nas paredes. Ervas amarradas pendiam do teto e um cheiro doce desprendia-se no ar. Um grande buraco no chão não passava despercebido; uma construção rudimentar que lembrava uma banheira estava cheia de água quente, e ervas cheirosíssimas flutuavam. O vapor que emanava da grande tina era demasiadamente convidativo, e Athame sentia-se seduzida de uma forma como nunca sentira-se antes. Seu corpo gemia por tranquilidade. Despiu-se lentamente, sem se importar com o fato de que não estava sozinha ali. Tudo que queria era apenas entregar-se aos braços daquele calor abaixo de si. Com cautela, entrou no buraco mergulhando seus pés, um de cada vez. Lentamente, como quem beija o infinito... Para sentir cada gosto, cada sensação.

Sentou-se e deixou que os pensamentos se esvaíssem de sua mente. Repousou sua cabeça, jogando seus longos cabelos cor de mogno para trás. Sentiu mais uma vez a mão cuidadosa da sua avó acalentando-lhe. Massageando seu couro cabeludo, descendo os dedos pelos fios, tocando os nós nas suas costas... Sentira saudade de ser cuidada. Sentira saudade de sua avó.

– Eu sei que você tem sofrido muito, filha. Mas a deusa não se esquece de nós... Nunca esqueceu.

Athame sorriu e lembrou-se das palavras da grande deusa... “Eu a amo, minha filha. Amo todos vocês. Nunca os esqueci, nem os deixei desamparados. O meu povo me pertence, a eles dou proteção e amor, mesmo que me virem às costas”... Sentia-se tranquila, enfim.

– Avó, eu preciso de algumas... Explicações...

– Tem certeza de que não prefere repousar primeiro?

– Não, obrigada... Eu realmente preciso saber o que se passa... Estou muito confusa...

– Bem... Conte-me o que houve; talvez eu possa ajudá-la.

– Tudo bem... – Tomou fôlego. – Tudo isso começou, há muito tempo. Quando eu era pequena, costumava sonhar com um jardim. Um jardim muito belo, cheio de cascatas, de flores e cheiros. E havia uma mulher. Ela sempre sorria pra mim, às vezes de longe... Às vezes bem de pertinho. Aparentava amar-me com uma adoração que nunca entendi.

– Prossiga... – Dizia a anciã, sorridente.

– Na verdade, há um bom tempo não tenho mais esses sonhos... Até que...

–Até que...?

– Até que hoje eu o tive mais uma vez. Eu via Malkuth feliz, mas em seguida a via embebida em horror... Depois fui parar no mesmo jardim; e uma linda voz me chamava. Então eu a vi de novo. A deusa...

–... Dizia-lhe que você tem uma grande tarefa pela frente.

– Sim! Como a senhora sabe?

– Ela apareceu a mim também. Disse-me eu deveria instruí-la dos saberes, pois você haveria de fazer uma longa caminhada. Athame, eu irei ajudá-la. Irei ensiná-la tudo o que sei. Sei que o futuro de todos está em suas mãos. Você só tem até a próxima lua cheia, daqui a cinco meses para se preparar. – Pôs-se de pé e virou-se, recolhendo alguns maços de ervas e pergaminhos- Athame, eu sabia que havia algo de extremamente grandioso e especial guardado para você desde que nasceu... Os ventos sempre me disseram que...

– Não!

Tudo acontecera tão depressa. Num momento, conversava com sua avó sobre seu sonho e seus dilemas; no outro, sua mãe resolvera sair de trás das cortinas gastas e irromper no cômodo emanando fúria.

– Eu não vou permitir que você faça isso! Não com a minha filha!

– Mamãe...

– Cale a boca, Athame. Você é apenas uma criança, não sabe de coisa alguma.

– Ela não é apenas uma criança, Ernestine. Você sabe muito bem disso. Ela é a filha da deusa.

– Ela é a MINHA filha. O meu dever é protegê-la de você e da sua horda de hereges.

– Protegê-la... Oh sim... Como fez até agora? Entregando-a de mãos beijadas a surras e estupros. Você só pode estar maluca mesmo...

– Ah com certeza eu sou a maluca. Não sou eu que ando dizendo por aí que escuto vozes nos ventos, que vejo deusas inexistentes. – As lágrimas corriam quentes pelo seu rosto. - Tudo o que eu quis foi protegê-las... Afastá-las desse mundo irreal... E agora tudo acabou e estou aqui de novo, nessa fazenda miserável...

– Bem, a menos que você tenha outro lugar para ir, receio que terá de ficar por aqui mesmo; acho melhor se acostumar com a ideia. Pelo amor da deusa, você não tem nem onde cair morta... Ernestine, você sabe qual o destino da Athame. A deusa a escolheu...

– Deusa? Que deusa? A mesma que fez este lugar permanecer em calamidade? Sinto muito, mas não quero a minha filha nas mãos desta deusa.

– Agora você vai me escutar! Acha que só você tem a razão? Acha que fez a melhor escolha da sua vida abandonando seu passado e casando-se com um filho da puta? Tenho uma notícia Ernestine, não fez! – sentou-se na beirada da banheira e recuperou o fôlego. - Você me decepcionou. Suas atitudes me decepcionaram. Se você quer viver em desgraça com as deusas, o problema é todo seu. Mas não pense que eu deixarei as minhas netas sofrerem com você. Você é burra Ernestine. Burra. Uma grande imbecil. Você é tão linda, poderia ter encontrado alguém melhor!

– Não! Não poderia... – Saiu do cômodo aos soluços. Por uma janela à sua direita, Athame podia vê-la correndo em direção aos pinheiros distantes de folhas espessas, até desaparecer por completo.

Ficaram por um tempo em silêncio, esperando a raiva e a tristeza se esvaírem pouco a pouco do lugar. Athame estava sem palavras; nunca vira sua mãe daquela forma. Ela sempre fora tão frágil, submissa... Vê-la daquela forma a deixou surpresa.

Sua avó ainda estava sentada no mesmo lugar, respirando com dificuldade. Há um instante parecera extraordinariamente mais jovem, expirava poder e confiança, no entanto, naquele momento, aparentava ter a mesma centena de anos que tinha. O corpo frágil aparentemente cansado. O tórax delicado subindo e descendo devagar, lutando para reter o ar nos pulmões. Athame não sabia como ajudar.

– Vovó... Ame... O que aconteceu? Cadê a mamãe... – Elizabeth entrara no cômodo. Seus pezinhos descalços e a bonequinha sempre à mão.

– Lizie, olha...

– Você já acordou minha filha? – Elysia simulou estar surpresa, recompondo-se. – Sua mãe foi tomar um pouco de ar, mas volta logo. E então? Quer tomar um chocolate quente?

– Quero sim! – Abriu seu grande sorriso de dentinhos brancos e alinhados.

Elysia deu a mão para sua netinha e juntas andaram a caminho da pequena cozinha, mas antes olhou para sua neta mais velha com preocupação. Athame assentiu, pedindo a ela silenciosamente que não se preocupasse. A anciã saiu então deixando Athame sozinha. Apenas com seus pensamentos e temores a lhe servirem de mórbidas companhias. Deixou então que seu corpo relaxasse por completo e se entregasse de uma vez ao entorpecimento.

Mesmo que o seu corpo estivesse calmo, sua mente não parava. Em sua cabeça rodopiavam imagens; rostos, sorrisos... Vozes e cheiros... Relembrava diálogos... Sentia as dores mais uma vez... Até que, enfim, tudo caiu em completa escuridão.

***

Acordou um tempo depois. Achava que havia dormido dias, mas na verdade tinha repousado apenas alguns minutos. Continuava extremamente cansada, e notou que ainda estava na banheira com mais da metade do seu corpo imerso na água com ervas. A água não estava mais tão quente, e seus dedos já estavam enrugados. Decidiu que era hora de sair dali, pois sua barriga havia começado a doer de fome. Ao seu lado, algo que aparentava ser uma toalha descansava dobrada. Pegou-a com delicadeza e puxou-a para si. Cheirava a lavanda, e era o tecido mais macio que já havia tocado em sua vida inteira. Encostou-a em seu nariz, e ficou assim por mais uns instantes, aspirando a doce fragrância que a envolvia. Por fim, decidiu que era hora de se cobrir e vestir-se.

Após vestir um de seus pouquíssimos vestidos esfarrapados, entrou na pequena cozinha. Sua irmãzinha estava sentada na beirada da mesa e balançava suas perninhas. Tinha a boca suja de chocolate. Athame sorriu; a amava muito. Sua avó mexia num caldeirão que continha um caldo fumegante e ao ouvir os pés de sua neta arrastando no assoalho, virou-se.

– Você estava tão sossegada que não quis acordá-la. Deve estar com fome, não?

– Sim, muita...

Elysia pegou uma tigela e despejou uma porção do caldo fervente, oferecendo-a a Athame. A jovem tomou-a em suas mãos e a pôs sobre a mesa. Sentou-se na cadeira mais próxima e começou a engolir com urgência, não importando-se com a temperatura. Estava divino.

O dia correu muito sossegado. Conversaram sobre muitas coisas. Elysia contou às suas netas sobre sua juventude, sobre a antiga Malkuth. Contou como havia conhecido o pai de sua única filha, Ernestine; e também como o havia perdido. “Foi horrível... Quando percebi, eles já o tinham levado... Era a mim que eles queriam...”. Athame lembrou que a mesma coisa havia ocorrido com seu pai... Era pequena demais para se atentar aos detalhes, mas lembrava disto. Sentia sua falta a cada dia, e sabia que se ele estivesse consigo tudo seria diferente. Elizabeth nem o conhecera. Na verdade, sua irmã era filha do John, o homem imundo de quem todas tinham péssimas lembranças.

Ernestine tinha passado o dia se escondendo entre os pinheiros, não muito longe. Só precisava de um tempo para pensar sobre a situação. Tudo tinha desabado sobre sua cabeça... Não sabia o que fazer. Resolveu voltar para a casa de sua mãe; lá, pelo menos teria abrigo para si e suas filhas.

Ao aproximar-se da pequena casinha, sentiu colmo se fosse criança mais uma vez. Como se pudesse de novo correr entre as árvores, arrancar lavandas e gritar de felicidade. Lembrou-se da época em que conhecera o pai de Athame e havia se apaixonado de forma instantânea por ele. Seus olhos tão castanhos e dóceis. Era tão belo... Lembrava-se das noites em que iam juntos para perto do riacho e se beijavam. Amavam-se a noite inteira ao luar. Athame parecia-se tanto com ele... Era sua culpa que tivesse ido tão cedo. Sua culpa.

Entrou na casa e ouviu a voz da sua velha mãe, vinda da cozinha, contando histórias para suas filhas.

–... E a sua mãe quando era pequena, era igualzinha a você Elizabeth. Já você Athame, se parece mais com o seu pai... Pois bem Lizie, como eu dizia... Você se parece bastante com sua mãe. O sorriso, o jeito. A teimosia. – Ela sabia que Ernestine estava escondida escutando. Ernestine também sabia. Resolveu entrar; estava com muita fome.

– Oi...

– Vamos... Sente-se logo antes que sua sopa esfrie.

Elysia e sua filha trocaram olhares cúmplices como de quem se desculpa. Após um breve sorriso, Ernestine abaixou sua cabeça para a sopa e começou a comer em silêncio ao som da tagarelice estridente de Elizabeth.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado :3