Malkuth escrita por Lilith, Sr Paganini


Capítulo 2
Regresso


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem :3



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/575903/chapter/2

Sentia como se flutuasse.

Alto e leve. Planando.

O vento gentilmente soprava seus cabelos. Acalentava sua pele com sua enorme delicadeza. A abraçava.

Flutuava sobre a pequena Malkuth, que estava exatamente como havia sido um dia. Feliz. Colorida, alegre e cheia de vida. As pessoas celebravam, com danças e rituais, dia e noite. Via cada pedaço de Malkuth; até seus cantos mais íntimos. Via os lavradores, felizes e satisfeitos, com a sua colheita. Via as crianças brincando soltas nas ruas. Via a sua avó em sua fazenda, queimando lavandas e sálvias para purificação. Via sua mãe, feliz outra vez, segurando sua irmãzinha. Via seu pai... Mas não enxergava seu rosto... Tão frustrante... Perturbador...

No entanto, o vento sabia que não havia mais tempo para admirações. Deveria levá-la dali.

Começou a ser puxada para sul; sentia-se angustiada. “Por que diabos não posso admirar mais? Tudo parece tão diferente por aqui...”. Queria poder ver. Queria poder descer e dançar com eles. Malkuth a chamava; “Venha... precisamos... de... você...”. Mas o vento a arrastava cada vez mais forte e rápido... Não era mais gentil e delicado. Não acalentava mais a sua pele. Era frio e cortante. “Venha!”. Doloroso. “Não reclame tanto!”. Mortal. Seu corpo doía; uma dor real. Cortes e hematomas apareciam em seus braços quando passava por entre os galhos das árvores. Lá em baixo, via Malkuth se metamorfoseando.

As pessoas que antes dançavam, agora estavam escondidas, acuadas. As crianças não brincavam mais nas ruas; estavam trancadas em casa. As plantações não vingavam. Sua avó estava agora escondida. Seu pai, morto. Sua mãe estava sendo espancada e estuprada. Doença e morte se espalharam. Sangue escorreu sobre o chão de Malkuth. O mesmo havia ocorrido com os seis reinos vizinhos. O povo chorava.

Em meio a tamanho desespero, Athame desejou morrer. Angústia e medo enchiam seu coração. Não sabia o que fazer. Malkuth morria... Morria...

Então ela ouviu uma voz. Doce e suave. A chamava calmamente... “Minha filha... filha minha... venha para mim... venha Aradia... alegre-se comigo”. Não fazia a mínima ideia de quem era Aradia, muito menos que a estava chamando. “Que tipo de pessoa pode ficar tão calma diante de tamanha desgraça?!”. Sentia raiva; queria parar de ouvir aquela linda voz... Suas pernas e braços se debatiam. Lutavam contra o vento, que insistia em arrastá-la para cada vez mais longe de Malkuth, e mais perto daquela voz. “Venha filha... Não tenha medo... Quero senti-la outra vez...”. Não entendia o que estava havendo ali. Porém não tinha mais forças para lutar; deixou que fosse arrastada. Seu corpo parecia mais leve que o normal. Estava inerte, dopada... Havia se esquecido de suas angústias. Não entendia o que estava acontecendo, mas permanecia em silêncio. E o silêncio a invadiu. Preencheu cada espaço amargo de seu corpo. Pensou que estivesse morrendo, pois sentia uma calma imensa. Deixou então que seu espírito se sentisse livre para alçar vôo de dentro de si. Mas ele continuou exatamente onde estava. Até que o vento resolveu deixá-la ali; havia chegado a seu destino.

“Aradia? Filha, onde está você?” ainda conseguia ouvir...

Sentiu que podia apenas flutuar mais uma vez. Olhou o lugar onde estava, esperando reconhecê-lo. Mas nunca o havia visto. ”Bem... - pensou-... lembro-me vagamente deste local... costumava vir aqui brincar quando criança, se não me engano...”.

Era fascinante. Extremamente lindo e diferente de tudo que já havia visto. Cascatas cristalinas brotavam de estátuas de mulheres belas. Flores e mais flores, tão lindas e diferentes, que nunca havia visto. Exalavam um cheiro acolhedor... Cheiro de felicidade. “Ah sim, Aradia... Aí está você filha... senti tantas saudades...”.

Athame virou-se e então soube. Sim. Conhecia aquela mulher. Sempre a vira. Desde muito pequena. Em seus sonhos... Mas sim; a conhecia. Vira imagens, pinturas... Tudo era tão claro agora. Não conseguia tirar os olhos dela. Seu coração batia acelerado no peito, parecia querer explodir... A grande deusa que tanto ouvia falar... A grande deusa-mãe. Sonhara com ela em muitos dias de sua infância, mas nunca com tanta clareza. E só ali tinha notado quem ela realmente era...

Era tão linda... Tão estonteantemente bela... Athame estava fascinada com tamanha beleza... Seu rosto era de uma beleza descomunal, inumana, e exalava uma sabedoria e poder inigualáveis. “Venha cá, minha filha... Preciso lhe mostrar algo...”. Athame não fazia ideia do porque lhe chamava de tal forma, no entanto isso a reconfortava demasiadamente. Seguiu-a prontamente.

“O que você vê?” a deusa levou sua mão abaixo, na direção onde habitavam grandes colinas repletas de altos pinheiros.

“Vejo Malkuth... E os reinos vizinhos...” disse, trêmula.

“E eles parecem felizes? Parecem bem de alguma forma?”

“Nem um pouco... Há sofrimento... Morte... Dor...”

“Exatamente.” Tomou nas suas as mãos de Athame e a fez ficar frente a frente consigo. “O povo sofre, filha. O povo sofre. Nem sempre foi assim, mas as coisas mudaram... E o povo teve que pagar... Mas já chegou a hora. Isso tem que acabar. Já. E você está aqui porque tem um propósito; você salvará o nosso povo. Você não nasceu porque é simplesmente igual aos outros mortais. Você nasceu porque eu quis que nascesse. Você é especial. E está aqui agora para cumprir a sua missão.”

Athame não sabia o que fazer muito menos o que sentir. Náuseas enchiam o seu corpo. Ela? Como poderia ser? O que faria? Nunca se sentira especial... Nunca tivera coragem de fazer nada... Nunca tivera forças para contar sobre a violência e os abusos que ela e sua mãe sofriam em casa... Como haveria de ter coragem para salvar um povo...

Mas como teria coragem também de dizer não a uma deusa? Sentia-se confusa...

“Sei como todas estas informações devem lhe ser perturbadoras. Mas você deve fazer isto. É chegada a hora. Filha, você deverá fazer uma longa viajem. Nessa viagem você precisará de muito cuidado, muita coragem e força de vontade e, sobretudo, confiança, pois escolhas muito duras deverão ser feitas.”

“Mas... pra onde irei? Não sei ao certo...”

“Você deverá ir ter com sua avó. Mandarei os ventos a comunicarem que ela a deverá instruir de tudo, antes da noite de véspera do seu décimo sexto aniversário, quando deverá partir. E lembre-se: todos dependem de você. Todos.”

Athame se lembrou do sofrimento de sua mãe. Lembrou das surras que levava. Das colheitas ruins, das doenças, do sofrimento...

“Farei o meu melhor.”

“Eu creio nisso.”. A deusa então beijou-lhe os lábios delicadamente e sorriu “Você tem a minha bênção, filha. Agora vá.”

Athame então seguiu entorpecida, o que achava que fosse, o caminho de volta.

Quando já havia tomado uma distância significativa, a deusa chamou-a novamente. Não precisava gritar; sua voz poderosa conseguiria facilmente ressoar por todos os cantos do mundo.

“Eu a amo, minha filha. Amo todos vocês. Nunca os esqueci, nem os deixei desamparados. O meu povo me pertence, a eles dou proteção e amor, mesmo que me virem às costas. Vá. Eu acredito e confio em você. Eu a amo muito, Athame.”

Sorrindo, Athame seguiu seu caminho.

***

Athame acordou assustada. Já era manhã, ou quase. O sol ainda não havia nascido. Seu corpo estava coberto por uma camada pegajosa de suor, e ela sentia seu coração palpitar de uma forma descontrolada. O que acontecera... Teria sido real? Ou apenas sonho? “Não... Era real.”. Lembrava-se perfeitamente que recebera uma ordem direta da deusa suprema, a qual não deveria desobedecer. “Sim, ela se lembra de nós... Ela nos ama. Ela me ama.”. Lembrava-se de sua responsabilidade, e a doce voz ainda ecoava em seus ouvidos.

Ainda estava na cama deliciando-se com a maciez e a temperatura reconfortante o tempo que ainda podia tê-la, quando gritos a despertaram. Mais uma vez, seu padrasto estava agredindo sua mãe, por um motivo qualquer.

–John, pare! Por favor... Socorro... -Ernestine gritava em desespero.

–Cale a boca, sua vagabunda! Isso é pra você aprender que regras são regras. E se você resolver procurar mais uma vez a velha bruxa da sua mãe, sabe muito bem o que vai acontecer. Vão acender uma fogueira só para ela. -Vociferava o homem.

–Não... por favor...

Athame não podia mais aguentar isto. Não mais. Não calada. Levantou de sua cama tão rápido que sentiu-se tonta. Mas isso não importava... Tinha que fazer algo.

Ao chegar à sala, a cena deu-lhe repulsa. O homem curvara-se sobre sua mãe - que estava encolhida no chão sem direito de chorar- e a acertava com socos e pontapés. No canto oposto do aposento, sua pequena irmã de apenas seis anos ainda trajando seu pijaminha, olhava a cena e chorava baixinho, com medo. Athame a pegou no colo sem pensar duas vezes... Não merecia presenciar aquilo.

–Lizie, preciso que fique aqui. Por favor... Quietinha...

–Ame... Mamãe... Ajude-a...

Voltou para a sala. O homem continuava a dizer palavras nojentas para sua mãe, e a avançar sobre ela. Dessa vez, a forçava a tirar a roupa, para que pudesse começar a estuprá-la, como fazia todos os dias. A mulher chorava. Um ódio extremo cresceu dentro de Athame como nunca havia ocorrido antes. Encontrou a garrafa de bebida mais próxima e arremessou-a na direção do homem; errou, no entanto chamou sua atenção.

–Olha quem está aqui agora. A putinha metida com bruxaria... Mais uma das bruxas nojentas... Vá logo fazer a merda do meu café, antes que eu a entregue à fogueira também.

–John. Pelas deusas... Vá se foder, seu imundo.

Num instante não sabia o que fazer, no outro já havia lançado seus punhos na direção da face do homem, acertando-o desta vez. Havia caído sobre ele, e cravara fundo suas unhas em seu rosto. Ele gritava de ódio enquanto tentava chutá-la para longe de si.

–Se bem que você é realmente melhor do que a nojenta da sua mãe. Venha cá vagabundinha, chegou a hora de saber qual o seu lugar...

No controle da situação, John puxava o cabelo de Athame com tamanha força que arrancou uma porção de fios. Ela lutava contra ele. Acertava alguns socos e chutes, porém ele parecia possuído de ódio e determinação. Quem seria então possuída era ela.

Athame gritou alto quando sentiu a dor que lhe penetrara de repente. Desejou mais do que nunca morrer de uma vez. Não aguentaria mais. Não estava suportando. Seu corpo inteiro doía e estava coberto de hematomas. Suas roupas eram farrapos. Com certeza iria morrer. “Venha logo morte. Acabe com minha desgraça.”.

Achava que não ia sobreviver. Achava que aquilo não ia parar, quando sentiu o homem cair de repente. Sua mãe ofegava enquanto deixava tombar no chão a cadeira que estava segurando. Com a qual havia aberto a nuca de seu “esposo”.

Athame enfim caiu, e deixou que o torpor enchesse o seu corpo por completo. Talvez tivesse realmente morrido, pensava. “A deusa não vai ficar nem um pouco satisfeita... Tenho sete reinos para salvar, e nem consigo manter-me viva.”.

***

Acordou algum tempo mais tarde. Sentia dor só de respirar. Suas entranhas pareciam ter desmanchado. Mas mesmo desejando ter morrido, sabia que a deusa ainda a amava, e velava por ela.

Sua irmã estava ajoelhada ao seu lado, e acariciava-lhe o rosto. Quando notou que Athame havia despertado, deu-lhe um leve sorriso.

–Mamãe! Ame acordou...

–Silêncio, Elizabeth! Por favor... Deixe-me tornar isto mais fácil para todos.

Athame não conseguia ver sua mãe. Mas sentia uma determinação na sua voz que não via há tempos.

Finalmente, após juntar seus cacos e as forças que restaram, levantou-se do chão. Viu o homem repulsivo, caído à sua frente; seus braços e pernas formavam um ângulo estranho até para ele, e uma poça de sangue havia se formado em baixo de sua cabeça. Decidiu que não o olharia nunca mais. Não seria responsável por si se o visse novamente.

Sua mãe ia do quarto para a cozinha, numa velocidade agonizante, recolhendo roupas, comida e o pouco dinheiro que tinham ali e depositando em uma grande trouxa. Quando decidiu que tudo estava pronto, explicou às suas filhas que partiriam em segredo naquele exato momento, para a casa de sua mãe – a velha anciã- em uma pequena fazenda, situada no caminho para Malkuth. Sua irmãzinha parecia pronta para mais uma aventura ao segurar sua bonequinha de pano e se balançar nos calcanhares. Era uma criatura incrivelmente adorável.

As ruas ainda estavam vazias quando partiram. As quitandas não haviam sido abertas até então e os soldados dormiam em seus postos. A igreja estava fechada. Seu enorme sino, ainda não havia badalado. Apenas a taberna estava aberta, e os bardos que ali tocavam apareciam nas janelas ofertando “bons dias” a estas donzelas que passavam. Não eram ameaça. Não eram bruxos, muito menos cristãos, felizmente. Eram amigos, de qualquer forma. Pessoas que apenas queriam o bem.

Sentido o vento frio e calmo da manhã de Malkuth, e com os primeiros raios de sol em seus rostos, mãe e filhas rumaram para fora da cidade, enfrentando os pinheiros altos. Caminharam por algum tempo em silêncio, saboreando o gosto da liberdade eminente.

Pouco tempo depois avistaram a fazenda.

Era tão linda à distância quanto era de perto. Emanava uma paz e calmaria como nenhum outro lugar conseguia. Athame se lembrava dali; passava sempre muitos dias com a sua avó a lhe contar histórias antigas, e cantar cantigas para que dormisse. A sua infância tinha sido, em todos os sentidos, mágica. A pequena casinha estava da mesma forma que era há mais de dez anos antes. O tempo parecia não existir ali.

Antes mesmo que sequer chegassem próximo à casinha, a porta se abriu, revelando uma senhorinha simpática e sorridente de cabelos muito brancos e braços abertos.

–Minhas filhas! Há quanto tempo... Soube a pouco que a hora do regresso era chegada. Os ventos gostam de me trazer boas notícias. Vamos, entrem...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!