Os Filhos de Umbra escrita por Rarity


Capítulo 20
Capítulo Vinte: 1992 - 781 dias antes


Notas iniciais do capítulo

O que você faria se soubesse que tem dois anos de vida?



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Capítulo Vinte: 1992 - 781 dias antes

A política é quase tão excitante quanto a guerra e não menos perigosa.

Na guerra a pessoa só pode ser morta uma vez, mas na política diversas vezes.

Winston Churchill

3 de Outubro de 1992

Como 1992 foi um ano marcante para Sococó da Ema e para o resto do país. E com marcante eu quero dizer estranho. Foi um ano bem difícil na política, por exemplo, e eu senti muito pelas próximas gerações que teriam que entender o que estava acontecendo. Eu não conseguia. Só entendia que estava todo mundo falando mal de todo mundo. Outras coisas aconteceram também. Mamãe me organizou uma festa de aniversário, e todos os meus colegas da escola foram. Teve música, dança, minha família e meus amigos estavam ali. Belle passou um mês com a mãe de Maria em São Paulo, aprendendo balé, não passou as férias de Julho conosco, e foi muito estranho não ter nossa Bailarina ali presente. Pablo começou a aprender violino mais seriamente, e passava tempo demais com o pai e na escola, então eu me aproximei bastante de Henrique e das meninas. De longe, a coisa mais estranha que aconteceu foi a candidatura de Cristina à prefeitura.

Cristina já tem coisa demais pra fazer, foi o que pensei. E mesmo assim ela parecia determinada. Como Mel e Emily pareciam felizes e animadas com o que a tia/mãe estava fazendo, decidimos ajudar. Entregamos panfletos para nossos amigos e professores na escola, e ajudamos Cristina no que podíamos para que ela tivesse mais tempo para se dedicar à candidatura. Em teoria, haviam apenas três concorrentes, mas nunca se sabe o que o povo de Sococó da Ema vai fazer. Minha mãe, Maria e Dona Rosa também fizeram o possível. Cristina focou bastante na área da saúde e educação, ganhando bastante espaço com as outras mães, criticou a falta de investimentos em segurança e a falta de criação de novos empregos, ganhando o apoio dos trabalhadores. Eu botava muita fé na fama de Cristina e de como todos se sentiam em dívida pela perda de Dona Gina.

Eu me sentia cada vez crescendo mais. Era bom de uma maneira diferente, e eu me sentia um quase-adulto. O tempo passava muito rápido, e eu só queria que ele parasse um pouco, que me deixasse entender o que acontecia ao meu redor.

Eu não estava falando de morrer.

Voltando ao contexto, o dia 3 de Outubro marcou as eleições de Sococó da Ema, quando todos os moradores eram obrigados à ir até a Prefeitura escolher seus políticos. Naquela época, o voto era em cédulas de papel e levavam dias para serem apurados. Filas se formavam e quanto mais cedo você chegasse, mais cedo você saía. Eu podia jurar que quando eu levantei da cama as corujas ainda não tinham acordado pra caçar. Leo nem conseguiu acordar, ficou no meio do caminho entre acordado e dormindo, grunhindo ao nos dar respostas e parecendo um zumbi ao caminhar, acabou tendo que ser levado no colo de papai.

Dete também ia de cavalinho em Seu Vinicius, dormindo completamente. Pablo era outro que não parecia muito feliz. Quando chegamos na casa de Seu Otávio, Belle estava com os olhos completamente vermelhos, nem tinha penteado o cabelo e literalmente rosnava quando nos aproximávamos. Era até fofo. Todo esse trabalho para chegarmos na Prefeitura e já ter algumas pessoas na nossa frente.

—Essas pessoas só podem ter passado a noite aqui. –grunhiu Leo numa língua alienígena que me levou um tempo pra decifrar.

—O chão parece tão confortável... –suspirou Pablo.  

—Vamos esperar horas aqui! –Belle reclamou. –Pai....

Seu Otávio suspirou.

—Fazer o quê, Belle. Não podemos largar vocês pra andar no meio da noite.

—Então deixa a gente ficar na casa do Henrique. –ela sugeriu. –Dona Sônia pode ficar com a gente.

—A senhorita vai ficar quietinha aí. –foi a resposta final, e Belle ficou emburrada, mas não discutiu. Ela simplesmente deitou no chão e fechou os olhos.

Otávio balançou a cabeça, enquanto Maria riu.

—Ainda bem que eu tive filhos. –meu pai riu.

—Você não faz ideia da sorte que tem. –Seu Vinicius comentou, ajustando Dete em suas costas. –Elas são terríveis.

—Garotos são bem mais custosos que garotas. –Maria ponderou. –São bem mais arteiros e mais bagunceiros.

—Garotas são complicadas. –Otávio continuou.

—Garotas precisam de mais coisa. –Vinicius continuou. –Sem falar que a gente tem que cuidar melhor das garotas.

—Quem tem um garoto, cuida de um. Quem tem uma garota cuida dela e de todos os garotos do mundo. –papai brincou.

Maria e mãe se encararam e reviraram os olhos, deixando os rapazes conversarem.

—Eu tenho muito ciúme da Dete, sabe? Ela é minha garotinha. Tenho até medo de quando ela crescer e quiser namorar. Não gosto nem de pensar.

—Ela é muito novinha pra isso! –papai respondeu.

—Mas um dia vai crescer, né? –Seu Vinicius coçou a cabeça. –Igualzinho à Belle, ela vai crescer um dia.

Seu Otávio ficou branco.

—A Belle não vai querer essas coisas... –ele afirmou sem muita certeza.

—Será? –e Seu Vinicius olhou pra mim, fazendo Seu Otávio me encarar. Ele fechou a cara.

—Belle quer ser uma bailarina famosa e viajar, ela não vai perder tempo com rapazes. –Seu Otávio cruzou os braços. Maria também.

 –Nada disso impede ela de namorar e de casar um dia, Otávio.

—Claro que sim! Ela vai ser uma mulher bem sucedida, independente. Não vai ficar querendo perder tempo com rapazes!

—Ouviu, Pedro? –Pablo me cutucou com um sorriso zombeteiro. –A Belle não vai namorar com você.

Eu fiquei vermelho imediatamente, enquanto Pablo riu dos olhares que Seu Otávio me mandava. Meu pai riu e bateu no ombro de Otávio, falando “Bem-vindo à família”, o que ganhou risadas de todos para quebrar a tensão.

—Vocês são muito bobos. –Belle comentou de olhos fechados.

—Realmente, filha. São todos muito bobos. –Otávio concordou aliviado.

—Eu vou morar na França e namorar um francês. –Belle continuou.

Otávio engasgou.

Balancei a cabeça, ignorando a discussão. Mas a resposta de Belle me levou a pensar no quanto meus amigos já tinha a vida planejada. Belle seria uma grande bailarina internacional, Pablo apresentaria violino nos melhores teatros, Leo seria um grande jogador de futebol, Emily queria ser policial, Mel ia cuidar dos negócios da família, Henrique seria engenheiro. Eu não tinha tantos planos, não sabia o que iria ser nem como chegar lá, e percebi que isso era uma desvantagem –meus amigos já estavam dando os primeiros passos em suas carreiras, e eu? Eu gostava de Sococó da Ema. Eu sempre achei que iria terminar a escola, encontrar uma garota legal, casar, ter filhos e sustentar a casa como meu pai fazia. Nada grandioso. Eu só queria uma vida simples.

Não importa agora, importa? Nem uma vida eu tive.

Me deitei do lado de Belle, e Pablo se deitou ao meu lado, com Leo do outro lado de Belle. O chão era frio e desconfortável, mas Belle fazia parecer natural. Encarei as estrelas.

—Eu não sei vocês, mas eu quero dormir. Se você começarem a conversar do meu lado eu vou arrancar as suas línguas. –ela ameaçou de olhos fechados e com a expressão mais inocente possível.

“Garotas são complicadas”

LOPES, Otávio. 1992.

—Não seja chata, Belle. –Leo grunhiu.

—É, Belle, não seja chata. –Pablo repetiu.

—É, não seja chata. –ecoei.

—Vocês são insuportáveis. –ela grunhiu, abrindo os olhos para encarar as estrelas. –Estou vendo um cavalo. –Belle desenhou o dito cavalo ligando as estrelas.

O céu noturno de Sococó da Ema estava sempre estrelado. Sem poluição, as estrelas praticamente tomavam conta. Era lindo. Sorri, fazendo o desenho de uma estrela grande de cinco pontas.

—Isso é fácil. –Pablo reclamou. –Consigo fazer um polvo.

E ele ligou os diversos pontos até fazer o polvo.

—Vocês são tão estranhos. –Leo reclamou. –Eu consigo fazer a Xuxa.

Du-vi-do. –falei.

Passos soaram, e Henrique apareceu praticamente em cima de mim, um sorriso no rosto e um “Oi, gente” que me assustaram, me fazendo me jogar pra cima e colidir minha cabeça com a dele.

—Ai.... –gememos ao mesmo tempo.

—Só vocês mesmo. –Pablo revirou os olhos.

—Bom dia pra vocês também. –Henrique murmurou, se deitando ao lado de Pablo.

—Bom noite é mais apropriado. –corrigi.

—Pedro, não seja chato. –Belle piscou pra mim ao falar isso. –Emily e Mel podiam estar aqui. Não sou obrigada a aturar vocês quatro juntos.

—Você nos ama. –Henrique retrucou. –E acho que elas vêm votar mais tarde. Tipo bem à tarde.

—Eu vou dormir até amanhã assim que chegar em casa. –Pablo disse. –Não me chamem pra nada até a próxima eleição.

—Okay, Bela Adormecida. –Leo zombou.

—Por favor, você nem precisa estar dormindo pra estar dormindo! –Pablo exclamou.

—Estar dormindo pra estar dormindo? –repetimos.

—Vocês entenderam! –ele exclamou.

Estranhos! —Leo cantou.

—Ah, garoto, pelo amor de Deus! –Belle revirou os olhos.

—Consegue desenhar a Xuxa nas estrelas, Rick? –perguntei.

—Por que eu iria desenhar a Xuxa nas estrelas? –ele piscou.

—Você tem algo melhor pra fazer? –continuei. –Os portões só vão abrir em horas. Umas 4 no mínimo. A gente não deve demorar assim que começar a votação. Até lá...

—Certo, certo. –ele respirou fundo. –Bem você pode fazer assim... Não, não. Pode começar aqui e... Não, aqui não. Pode ir por ali e fazer a curva, depois continuar aqui, não, por aqui e...

—Você é péssimo nisso. –Pablo comentou. –Está parecendo uma batata, não a Xuxa.

—É claramente a Xuxa!

—Só se for uma pessoa muito feia chamada “Claramente a Xuxa”. –Pablo retrucou, gesticulando com as mãos.

—É a visão do artista! –Henrique rebateu.

—Jesus, tanto faz! –Leo exclamou.

—Vão ser longas horas. –balancei a cabeça, sorrindo internamente.

Se você não discute com seus amigos, eles não são seus amigos.

(***)

No final do dia, nos reunimos na casa de Mel e Emily para variar. Elas foram super tarde para votar com Cristina, mas pudermos nos reunir para um lanche no final. Acabamos nos servindo de torradas com geleia e leite. No final Mel tinha um baralho de UNO e nos juntamos pra jogar.

—Bem, pelo menos tudo acabou, certo? –Mel comentou, limpando um lado da boca e os dedos.

—Agora é torcer pelo melhor. –Emily falou. –Mãe ia ficar chateada se perdesse.

—Você está preparada para ser a filha da prefeita, Emily? –perguntei, também como brincadeira.

—E poder bater nas pessoas sem que elas possam rebater? Claro que sim. Vou ser ótima no papel. –Emily brincou com as madeixas, piscando pra mim.

—Será que vocês vão ganhar um carro especial? –Pablo perguntou.

—E quem vai cuidar da escola? –Belle continuou.

—Você não sabe? –Mel piscou. –Lerina vai ser a responsável.

Lerina?

—Qual o problema, Belle? –Leo indagou entre torradas. Fechei as sobrancelhas.

—A boca, Leo. –falei, porque era meu irmão e eu tinha o direito de educa-lo. Ele revirou os olhos.

—Só achei estranho, gente, por mim tudo bem então! –Belle levantou os braços.

—Ei, foco! –Henrique exclamou. –Sem brigas.... Até porque eu devo dizer que o Pablo tem que pegar 4 cartas e eu ganhei.

Encaramos Henrique com a boca aberta. Ele sorria exibido com as mãos vazias.

—Eu não acredito que você usou essa carta. –Pablo afirmou. –Você não é confiável.

—Hoje ele te fez comprar 4 cartas, amanhã pisa no rabo do Scooby. –Mel continuou.

—Eu sou apenas muito bom.

—Em “traírismo”! –Pablo gritou.

—Ah, fala sério! Vai ficar com raiva por isso? É só um jogo!

—Não é só um jogo, é uma prova de amizade! Você me traiu quando teve a chance!

—Pablo, é só um jogo!

—Bom saber do seu caráter!

E assim passamos o dia.

Foram dez dias bem longos de espera, onde tentamos levar a vida normalmente. Cristina era uma pilha de nervos o tempo todo de ansiedade. No final, valeu a pena. Ela ganhou, e seria a nova prefeita de Sococó da Ema durante os oito anos seguintes. Foi ela quem decretou a Festa da Jumenta Voadora no final do segundo mandato. Ela vendeu a casa da família depois, alugou uma casa mais simples agora que vivia sozinha e parou de trabalhar diretamente. Nem de longe me lembrava a mulher que conheci, já sem o espírito forte e a determinação que vivia com ela. Estava vazia. Não que soubéssemos disso na época, então, naquela noite, mamãe fez pizza caseira no forno e nós comemos e rimos a noite toda.

Doce ignorância.


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Notas finais do capítulo

As coisas estão começando a evoluir e eles estão começando a crescer. Não só isso, mas as pessoas ao redor deles estão crescendo. A Cristina é uma personagem importante pro desenvolvimento da história, assim como a Dona Sônica, e eu acho ela uma personagem foda pra caralho.
Se vocês não sabem, o impeachment do Collor foi em 1992. Assim que eu cheguei nesse ano estava doida pra colocar algo relacionado =D
Serão, como sempre, 3 capítulos para 1992 e 3 para 1993. Depois chega aquele ano malditos e as respostas começarão a ser dadas.
BTW, sim, eu também senti falta da participação da Dete e da Analícia. Mas calma. Elas terão sua hora.
Foi o menor capítulo da fic, e eu estou esperando ver o que vocês acharam. Preferem os capítulos maiores ou menores?



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