Os Filhos de Umbra escrita por Rarity


Capítulo 18
Capítulo Dezoito: 1991 - 1199 dias antes


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo é completamente dedicado ao Leo, e ao que um dia foram os sonhos dele.



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Capítulo Dezoito: 1991 - 1199 dias antes

A constância é contrária à natureza, contrária à vida.

As únicas pessoas completamente constantes são os mortos.

Aldous Huxley

 

12 de Agosto de 1991

Há algumas coisas na vida que podem parecer insignificantes, mas que tem um valor infinito para uma criança. Um beijo. Um abraço. Um carinho. Uma nota boa. Sua comida favorita feita do jeito que você gosta. Correr na chuva. Desenhos. Uma tarde ensolarada com os amigos. São exemplos de coisas que eu valorizava mais que todo o dinheiro do mundo na minha infância. Mas, no topo de todas essas coisas...

Estava a Interclasse.

Eu não tenho certeza se ainda fazem isso hoje em dia, ou se ainda é tão importante quanto era, mas caso não saiba, em escolas públicas, principalmente, se organizava uma competição de futebol entre salas diferentes. A sala A escolhia seus jogadores e jogava contra a sala B, e o prêmio nunca passava de uma medalha. Poderia ser apenas um objeto para qualquer um que olhasse, mas para nós? Para nós era melhor que a Taça da Copa do Mundo –e mais acessível também. O sonho dos alunos durante a Interclasse era que a professora nos deixasse ir assistir os outros jogos e observar a concorrência.

Infelizmente, a minha Interclasse ainda não tinha começado –estava marcada para semana que vem-, mas a do Leo tinha.

—Amanda, por favor, por favor, por favor! –juntei as mãos em oração, pronto para me ajoelhar na frente de Amanda.

Amanda olhou para o teto como se o culpasse por ter que pegar nossa turma novamente. Ela suspirou e apoiou a mão na cintura, no cós da calça vermelha. O cabelo loiro dela estava cheio de frizz, caindo na blusa branca.

—Por favor, Amanda. É a Interclasse do meu irmãozinho! –fiz um bico. –Já terminamos o dever, já corrigimos... É só um pouquinho....

Ela se voltou para a turma, que conversava animada entre si. Na frete Analícia, Laura e Natália conversavam-gritavam, enquanto Pablo fazia um som lá no fundo com dois lápis, imitando uma bateria, e Diego fornecia o batuque. As meninas lá perto acompanhavam, Mel inclusa.

Sério. Eu precisava conversar com Tia Gina antes que Mel ficasse incurável.

—Eu não sei se eles estão merecendo, Pedro... –Amanda bufou.

—Mas eu estou, não estou? –usei minha melhor cara. Me graduei em Artes Cênicas ali mesmo. –Amanda, por favor... Pelo seu melhor aluno! Já falei que você é minha professora preferida?

—Tá bom! Só dessa vez! –Amanda apontou o dedo, mas caiu no meu charme. –E só depois de todo mundo calar a boca.

Sorri infinitamente. Eu tinha um sorriso bonito e não tinha medo de usar.

—Galera! Se todo mundo ficar quieto, a Amanda vai levar a gente pra quadra! –gritei, chamando a atenção da turma.

E eles se calaram mesmo, como que não acreditando.

Amanda passou as mãos no cabelo loiro, cansada.

—Certo, certo. Quero uma fila indiana para sair da sala e quem abrir a boca vai voltar comigo!

(***)

A quadra da escola tinha uma parte coberta e duas descobertas. Geralmente havia um rodízio entre os professores para saber quem usaria cada quadra, e os dias de usar a quadra coberta eram bem melhores, só por não ter que ficar com a sola do pé machucada pelo sol. Nem todo mundo lembrava de trazer o tênis nos dias de Educação Física, e era melhor voltar com o pé machucado do que com o sapato arranhado, vai por mim.

Tinha bastante gente na quadra, já que Amanda não foi a única professora que decidiu levar os alunos para a quadra. Melhor ainda, outras turmas. A turma de tia Clarice estava ali, com ela apoiada na mureta assistindo os meninos de cada time se arrumarem em time com uniforme e time com blusa normal. Corri até ela para um abraço rápido.

—Oi, tia Clarice. –a cumprimentei.

—Olá, Pedro. –ela bagunçou meu cabelo. –Amanda deixou vocês virem para cá?

—Eu convenci ela. –sorri brincalhão, e Clarice riu.

—Seu irmão já está quase entrando em campo. –ela apontou uma figura de cabelos castanhos amarrando as chuteiras. –Ele parece nervoso.

Concordei com a cabeça. Leo estava tendo mais dificuldade que o normal para amarrar as chuteiras, e apesar de eu não poder ter certeza por conta da distância, as mãos dele pareciam tremer. Ele parava para olhar os adversários com frequência, os olhos nunca parando em algo por muito tempo. E era impressão minha ou ele já estava suando?

Me afastei de Clarice e encontrei Pablo e as meninas perto de mim, também preocupados. Entrei na quadra coberta –a que era usada na Interclasse-, caminhando pela lateral devagar. Não queria assustar Leo aparecendo do nado do lado dele, mais estresse era a última coisa que ele precisava.

Assim que viu minha sombra, Leo olhou para o lado. Ele pareceu mais aliviado ao me ver.

—Pepê! –chamou pelo apelido infantil e soube que Leo estava mesmo nervoso. Ele se levantou e me abraçou.

—Oi, campeão! –baguncei o cabelo dele. –Como se sente?

Leo piscou, mordendo os lábios. –Nervoso. O segundo C tem ótimos jogadores, e acabou com o segundo A no último jogo. Pedro, se eu perder esse jogo, eu perco a Interclasse.  

Eu e Pablo nos entreolhamos, entendendo a sensação. Por mais que vencer a Interclasse fosse ótimo, era reservado para as salas com os melhores jogadores, e a derrota era sempre amarga.

—Leozinho, eu acho que você não precisa se preocupar com isso. Dê o seu melhor. Como minha vó diz, “o que vier é lucro”! –Mel sorriu para ele.

—Você vai se sair bem, Leo. Não se preocupe. E se não ganhar, você ainda vai ter ano que vem. –Belle o tranquilizou, um sorriso calmo.

Leo respirou fundo, não parecendo muito aliviado.

Ter um irmão poderia ser uma droga em alguns momentos. Eu e Leo dividíamos quase tudo. As roupas, já que ele tinha praticamente o meu tamanho, brinquedos, comida, até a atenção de pai e mãe. Lá no fundo eu sabia que papai gostava mais de Leo que de mim, e isso me incomodava bastante. Leo sempre seria o mais novo, o que precisava de mais atenção, de mais cuidados. Eu tinha que ser o filho responsável, e Leo não. Leo não precisava ajudar com a louça depois do jantar, e eu sim. Eu era obrigado a tomar conta dele, porque se algo acontecesse com ele, a culpa também seria minha. Mas por outro lado, Leo sempre era o primeiro a me seguir em qualquer lugar, o que estava sempre comigo, o primeiro rosto que eu via ao acordar e o último ao dormir, sempre concordava com as minhas maluquices e tomava minhas dores a qualquer custo.

Meu irmão era incrível.

—Escuta, Leo. –coloquei uma mão no ombro dele. –Você é um ótimo jogador. Você é melhor que eu nesse jogo, melhor que qualquer um que eu conheça, mas não pode carregar um time inteiro sozinho. Se você ganhar ou perder foi um esforço do time inteiro, você não pode se culpar. –Pausei. –E se você perder, paciência. Entre em campo e dê o seu melhor, jogue com paixão. Se não for o suficiente, você vai treinar mais e se superar ano que vem. Nada disso é o fim do mundo, Leo.

Leo pausou para absorver minhas palavras, as sobrancelhas cerradas com um olhar de concentração tão grande em seu rosto que o deixou com a aparência de mais velho. Até que ele relaxou e me olhou com bastante carinho.

—Obrigado, Pepê. –agradeceu antes de correr até o resto do time.

Ignorei o peso na garganta para gritar:

—E amarre esses cadarços!

Quando me virei, quase constrangido porque o que tinha acontecido entre mim e Leo tinha sido muito pessoal, Pablo e as meninas me olhavam como se eu tivesse uma segunda cabeça no ombro.

—O que foi? –perguntei defensivo, cruzando os braços.

Pablo balançou a cabeça, um sorriso divertido.

—Você é um bom irmão, Pedro. –ele se voltou para Leo, que estava junto ao seu time, parecendo dar um discurso motivacional. –Mandou muito bem.

Sorri orgulhoso, observando Leo.

—Mandei mesmo.

—Que fofo vocês dois. –Mel riu. –Vamos sentar para esperar o jogo começar.

—Me dá um L, me dá um E, me dá um O, L-E-O! –Belle balançou os braços em treinamento para a torcida enquanto nos acompanhava, dando pulinhos atrás de Mel.

Achamos por milagre um espaço na mureta para sentar, e acebei do lado de Pablo, as meninas conversando do lado dele sobre os jogadores. O professor de Educação Física chegou, Marco, e com um apito ele chamou os capitães dos dois times. Leo foi correndo em direção a ele.

—Oi gente! –Henrique brotou do nosso lado, subindo na mureta para ficar do meu lado.

—E aí? –trocamos um soquinho, ele sorrindo o tempo todo.

—A professora teve que sair. –ele contou. –Vamos ficar talvez mais de um horário livres.

—Sorte a sua. –respondi. –Tive que implorar Amanda para virmos pra cá.

Emily passou por nós para se sentar do lado de Belle, apenas um tchauzinho em minha direção.

—Como Leo está? –Henrique perguntou.

—Nervoso. Inseguro. –respondi, tenso. –Ele quer carregar um time inteiro nas costas.

—Que barra. –Henrique respondeu. –Acha que ele tem chance?

Hesitei. –Eu não sei. O segundo C detonou nos últimos jogos, e eles têm o Carlos e o Guilherme... Mas eu confio no Leo. Eu sei que ele vai dar um show.

—O Leo tem o Joaquim também. –Henrique ponderou. –Os dois são muito bons.

Leo e Carlos jogaram o par ou ímpar e consegui ver pela reação de Leo que Carlos ganhou. Leo apontou para o campo que queria, e logo se afastou para permitir que Carlos dê o chute inicial. O time dele se organizou perto, Joaquim, Renata, Lucas, Yuri, Gabriel, Caio, Mariana, Patrick, Felipe e Júlio, o goleiro, o time do lado direito, os com uniforme. Todos pareciam bem focados. A partida era muito importante, e eu fiquei tenso por ele.

—Respira, Pedro. –Henrique brincou. –Ele vai se sair bem.

—Parece até que é você quem vai jogar. –Pablo brincou, uma mão encontrando o meu ombro. –Relaxa.

—Passou, passou, passou um avião, e nele ‘tava escrito que o Leo é campeão! –Belle começou, batendo palmas, as meninas da sala de Leo a acompanharam.

Eu me situei. Nossa sala estava mais na quadra descoberta, aproveitando para brincar. Amanda estava conversando com Clarice, e a maior parte das pessoas que nos cercavam eram do segundo ano. A sala de Henrique estava enrolada no meio da minha turma. Era muita gente.

Marco apitou. E que comece o jogo!

Carlos jogou a bola para trás, passando para um companheiro de time, Rodrigo. Rodrigo correu com a bola em direção ao gol, Renata ficou na frente dele até conseguir driblar e passar para Gabriel. A menina era incrível no futebol, quase tão boa quanto Leo. Rodrigo ficou na cola dela, marcando, e Gabriel teve que passar a bola correndo pra Felipe antes que eles perdessem a bola. O time de Carlos começou a marcação, e acabou que ele conseguiu pegar a bola. Passou, driblou, chutou e....

Júlio impediu com uma cabeçada, jogando a bola para Leo. Meu irmãozinho conseguiu driblar três jogadores antes de jogar a bola para fora. Flávio, do time de Carlos, foi marcar. Com o trabalho de Carlos, Guilherme e Rodrigo, Flávio marcou um gol, ganhando vaias da minha parte da torcida.

Eu estava quase roendo as unhas.

Vi Leo parar para respirar, parecendo nervoso. O time parecia desmotivado.

Respirei fundo.

—Sai, sai da frente! Que o 2ºB é chapa quente! Eu já falei, vou repetir! O 2ºB que manda aqui! –comecei, batendo palmas.

Logo virou um grito de guerra do todo o meu lado da quadra. Meus amigos foram os primeiros a me acompanharem, mesmo sem entender, e a sala do Leo se juntou. Leo parou por um momento para sorrir pra mim, grato. Levantei o dedão para ele, em suporte.

E ele reiniciou o jogo em força total. Assim que a bola voltou a campo, ele conseguiu pegar a bola de Rodrigo. Passou para Joaquim, que deu uma caneta maravilhosa em Flávio para continuar. Foi marcado, deu um chute para Mariana, que a levou para trás antes de passar para Leo. Yuri marcava o goleiro de Carlos, e num drible, Leo deu um chapéu em Carlos que levou a bola direto pro gol.

E a torcida grita.

(***)

Assim que saímos da escola, papai nos esperava. Geralmente ele vinha nos buscar quando saía do trabalho e não ia adiantar passar em casa, todo sujo mesmo. Assim que Leo o viu, praticamente pulou em pai, gritando “ganhei, ganhei, ganhei”. Ele estava praticamente brilhando de felicidade, jogando sorrisos para todas as coisas e pessoas.

Todos os meus amigos foram comigo observar Leo. Henrique era o único deles que iria pra casa, mas ele ia a pé com os vizinhos, Laura inclusa, apesar de sempre fazer questão de ficar com a gente, no fundo porque ele gostava demais de todos nós. O resto dos meus amigos iam para a Escola da Tia Gina; Dete e Pablo para ficaram com o pai até ele sair, Mel e Emily para esperar Cristina e Tia Gina e Belle para fazer balé e voltar junto com Lerina.

Meu pai riu enquanto Leo praticamente subia nele, murmurando meias-frases sobre o que ele tinha feito.

—A bola pareceu o Absinto descendo do céu direto pro gol. –Mel tinha comentado, orgulhosa.

Leo provavelmente não entendeu o que ela disse, mas comemorou assim mesmo.

Do meio da multidão, Cristina apareceu, um vestido preto de mangas com um decote em V, óculos escuros e o cabelo em um coque rígido. Mel e Emily estranharam, e se aproximaram da mãe/tia, que se abaixou parecendo falar algo bem sério para elas.

—Estou orgulhoso de você, Leo. –papai bagunçou o cabelo de Leo. –Nosso grande jogador de futebol.

—Eu prometo que vou ser um grande jogador um dia, papai. E vou poder te dar tudo o que você quiser. –Leo finalmente conseguiu subir em papai, os braços ao redor do pescoço dele.

—Eu já tenho tudo que preciso, filho. –e papai beijou o topo da cabeça de Leo.

Era lindo, e tentei não me sentir excluído da cena porque sabia que Leo merecia.

—Tenho você e seu irmão. –ele continuou, me chamando, e me pegou no colo.

Sorri infinitamente, a amargura anterior se derretendo só por saber que pai me incluía em seus tesouros.

—Que fofo. –Belle tombou a cabeça, um sorriso tranquilo no rosto.

—Vocês são tão profundos. –Pablo balançou a cabeça.

—Eu achei uma gracinha. –Henrique opinou.

—Calem a boca. –reclamei.

—Liga não, Pedro. –Dete me aconselhou, depois de revirar os olhos pelas atitudes de meus amigos.

Era como uma bolha de satisfação naquele momento, pelo menos para mim. Todos orgulhosos do meu irmão.

E foi nisso que Mel se voltou para nós, parecendo um fantasma. Ela tinha os olhos escuros completamente desfocados, tremia um pouco, principalmente nos lábios, e lágrimas saíam dos olhos sem ela parecer perceber.

—Mel? –Belle chamou, preocupada, segurando ela pelos ombros, a chacoalhando levemente. –O que aconteceu?

Mel piscou, como se tivesse dificuldade para enxergar Belle.

Emily se agarrou em Cristina em meu campo de visão, parecendo chorar. Chorar. Eu nem sabia que ela podia chorar.

—A Tia Gina morreu. –Mel falou normal sem olhar para nós, como se estivesse falando de outra pessoa, apesar dos lábios tremerem. –Ela morreu, Belle.

Belle a abraçou fortemente naquele instante, e ela se apoiou em Belle com força igual.

E a única que eu consegui pensar foi:

Meu Deus.

 


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Notas finais do capítulo

Desculpem a demora, mas as aulas voltaram e acabou que tudo saiu do meu normal. Voltar à rotina é um saco. Eu deixei DOIS CAP agendados achando que já teria terminado esse na hora que eles fossem postados e adivinha?
Nada.
Eu sei que a Emily praticamente não apareceu nesse capítulo, por isso o próximo é sobre ela. Eu estou tentando focar em personagens que eu acabei deixando de lado durante os últimos 18 capítulos, Pablo, Henrique, Leo e Emily. Querendo ou não, a corrida de carrinhos de rolimã era basicamente Henrique, então 1991 foi um ano para Leo, Pablo e Emily. Depois disso, se eu não me engano, é o que vai acontecer com a Cristina daqui pra frente =D
E sim, estou matando todo mundo. Acontece.



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