Hunter escrita por Jiinga


Capítulo 15
Problemas




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/572358/chapter/15

Tentei abrir os olhos, mas uma luz muito forte em meu rosto me impedia. Uma luz... Ah, sim: eu tinha morrido e ido pro céu. Ótimo, depois de tantos anos caçando espectros do mal, eu merecia mesmo.

Sorri agradecida por ter finalmente sido recompensada, por meu sofrimento finalmente ter acabado.

– Emilia? – era a voz de Tristan. É, eu devia mesmo estar no céu. – Emilia! Rique, acho que ela tá acordando.

Ahn?

Forcei meus olhos a abrirem, enfrentando a luz. Vi Tristan abaixado perto de mim e Rique levantando rapidamente de uma poltrona e vindo se juntar a nós.

– Onde estamos? – perguntei.

– No hospital. – respondeu Tristan.

– Você tá bem? – perguntou Rique.

– Aham. Apaguem essa droga de lâmpada em cima de mim!

Os dois riram e Rique apagou a luz.

Sentei-me na cama e percebi meus pulsos enfaixados.

– Como vocês souberam?

– Eu te disse que aquele colar me avisaria se você estivesse em perigo. – respondeu Tristan – Mesmo que você fosse um perigo para si mesma. - Fazia sentido, afinal, eu havia sentido meu colar queimando lá no meu quarto - Por que você fez isso, Emi?

Desviei os olhos. Eu realmente não queria falar sobre aquilo. Queria muito menos ouvir o sermão dos dois.

– Esquece, vocês não entenderiam.

– Você não confia em nós? – perguntou Rique.

– É só que... Vocês iriam rir da minha cara, me achar louca e me internar num hospício.

– Você não fez isso quando dissemos que éramos espectros. – disse Rique.

Respirei fundo.

– Ok. Bom, a princípio eu tentei me matar por que a minha vida tava uma droga e indo de mal a pior. Mas então, senti como se tivesse algo mais me controlando. Como... Uma força. E eu tive uma sensação horrível. Senti calafrios, meu coração acelerou, meu estômago embrulhou... Era como se algo quisesse me forçar a fazer aquilo. De repente, nada mais fazia sentido e eu estava cortando meus pulsos. - os dois se entreolharam, ambos nervosos - Er... Que foi? – perguntei. Eles não responderam, só ficaram se encarando. – Tem alguma coisa que vocês não estão me contando?

– Emilia, queremos tentar uma coisa. – disse Rique, tirando uma de suas luvas.

– O quê? – assustei-me ao ver a mão de Rique estendida para mim – O que vocês têm na cabeça? Vocês querem que eu morra? – exclamei.

– Não! Emilia, confie em nós. – disse Tristan.

Olhei em volta, preocupada. O que eles estavam planejando, droga?

– Ah, qual é! Algumas horas atrás, você estava tentando se matar e agora tá com medo de morrer? – perguntou Rique.

Eu hesitei. Não estava mais com tanta vontade de morrer, assim. Mas os dois pareciam extremamente confiantes de que isso não aconteceria. Qual é, eles não me colocariam em perigo.

Estendi a mão para tocar a de Rique e percebi que eu estava tremendo.

Então, finalmente nos tocamos. Nada aconteceu. Uma sensação de alívio desceu por todo meu corpo. Mas logo foi substituída por uma preocupação enorme. Isso não estava certo.

– Como...? Isso não faz o menor sentido.

– Concordo. – disse Tristan.

– Bom, está tudo começando a se encaixar, pra mim. – comentou Rique.

– Como assim? – perguntei.

– Emilia... Quando eu e o Tristan te encontramos, havia sangue por todo lado. Você perdeu muito sangue, muito mesmo.

– O que você quer dizer com isso?

– Ele quer dizer que uma pessoa não teria sobrevivido. Os próprios médicos não sabem como você sobreviveu.

Encarei-os, incrédula.

– Mas como isso é possível?

Houve um minuto de silêncio, no qual nós três pensamos muito.

– Eu acho que você virou um espectro. – respondeu Rique, na maior naturalidade.

– Claro que não! – exclamou Tristan antes mesmo que eu pudesse processar a resposta de Rique – Qual é, cara, a transformação é totalmente demorada. Ela teria passado dias sozinha, evitando todo mundo, sem falar nas transformações físicas.

– Transformações físicas? – perguntei.

– Força, agilidade, visão... – respondeu Tristan.

– Bom, eu não vejo nenhuma explicação melhor. – Rique se voltou para mim - Aquela sensação que você disse que teve. Nós chamamos de fome.

Pude sentir a sala rodando sutilmente. Era muita coisa pra processar em tão pouco tempo.

– Eu vou falar com o Chris sobre isso. Talvez ele tenha alguma outra teoria. Depois falo com vocês. – Rique simplesmente desapareceu no ar.

– Ótimo! Agora vocês podem “aparatar” também?

Tristan riu.

– Algo do tipo. – ele me olhou com uma falsa cara de reprovação – O que eu faço com você, hein, moça?

– Nada. Me deixa em paz. – desviei o olhar rapidamente.

– Emilia, você não pode tentar se matar toda vez que algo ruim acontece. – abri a boca para falar, mas ele me interrompeu - Sim, eu sei sobre a outra vez. O Rique me contou. – desviei os olhos novamente – Por que você quer tanto morrer?

– Por que eu não quero mais sofrer.

– Ah, claro. E o que você acha que acontece quando a gente morre?

– Ah, eu acho que a gente tipo dorme pra sempre!

– Bom, eu discordo.

– Ah é? E o que você acha?

– Er... Tá, vamos lá. Quando a gente morre, eu não acho que seja algo legal. Imagina quando você dorme ou cochila, e você acorda achando que passaram segundos... Ou horas, mas o tempo é diferente. E quando você dorme na sala, acorda, vai pro seu quarto e dorme de novo, aí você não se lembra de ter acordado, mas isso aconteceu. O fato de esquecer é como se você não tivesse vivido aquele momento. E quando você dorme, passam muitas horas e você nem se toca.

– Hum... – assenti, meio sem entender nada.

– Ta, agora imagina que você morre. E que essas horas são a eternidade. E que você esqueceu não só alguns minutos, mas toda a sua vida. Aí por exemplo: você viveu cinqüenta anos. Agora passaram cinquenta anos da sua morte. Você “existiu” por cem anos, certo?

– Certo.

– Seu período de vida foi cinqüenta por cento da sua existência. Mas como para você, inconsciente, o tempo é irrelevante e não é mais uma medida aceitável, podem passar cinco mil anos e não vai mudar nada. Mas, se passarem cinco mil anos da sua existência e você só viveu cinqüenta, você viveu uma porcentagem ínfima da sua existência. E você só tem quinze, não cinqüenta! O tempo não vai parar. Então a porcentagem da sua vida em relação à sua existência vai ser sempre menor.

– Grande coisa, eu não vou estar aqui pra me importar com isso.

– Emilia, você passaria esse tempo sem pensar, como se estivesse dormindo, mas sem sonhos, sem consciência. Isso não te assusta?

– Não.

– É como se você se esquecesse de tudo constantemente. E fosse vazia. Imagina que você não tem consciência mais, nem pensamento. O tempo deve passar rápido, né? Em relação a você. Bom, claro que você não iria estar consciente para perceber isso...

– Tristan. Foco.

– Ok, ok. Pensa na sua teoria de descanso pós-vida. Quando você pensa nisso, você tem uma segurança, por isso acha que seria melhor morrer. Agora imagina o fim de tudo, quando você recupera a consciência.

– Mas você disse que eu não podia rec...

– Tá, só supõe que você pode recuperar a consciência. Agora destrói tudo isso.

– Ok, você tá me deixando muito confusa!

– Não, olha, é que se você destrói esse porto seguro a que você se agarra, você tá jogada na eternidade, num ciclo que vai durar... Pra sempre. Ou seja, a sua existência já era. Você nunca viveu. A eternidade é muito maior do que cinqüenta ou quinze anos. E nunca vai ter nada para marcar o final. Por que sempre vai ter um depois. E você vai estar inconsciente.

– Bom, eu ainda acho que é melhor do que sofrer.

– Cara, você é muito teimosa!

Nós rimos e, logo depois, houve um minuto de silêncio.

– Pelo menos agora eu posso te olhar nos olhos.

– Pois é.

– É assim que vocês se sentem o tempo todo? – fiz uma careta, me referindo à força, ao vazio que sentia dentro de mim.

– Basicamente. – ele entendeu - Só quando estamos muito tempo sem “comermos” almas. Mas quando não precisamos delas, ficamos bonitos, cheirosos, fortes e felizes.

– E por que isso?

– Não sei ao certo. Talvez por nós espectros não termos almas, precisamos preencher o vazio com almas alheias.

Nesse momento, meu pai abriu a porta do quarto.

– Acho melhor eu ir. – disse Tristan, cumprimentou meu pai com um aceno de cabeça e saiu pela porta.

Meu pai esperou que ele saísse e se aproximou de mim.

– O que aconteceu, Emilia?

– Nada.

Ele se sentou ao meu lado e respirou fundo.

– Querida, você sabe que pode contar comigo pra tudo.

Mas eu não podia. Não podia contar que meus amigos eram espectros e aparentemente eu era uma também. Não podia contar que eu estava a fim do meu melhor amigo e ele tinha acabado de voltar com a namorada. Ele nunca entenderia.

– Eu realmente não quero falar sobre isso, pai.

– Tudo bem. – ele começou a se afastar – Quando quiser conversar, eu vou estar todo ouvidos. Mas por favor, não faça isso de novo.

– Ok.

Meu pai já havia aprendido há muito tempo que quando eu dizia “não”, não valia à pena insistir, então simplesmente desistia de primeira. Ele saiu do quarto e me deixou sozinha, pensando em como minha vida tinha virado de cabeça pra baixo.

Eu tinha sido completamente egoísta por não ter pensado nele quando tentei me matar. Desde que minha mãe morreu, eu era tudo pro meu pai. Como eu podia ter feito uma coisa dessas?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!