End of the World escrita por Agatha, Amélia


Capítulo 9
Capítulo 9


Notas iniciais do capítulo

Oi, pessoas!
Talvez vocês tenham estranhado que não postamos no sábado passado, ou não já que ninguém reclamou, mas temos um motivo muito forte. Alguns já devem ter visto, mas estamos trabalhando em uma nova história. Fizemos uma spin-off de End of the World, ela se chama Hold On e, sim, é sobre a Beth. Por enquanto só temos o primeiro capítulo, mas pretendemos alternar as postagens com EOTW. Essa fic irá mostrar o que está acontecendo com a Beth enquanto os outros eventos ocorrem. Vocês não precisam ler para entender essa fainfic aqui, mas seria interessante que dessem uma passada lá. Deixaremos o link nas notas finais para quem se interessar.
Não sabemos se viram, mas deixamos um spoiler no Tumblr para recompensar, era um trecho desse capítulo. Como não postaremos mais todas as semanas, por conta de Hold On, iremos deixar coisas no Tumblr de vez em quando, então fiquem de olho!
Obrigada pelos comentários, favoritos e acompanhamentos!
Boa leitura!



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– O que ela viu naquele cara? – Matthew perguntou de súbito, recebendo um longo silêncio antes de obter sua resposta. Ele estava escorado na parede com uma expressão cansada depois de tudo o que acontecera naquela madrugada.

– Sei lá! O que as garotas veem em garotos? – Josh sugeriu com um tom interrogativo, sem se dar ao trabalho de se voltar para o tio. Naquele momento, o professor estava realmente ocupado.

– Eu estou falando sério, Joshua. Desde que o Max entrou na vida dela, eu só tenho problemas para resolver.

– Às vezes você exagera um pouco. Mas, respondendo à sua pergunta, ela pode ter visto muitas coisas. Juventude, beleza, dinheiro, carisma... Quem se importa com isso, afinal? – não era necessário pensar muito para que ele soubesse a resposta, sua irmã certamente levava aquelas características em conta.

– Eu? Exagerando? Você tem certeza disso?

A sentença poderia parecer um protesto descomedido para um homem que estava com ciúmes de sua sobrinha, se a situação dele não fosse considerada. Maxmillian gerara muitas complicações para aquela família, porém nada poderia ser comparado ao que tinha acontecido naquela noite. O resultado daquela brincadeira de mau gosto estava bem ali, deitado naquela cama.

Os atos imprudentes do estudante teriam passado despercebidos, até o momento em que Matthew havia olhado pela janela no meio da madrugada, constatando que Wayne quebrara uma das principais regras impostas: não usar “toxinas”. Ao longo do tempo, outros indícios daquela prática ilegal poderiam ter sido notados, talvez até mesmo Josh e Kate já soubessem disso, entretanto era lógico que os irmãos nunca delatariam, provavelmente por medo de alguma reação explosiva por parte do tio. E era capaz dele ter tido uma, se Josh não tivesse o acalmado, defendendo Max a partir de sua idade, pois ele ainda era um “garoto”.

No momento em que o homem aceitara aquilo e começara a andar de volta para sua cama, havia notado outra coisa. Uma pequena silhueta com cabelos longos e esvoaçantes, montada na bicicleta dele e desaparecendo em meio às árvores. Avery. O primeiro instinto dos Harris fora correr em disparada para fora da casa, na tentativa de encontrar a garota antes que o pior acontecesse. Seguindo a racionalidade, Matthew optara por ignorar o rapaz chapado na varanda e seguir em busca da loira. Ele não tivera como saber o porquê do namorado de sua sobrinha estar se drogando, muito menos o motivo de Dickens ter fugido da casa, no entanto ele havia tido o pressentimento de que os dois estavam relacionados.

Tudo aquilo, a corrida desenfreada pela floresta e o desespero, levaram os dois até aquele quarto, com aquela mulher. Desviando de árvores e errantes, tio e sobrinho haviam encontrado um veículo acidentado no meio da rodovia. Josh carregara a desconhecida pelo trajeto, enquanto Matt ficara responsável pelos mordedores e Avery os seguira silenciosamente, levando nada mais que alguns objetos do carro e a bicicleta.

A presença daqueles itens ao lado da cama fez com que o líder se lembrasse do que ele estava fazendo. Sem pensar em nada, ele praticamente concordara em abrigar mais uma pessoa. No calor do momento, vendo-a desacordada e ouvindo as súplicas de Avery para salvá-la, aquilo havia parecido a coisa mais sensata a se fazer. Mas, naquele momento, ponderando a situação, talvez não tivesse sido uma decisão correta para a sobrevivência, não do ponto de vista coletivo, tendo que alimentar sua família com o pouco que lhes restava. Além disso, a estadia daquela mulher representava um risco, mesmo que pequeno, à segurança deles. Ela possuía uma arma branca pesada, e poderia até mesmo ser perigosa. O caso de Avery era diferente, a jovem não passava de uma garotinha indefesa, todavia o mesmo critério não poderia ser aplicado à morena. Mesmo que seu machado fosse confiscado, ela fosse vigiada e todas as medidas fossem tomadas, não dava para confiar na bondade das pessoas, muito menos prever os limites delas.

Naquele instante, a mulher latina estava desacordada, mas não dava para garantir o futuro.

Josh a examinava, ou pelo menos tentava. Tudo que ele tinha era uma avidez por conhecimento e algumas noções um pouco avançadas de primeiros-socorros, uma exigência da escola onde o homem trabalhara para o caso de excursões ou acidentes em sala de aula. Não era necessário ser formado em Medicina para ver o quanto sua pele estava pálida, e que seu rosto não possuía vestígios de sangue, exceto pelo corte profundo acima do lábio, no canto direito. O mais chamativo era a fratura na lateral direita da cabeça da mulher, onde Josh improvisava um curativo. Além de alguns arranhões superficiais pelo corpo, ela parecia bem e, fora todos os detalhes, havia beleza nela.

– Por que vocês têm que me dar tanto trabalho assim? – Matthew questionou tornando a falar, claramente inquieto.

– Você lembra da época do Paul? – o professor comentou com um tom nostálgico.

– O Monroe? Claro! Foram tempos difíceis... Você me deu muito trabalho, não parava em casa!

– Até parece que você nunca teve dezenove anos...

– Quando eu tinha dezenove anos, meus sobrinhos ficaram órfãos e eu tive que ficar responsável – o homem rebateu. Ele não falava do assunto como se guardasse rancor ou qualquer sentimento ruim em relação ao que acontecera, o engenheiro apenas fizera tal menção para explicar o motivo de nunca ter tido essa fase da juventude, que realmente não fizera muita falta.

– Então, você sabe que eu não sou um perito no assunto, mas ela tem um ferimento aqui – ele apontou para a têmpora da mulher de maneira óbvia–, e acho que o sangue já coagulou. Fora a respiração meio pesada, acho que ela vai ficar bem. E também tem os hematomas, mas nada que prejudique muito. Só espero que não seja hemorragia interna... E se os meus cálculos estiverem certos, a bexiga dela foi comprimida e ela deve ter algum problema nos próximos dias – a cada vez que Josh acrescentava mais uma sentença com desânimo, percebia que talvez o estado da mulher não fosse tão digno de otimismo, e tudo o que lhe restava era torcer para que estivesse errado.

– Bem, acho que é melhor resolvermos os outros assuntos agora.

Os homens deixaram os quarto e se dirigiram ao corredor, onde os três mais novos aguardavam. Kate, com uma expressão sonolenta, praticamente dormia com a cabeça apoiada no ombro do namorado. Este, por sua vez, também aparentava sonolência, apesar de seu estado não ser de um torpor tão elevado quanto o dela. Seus olhos vermelhos não eram tão intensos quanto os da noite anterior. Avery era a mais desperta, parecia ansiosa e até mesmo agitada, a julgar pela forma com que suas mãos se moviam compulsivamente uma ao redor da outra.

– Então? – ela saltou até os dois, seu tom de voz alto fazendo com que a mulher ao lado se assustasse.

– Ela está descansando, e o sangramento na cabeça parou – Josh explicou, poupando-a dos detalhes negativo.

– E ela vai ficar bem?

– Nós não sabemos, Avery – Matthew respondeu pacientemente. – Temos que ver o que fazer, se ela acordar. Não sei se vocês estão realmente pensando na possibilidade de abrigar outra estranha...

– Você mesmo disse que é uma pessoa desconhecida, então não sabemos se dá pra confiar. Eu voto não – Max tomou a dianteira.

– Não estamos votando. Eu só quero coletar opiniões antes de decidir.

– Só acho que você não tem o direito de decidir isso sozinho, já que é algo que pode afetar todos aqui.

– Não acho que você esteja em condições de tomar qualquer tipo de decisão. Muito menos a Kate, ela está morrendo de sono.

– O que vocês decidirem, eu topo – a loira murmurou sem dar muita importância ou abrir os olhos. Ela passava a responsabilidade para os outros porque sabia que seu irmão e seu tio escolheriam a melhor opção, como sempre fizeram.

– Está bem, eu e Josh vamos pensar sobre o assunto e informaremos vocês a respeito. Se alguém tiver algo a mais a acrescentar, é só falar depois.

– Ei! Não passou pela cabeça de vocês esperar que essa mulher acorde e mandá-la de volta para estrada, passou? – Dickens perguntou já prevendo qual seria a decisão tomada pelos dois mais velhos. A garota desejava que essa hipótese não tivesse sido imaginada, por mais que a mulher latino-americana fosse uma completa desconhecida, ao menos uma chance ela merecia, com certeza não conseguiria sobreviver adoentada no meio da mata ou em qualquer lugar que fosse, principalmente sozinha.

– Não sabemos quem ela é, vamos abrigar uma completa estranha aqui?

– Eu era uma completa estranha – a loirinha imitou o tom de voz que Matthew havia utilizado ao usar a palavra “estranha”. – E vocês me abrigaram mesmo assim! Não é tão diferente.

– É sim, você é uma criança – só a simples menção à juventude de Avery fez o sangue dela ferver, a loira não conseguia imaginar que eles estavam realmente fazendo aquilo. O engenheiro prosseguiu, por mais que soubesse que a menina de olhos claros tivesse a melhor das intenções, ela ainda era muito jovem e sua atitude de sair andando de bicicleta à noite comprovava isso. – Essa mulher, por outro lado, pode ser muito mais perigosa do que todos aqui imaginam, por mais que esteja machucada.

– Vocês confiaram em mim, só me deem uma chance! Ela não deve fazer nenhum mal! Eu conversei com ela enquanto vocês não chegavam, ela não me parece uma pessoa ruim!

– Eu acho que a fofinha aqui tem toda a razão – Joshua concordou depois da súplica de Avery. – Ela está machucada e podemos ajudá-la, não vou conseguir dormir sabendo que larguei uma pessoa indefesa no meio da mata. Ela não deve oferecer muitos riscos nos primeiro dias, então poderemos conhecê-la melhor e esperar que ela decida se quer ficar ou não.

– Está bem – por mais que estivesse muito preocupado com a segurança de sua família, Matthew também não gostava da ideia de se responsabilizar pela possível morte de alguém.

O silêncio que dominou em seguida durou pouco, já que um gemido de dor saiu do quarto. Por alguns segundos, todos ficaram sem reação, até que Avery disparou até lá, agarrando a maçaneta para entrar no cômodo.

– O que você está fazendo? – o homem mais velho indagou num tom baixo, temeroso quanto à atitude dela.

– Vocês não estão desconfiados? Ela ainda não viu vocês, sou a única pessoa que ela conhece aqui.

– É verdade... – Josh comentou com um aceno de cabeça. – Além do mais, acho que ela se sentiria mais confortável vendo um rosto conhecido.

– Desde quando você me trocou pela Avery? – o tio perguntou fingindo estar ofendido.

– Eu só concordo com as boas ideias.

– Certifique-se de deixar o machado por perto, longe dela. E tome cuidado.

– Agora vamos dormir, eu estou muito cansado, Matt. E você, Ave, mantenha os olhos abertos, se der conta – o professor de História brincou antes de dar as costas, seguido pelos demais.

Ela realmente tentava seguir o conselho de Josh, mas sabia que não aguentaria por muito tempo. Aquele gemido, proferido minutos antes, parecia um alarme falso, já que o único grande evento ocorrido em seguida fora uma pequena movimentação na cama por parte da mulher. Ela dormia como uma pedra, e Avery estava começando a acreditar que a morena dormiria por mais alguns dias antes que conseguisse despertar.

Contudo, estava feliz.

Por Matthew ter aceitado sua sugestão, principalmente depois da sua atitude infantil que deveria ter lhe tirado todos os créditos naquela casa. Ela tivera a ajuda de Joshua, e o fato dos dois terem confiado nela em relação a algo tão importante era um avanço significativo. Apesar de estar praticamente dormindo sentada, com os cotovelos sobre as pernas e o rosto apoiado em uma das mãos, a garota achava que deveria continuar esperando ao lado do monte de roupas, CDs e do machado que ela mesma havia carregado dos destroços do que um dia fora um carro esportivo nada econômico. A menina mantinha a arma próxima, apenas pela recomendação que o engenheiro tinha feito antes de deixá-las sozinhas, para se precaver, por mais que se recusasse a acreditar que aquela mulher pudesse oferecer algum risco, não como se encontrava.

Avery se sentia em dívida com Matthew, principalmente depois dos eventos daquela noite. Ela deveria ter seguido seu conselho e, ao invés disso, preferira acreditar em Max. Por mais que aquilo havia salvado a vida de uma mulher, as coisas poderiam ter sido diferentes. A loira poderia ter morrido na floresta, e ela tinha consciência disso. Daquele momento em diante, a jovem tentaria se lembrar de sempre seguir as sábias palavras de Matthew, na medida do possível.

O que a mantinha acordada naquele momento era a curiosidade. Avery nem sequer sabia o nome da mulher que estava ao seu lado, e ela queria muita conhecê-la. A loira estava muito ansiosa para perguntar se ela tinha filhos, já que havia roupas de criança no carro destruído. Na sua mente, a latina era alguém de bem, pelo menos era isso que ela queria, se sentiria melhor sabendo que salvara uma pessoa bem-intencionada . Além disso, a conversa das duas tinha sido agradável, apesar do contexto. Não entendia o porquê de Matthew aparentar tanta desconfiança, durante os anos do fim do mundo, a garota só tivera contato com seus pais e com o aquele grupo, sendo que ambos a mantiveram viva até então. Além disso, não era para encontrar sobreviventes que Josh verificava o rádio diariamente?

Quando a mulher tornou a se movimentar, Avery arregalou os olhos e se aproximou. A animação foi correspondida quando um par de olhos se abriu, revelando suas íris castanhas e pupilas que se contraíram lentamente. Por alguns segundos, ela mirou o teto, piscando várias vezes e tentando entender o que estava se passando. Levou algum tempo para que a administradora se recordasse do acidente, o que a deixou mais confusa, já que desmaiar em um carro e acordar debaixo de um teto eram coisas inacessíveis naqueles tempos.

– Onde estou? – a morena perguntou involuntariamente, antes mesmo de perceber que havia alguém no local.

– Em um lugar seguro. Você se lembra de mim?

– Avery. Claro que eu me lembro. Onde estão as minhas coisas?

– Estão aqui... – a adolescente respondeu meio receosa. Ela tentava ser gentil com aquela mulher atordoada, por isso a pergunta direta a pegara de surpresa. Os olhos dela seguiram o braço da loira até a pilha de roupas sobre o pequeno móvel, e foi a primeira vez que o olhar dela se prendeu em algo.

– Como eu cheguei aqui?

– É uma longa história... Não se importe com isso. Como você está se sentindo?

– Eu não sinto nada – aquilo era uma grande mentira, e a mulher sabia disso. Ela sentia sim, muita dor, na bexiga comprimida, no corte do rosto e na têmpora, além da pulsação em partes do corpo que nem a própria ferida sabia onde eram. Entretanto, outra dor anulava as outras, era a dor da perda de Scott e, principalmente, de Barbara.

– Isso é... bom? – sua resposta foi um longo silêncio e um olhar indiferente, que fez Avery se sentir desconfortável por deduzir que talvez a desconhecida não estivesse se importando com aquilo. E, de fato, ela não se importava. Era insignificante, se ela estava viva ou morta, se estava bem ou mal fisicamente. – Você não está sentindo dor ou não está sentindo seu corpo? Consegue se mexer?

– Eu posso me levantar e sair agora mesmo – outra mentira.

– O que aconteceu com você?

– O que aconteceu comigo?

– É, o acidente. Seu carro capotou no meio da estrada. Você não perdeu a memória ou algo do tipo e só se lembra do meu nome e das suas coisas? Eu me sentiria até lisonjeada por isso, mas não deve ser legal perder a memória...

– Eu preferia ter me esquecido de tudo...

– Não fale uma coisa dessas! Imagina como deve ser terrível acordar em um lugar desconhecido, sem saber quem são seus pais, seus filhos, seus vizinhos, quem você é... Fale sobre o acidente, eu quero entender o que aconteceu.

– Essa foi a coisa mais irresponsável que eu já fiz na minha vida.

– Sério? – a loira indagou se aproximando mais, tentando entender como um capotamento acidental poderia ser uma irresponsabilidade tão grave. – Você nunca roubou um carro bêbada, fez uma tatuagem escondida ou fugiu de casa quando era mais nova?

– Não, essa foi a coisa mais irresponsável que eu já fiz.

– Você não pode ser humana! Por acaso você não é de Vulcano?

– O que é isso?

– Como assim você não sabe o que é Vulcano?! – Avery tentou, mas não conseguiu evitar o grito. – O que você esteve fazendo nos últimos quarenta e cinco anos?

– Trabalhando – ela respondeu com um leve tom de desprezo na voz.

– OK, se você vai ficar respondendo tudo com desdém e hostilidade, eu vou dormir – a jovem se levantou da cadeira derrotada.

Antes de sair, seguiu o olhar da mulher até o monte de roupas, só então percebendo que estivera fitando aquilo desde o início da conversa. Ela foi até lá e, sem saber o porquê, pegou o casaco de lã que estava por cima. Por algum motivo, aquela peça parecia ser importante para a latino-americana, já que os olhos castanhos pareciam estar focados apenas naquela blusa de mangas compridas, como se nada mais importasse. Sentindo uma onda de pena misturada com compaixão, Avery se aproximou e depositou o casaco tribal sobre o corpo da mulher.

– Boa noite, vulcana – Espero que você se recupere como uma...

Levou muitas horas até que Gabriela acordasse novamente. Como da outra vez, não sabia onde estava, apenas que era um “lugar seguro”, como se isso ajudasse em algo. Naquele momento, ela finalmente percebeu o quanto seu corpo estava dolorido, e que precisava ir urgentemente ao banheiro. Além disso, os diversos cortes distribuídos em seu corpo ardiam muito pela ausência de cuidados, principalmente o do rosto. Se fosse até o espelho, enxergaria seu estado deplorável: o rosto pálido e abatido, cabelos desgrenhados e opacos, olhar vago e um corte acima do lábio. Contudo, nada era pior que a lesão temporal. Caso o choque tivesse sido mais forte, certamente a mulher teria sofrido uma concussão.

Sua mente estava completamente confusa, e não era apenas por causa da luz forte de atravessava a janela aberta. Desorientada, procurou algum sinal de Avery por perto, sem obter êxito e, por algum motivo, isso teve uma repercussão negativa nela. A cama ao lado estava precariamente arrumada, como se a tarefa tivesse sido realizada por alguém sem destreza no assunto, mas ela não poderia esperar muita coisa vinda de uma adolescente desorganizada. E era naquele local que estavam os CDs de seu pai, espalhados e alguns até abertos. Ao olhar para aquilo, se lembrou novamente de seus pais.

Desviando o olhar apressadamente, foi pega de surpresa ao notar o que estava sobre seu corpo. O casaco. Olhar para aquela lã em tons marrons e coloridos levou à tona aquela mesma sensação, a que tivera ao olhar para seu lar aos pedaços. Subitamente, teve vontade de apagar. Não só dormir, mas Gabriela desejou nunca mais acordar, porque nada mais fazia sentido em sua vida, nunca mais faria, não sem eles. Pouco tempo se passou antes que seu cérebro apresentasse uma contradição. Avery estivera certa em suas palavras, se esquecer deles era esquecer quem era ela. Não podia dormir ou, no caso, desistir. Aquilo não era o fim, a morena só precisava ser forte para recomeçar e encontrar um fim de verdade.

Talvez as lembranças de seus pais ajudassem, porque as memórias deles seriam um lembrete de que a única coisa que eles queriam na vida era vê-la feliz. Então, se Hopper fosse morrer, queria ter realizado o desejo deles antes. Só que as coisas não eram tão simples assim, decidir continuar não era a resolução de seus problemas, da dor, era apenas o início para superar aquilo, uma longa jornada de dúvidas. Apesar de querer continuar deitada, tentando não pensar em nada, a administradora sabia que precisava se levantar em algum momento, e ela não era o tipo de pessoa que deixava seus afazeres para depois.

Inicialmente, tentou se situar. Olhando pela janela, era possível deduzir que o quarto ficava pelo menos no segundo andar, a julgar pela posição das árvores. Porém, não estava certa de que suas conclusões eram confiáveis, já que, minutos antes, poderia ter jurado que o abajur fosse um cogumelo dançante ao seu lado. Tudo o que sabia era que precisava sair daquele lugar. O que Gabriela menos queria era que alguém se preocupasse com ela, principalmente a garota que salvara a sua vida.

Seu plano era conseguir sair de lá, e depois pensar no que fazer. Talvez, do lado de fora, ela pudesse ter uma nova chance para recomeçar, se fosse possível. O tempo de vida no fim do mundo era curto, e fazer planos para o futuro era uma atitude muito ambiciosa. No entanto, antes de deixar aquele quarto, a mulher precisava de duas coisas: encontrar seu machado e agradecer à menina loira. Uma rápida observação do cômodo deixava claro que a arma não estava à disposição.

Pressionando os antebraços sobre o colchão, tentou erguer seu tronco. Nada. A morena pensou que era melhor começar pelo mais fácil, então arrastou as pernas demoradamente até que elas deixaram a cama e penderam ao lado, produzindo uma dor quase insuportável que a fez abrir a boca, contendo um grito. Em seguida, tentou se apoiar novamente nos cotovelos, fazendo um esforço abdominal inimaginável. Todos os músculos estavam dormentes após tanto tempo de desuso, e a súbita labuta a fez sentir pontadas em todos os lugares. Finalmente, se sentou sobre a cama, ofegante e com vontade de voltar a se deitar. Olhando para seus pés, ficou feliz, na medida do possível, por estar com suas botas.

Com um impulso sobre-humano, projetou seu corpo para a frente, tentando se apoiar nas pernas. E desabou. Antes de cochar seu rosto contra o chão, agarrou a cabeceira da outra cama para se sustentar. A queda não a incomodou, pois a dor de ficar em pé superava isso. Aceitando que precisaria de um apoio, cambaleou pelo quarto, que parecia ter quilômetros, se segurando em tudo que via pela frente.

As escadas teriam sido um obstáculo impossível, se não fosse pelo corrimão, que Gabriela ignorara por toda a sua vida. Assim como o outro andar, o primeiro estava vazio, pelo menos inicialmente. Caminhando pela sala de estar, tropeçando em seus próprios pés e tentando não emitir nenhum som além dos gemidos de dor, a administradora alcançou a porta da cozinha. Parecia estar vazia, se desse para desconsiderar uma garota escorada na bancada segurando um pote de manteiga de amendoim e uma colher. Ao ver a mulher, ela tirou o talher da boca, comprimiu os lábios formando um sorriso e inclinou a cabeça para o lado, como se quisesse dizer “oi”.

– Você acordou – Avery riu de maneira irônica.

– Acordei?

– Sim, você apagou por um dia e meio! Estávamos fazendo apostas sobre quanto tempo demoraria pra você voltar...

– Apostas? – até o momento, a mulher constatou que perdera a habilidade de formular frases longas.

A loira ficou parada por alguns instantes, pensando que tinha acabado de dar com a língua nos dentes. Naquele momento, os Harris haviam saído para preparar as armadilhas, arrastando Max junto, já que Matthew preferia confiar em Avery a confiar nele. Deixaram uma garota faminta, que passara a última hora revirando os armários furtivamente em busca de algo comestível, até encontrar aquele pote convidativo de manteiga de amendoim escondido no fundo de uma gaveta, atrás de algumas latas de feijão.

– É complicado...

– Tudo é complicado – ela retrucou com certa dificuldade.

– Tudo bem, eu não sou a única em situação difícil aqui. Vamos fazer o seguinte, eu não posso falar nada sobre isso, então você pode perguntar o que quiser, desde que não seja relacionado aos outros.

– Outros?

–Certo, já vi que você faz exatamente o contrário do que dizem... Achou mesmo que eu ia conseguir te arrastar até o segundo andar no meio da noite?

–Existem outras pessoas? Quantas?

– São poucas, mas acho que você vai gostar de conviver com eles.

– Conviver? Eu não vou conviver com ninguém. Estou indo embora – dizendo isso, a morena tirou o corpo da bancada e se impulsionou para frente, dando alguns passos antes de tornar a falar, porém sem encarar a garota. – Eu só vim buscar o meu machado.

O que aconteceu em seguida não fora esperado por nenhuma das duas. Sem aviso prévio, a administradora desabou no chão, sem forças para se levantar do piso frio da cozinha. Avery largou sua refeição em qualquer lugar e, com certa dificuldade, ajudou a estranha a se levantar e sentar em uma cadeira. A loira ficou parada de frente para ela enquanto as duas se encaravam. A latino-americana mantinha a cabeça baixa, o que ressaltava a sua fraqueza física, reforçando a ideia de que ela mesma se recusava a acreditar nisso.

– Você vai mesmo embora?

– Sim.

A adolescente estava deveras confusa. Primeiramente, era óbvio que a mulher não tinha condições de sair naquele momento. Em segundo lugar, ela pensava que, depois de convencer Matthew, a morena poderia ficar lá, só que Avery havia se esquecido que precisava do consentimento da pessoa que seria abrigada em questão.

– Pensei que vulcanos usassem a lógica – Dickens comentou com certo humor, conduta que ela utilizava bastante em situações como aquela, em que não sabia como agir.

– Eu não sou uma vulcana, seja lá o que isso for.

– Tá, mas eu precisava de um apelido, já que eu nem sei o seu nome...

– Gabriela Hopper.

–Então, Gabriela... Você não está em condições de sair, e nós queremos te ajudar. Nós podemos de ajudar.

– Eu não quero abusar da hospitalidade de vocês.

– Você está machucada, e não deve estar pensando direito. Além disso, toda a hospitalidade já foi abusada por mim. Já convenci as pessoas de que é melhor ficarmos com você. Depois, quando estiver boa, pode ir embora se quiser – Avery sugeriu olhando de maneira triste para a figura torta e curvada da mulher.

– Eu não posso...

– Por quê?

– Eu não quero.

–Por que você não quer? – a jovem insistiu, sem notar que estava esgotando a paciência de Hopper.

– Porque eu quero ficar sozinha! – naquele momento, Gabriela se exaltou. Ela queria ficar só com sua dor, até que o sofrimento parasse, até que ela não fosse mais capaz de sentir algo. Não havia ninguém no mundo que pudesse ajudar naquele momento, nem Avery poderia. A garota loira era boa e muito compreensiva, e, por mais que Gabriela preferisse não ter soado tão rude e hostil, ela fora, apenas para liberar um pouco do que se encontrava dentro dela e extravasar. Por que ela queria estar sozinha com seu sofrimento que parecia não ter fim. Sem saber exatamente o que fazer em seguida, deixou que as lágrimas transbordassem de seus olhos e que seus ombros sacudissem a cada tentativa de respiração.

– O que realmente aconteceu naquele acidente? – ela perguntou de maneira mais direta, já que as perguntas anteriores tinham sido evitadas. Revendo todas as evidências, essa era a conclusão que era havia tomado. As roupas de criança no carro, e a ausência de outra pessoa levaram Avery a crer que Gabriela tinha um filho, e que ele morrera.

– Não foi o acidente, foi o que aconteceu antes dele – a maneira sombria com que as palavras foram ditas chocaram a garota, sem responder muita coisa.

– Gabriela, o que aconteceu? Foi seu filho, não é?

– Não, eu não tenho um filho. Mas tomava conta de um garotinho... Ele morreu, e a minha mãe também.

– Você viu?

– Não. Mas eles se foram, tinham muitos errantes lá.

– Eu vi a minha mãe sendo devorada... Ela não era a melhor mãe do mundo, mas costumava ficar comigo nas noites em que eu não conseguia dormir. Agora eu sempre a vejo morrendo quando tento dormir. Eu tenho certeza que a sua mãe deve ter sido uma boa pessoa para você ficar assim.

– Ela era ótima... Eu deveria ter protegido eles, era minha responsabilidade. Eu baixei a guarda, todos os dias, e não percebi quando aquelas coisas imundas levaram eles... Foi minha culpa – ela afundou o rosto nas mãos e continuou a chorar.

– Sabe, eu não posso dizer que não tive culpa na morte dos meus pais. Eu me distraí por causa de uma fogueira idiota e, quando olhei para eles, não tinha mais como fazer nada. Talvez eu não tenha dado muita atenção para eles durante todos os anos, mas agora eu sinto a falta deles, principalmente da mamãe – a loira suspirou demoradamente, com o olhar perdido. – Bem, parece que se culpar por isso não vai trazer nenhum deles de volta, só doi mais.

– Obrigada... Foi melhor conversar com alguém, isso estava me sufocando – Gabriela limpou as lágrimas e fungou algumas vezes, encerrando a conversa com um sentimento bom.


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Notas finais do capítulo

Então, o que acharam?
Só uma pequena explicação: vulcanos são uma raça alienígena da série Star Trek que são movidos pela lógica e pela razão, não pelos sentimentos. Deixamos esses easter eggs aqui sem querer, já tínhamos planejado isso há mais tempo, só que acabou coincidindo com a morte do mito Leonard Nimoy, então aqui fica a nossa pequena homenagem ao acaso. Vida longa e próspera.
Link de Hold On: http://fanfiction.com.br/historia/598170/Hold_On/
Estávamos com saudades! Até mais!