End of the World escrita por Agatha, Amélia


Capítulo 13
Capítulo 13


Notas iniciais do capítulo

NOTA DA AMÉLIA:
Nossa! Quanto tempo! Antes de tudo, eu e a Aggie devemos um pedido de desculpas enorme. Sério, não queríamos ter chegado a esse ponto! Queremos muito que a história avance, porque tem muitos acontecimentos grandes, novos personagens, histórias e novos rumos, contudo antes que tudo isso aconteça temos que construir o alicerce da história. Foram vários acontecimentos que nos atrasaram, a escola nos exige muito, assim como nossas outras atividades “extracurriculares” e o computador também não ajuda muito, quando escrevemos lindos parágrafos ele não salva e perdemos tudo.
Quero agradecer à Laís pelos comentários maravilhosos, à Amante Adorável pelos comentários e pelo presentinho que ela nos deu também. A Kaya, Killer e Lady Anne por terem nos dado um ânimo muito grande, estávamos precisando. As novas leitoras que fazem com que End of the World possua 69 comentários e quase cinco mil visualizações com apenas treze capítulos (agora). Muito obrigada!
Vocês devem estar se perguntando o que eu estou fazendo aqui nas notas, certo?? Bem é porque hoje (23/09) fazem um mês, três semanas e cinco dias (ou se preferirem: cinquenta e sete dias) que se passou o dia 28/07, aniversário da Aggie! E quem melhor para falar sobre esses catorze anos do que a pessoa que conhece e viveu a maioria desses catorze anos com ela?? Acho que pelo menos quem nos acompanha a mais tempo sabe o quanto eu admiro essa menina. Amo e a admiro muito. Agatha é uma das pessoas mais responsáveis e corretas que eu conheço, além de ser uma das mais brilhantes também. Deixa todo mundo aqui de casa no chinelo, nesses quesitos e na fofura também. Sério! Ela é tão fofa que eu tenho vontade de apertá-la o tempo todo. Gostaria de fazer um grande texto falando muito mais sobre suas qualidades para que vocês pudessem conhecer um pouco mais dessa garota companheira que eu tenho ao meu lado. Feliz aniversário Aggie!
Bem, fiquem com esse capítulo maravilhosamente escrito pela Agatha e por mim, que ficou em primeiro lugar no simulado, ganhou medalha de bronze no campeonato estadual de handebol e é uma das melhores enxadrista da escola.
Até as notas finais!



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O dia estava frio, mais frio que os olhos cor gelo de Johanna. Acreditar que aqueles olhos indicavam frieza e uma possível ameaça fora um equívoco enorme, aquelas belas íris eram cordiais e sempre brilhavam com afetuosidade, transmitindo tanto calor quanto os cabelos alaranjados dela. Esse aspecto afável não vinha só da aparência, sua personalidade era assim, sempre querendo o bem do próximo e fazendo o máximo que podia para ajudar as pessoas. Naquela manhã, na hora da despedida, ela agira da mesma forma, preocupada, prestativa e atenciosa.

Depois de dizer palavras positivas, a freira abraçara a médica com força, acrescentando que rezaria por ela. Por último, lhe dera a faca de cozinha que trouxera da St. George. O gesto deixara Sarah bastante tocada, aquele objeto parecia ter valor sentimental para Johanna, e mesmo assim a mulher abrira mão dele em prol da segurança de Sarah. Hill também parecia ter tocado Michonne, por mais difícil que fosse para a médica compreender o que a espadachim sentia apenas analisando seu rosto. Alguma coisa em seus olhos castanhos parecera mudar quando Johanna se aproximara, prometendo que acenderia uma vela, caso encontrasse uma, pelo sucesso da nobre missão delas e entregando a ela uma pequena ferramenta pontuda. Não que a katana não fosse suficiente, mas se por ventura fosse necessário...

Johanna e a igreja ficaram para trás. Judith chorara o tempo inteiro e, para abafar os sons, ficara com Carol durante a pequena despedida, protegida pelas frágeis tábuas de madeira que constituíam a St. Sarah. Por mais que não suportasse a presença daquele pequeno ser dividindo o mesmo espaço que ela, Sarah se sentia bem em ser uma das responsáveis por cessar aquele choro infernal: se tudo desse certo, logo a criança estaria bem e não precisaria chorar tanto. Carl não apresentara melhora nem piora e, mesmo assim, estivera lá fora, olhando para a estranha e desentrosada dupla, claramente preocupado com sua amiga. Não havia muitas ressalvas para o restante do grupo, apenas que Rick não parecera muito bem, talvez pela exaustão de uma noite mal dormida por conta da filha ou devido a um possível sintoma da bactéria que atacava o grupo. Daryl era Daryl, quieto em um canto, apenas observando a saída das mulheres. Seu cansaço aparente era confirmado pelas olheiras que marcavam os olhos. Um deles, o direito, era contornado na parte inferior por um inchaço vermelho. Gabriel tinha proferido palavras parecidas com as da freira, a respeito de fé e esperança. Apesar do conteúdo, pareceram vazias e sem significado, todos sabiam que o padre não dissera o que pensava de verdade. Como pode surtir efeito em alguém se nem mesmo ele acredita nisso?

Por mais que andasse com rapidez, Sarah sentia que continuava com os dois pés atrás, não estava segura. Um dia inteiro dentro daquela igreja, convivendo com Gabriel, Rick e outras companhias mais agradáveis, fizeram com que ela tivesse certeza de que não havia nada melhor do que ter um abrigo, um lugar para voltar. Não era um pensamento muito diferente do que possuíra antes do fim do mundo, quando mal via a hora de voltar para seu apartamento em Jackson, tarde da noite, e encontrar James a esperando no quarto. No fundo, Sarah só queria ter certeza de que havia algo esperando por ela, mesmo que fosse apenas o sofá velho da igreja. Estar longe de seu abrigo e a incerteza da missão faziam com que seu corpo inteiro ficasse alerta, por isso os dois pés atrás. Automaticamente, cada movimento era realizado com extrema cautela, como se pisasse em ovos.

A arma de James ia à mão direita, pronta para ser destravada e disparar em um possível alvo. A faca de Johanna seguia dentro da fiel bolsa tiracolo, perto do kit de primeiros socorros, que atendia às necessidades de uma mulher com diploma em Medicina, além de alguns suprimentos. Não que ela pensasse muito na possibilidade de encontrar uma emergência, mas, como a própria morena costumava pensar, nunca de sabe. Era melhor pecar pelo excesso do que pela falta. Bem, Michonne não pensa muito assim.

A espadachim levava apenas sua katana nos ombros e a chave de fenda presa ao cinto. Duvidava que levasse comida consigo. Comedida parecia ser um bom adjetivo para ela, nas palavras e nos pertences, menos na cautela. Cem por cento parecia pouco para Michonne. Sarah decidiu que gostava disso nela, da precaução e do silêncio. Não havia motivos para ter ódio daquela mulher, só um pouco de raiva por conta do acontecido no primeiro encontro. Revendo o que tinha acontecido, Sarah percebia que aquelas pessoas não mereciam tudo aquilo. Talvez, no primeiro momento, tivesse sido atacada por uma onda de cólera, simplesmente pelo fato de estar com ódio do universo, somando com isso ausência de compaixão apresentada pelo grupo. Talvez não o grupo inteiro. Exceto pelo tratamento rude, os desconhecidos haviam dividido seu abrigo e sua comida com ela e com Johanna, além de, no final, terem aberto as portas.

Seu estado mental influenciava o corpo. Dores de cabeça, cansaço muscular e exaustão vieram com tudo na última noite e, para fechar com chave de ouro, Judith fizera questão de afirmar sua presença na igreja, já que Sarah preferia ignorá-la por completo. Duvidava que esses sintomas pudessem ser algo relacionado à doença dos Grimes, nem ao certo sabia se Daryl, Michonne, Carol, Rick e Gabriel estavam com a bactéria. No fundo, ela só queria descansar por dois dias, tinha certeza de que uma boa noite de sono a faria ficar menos irritadiça e amarga. Até conheceria o grupo com quem convivia e carregaria Judith nos braços... Na verdade, duvido que um dia consiga segurá-la, essa ferida não pode ser curada tão facilmente.

Logo a estreita estrada de terra se tornou asfalto e a paisagem começou a mudar. As árvores praticamente sumiram, dando lugar a algumas construções, um edifício de dois andares que parecia ser uma escola e vários outros muito semelhantes. A descrição do local batia com a que Gabriel Stokes e posteriormente Rick Grimes haviam dado. Era um local pequeno em comparação ao resto da cidadezinha, mas Sarah não ligava nem um pouco para a humilde rua, desde que ela tivesse a farmácia com os remédios que procuravam. Michonne parou à sua frente e ficou apenas observando o lugar deserto, avaliando-o.

– Não há muitas farmácias nessa cidade – Michonne se manifestou. Pela primeira vez lhe pareceu certo ter trazido alguém do grupo de Carl para buscar os remédios, teria sido muita insensatez e prepotência achar que resolveria tudo sozinha naquele território desconhecido. Era lógico pensar que os habitantes da igreja conhecessem o terreno em que estavam pisando, eram experientes em sobreviver. – Há uma nesta rua e outra na rua paralela a essa – ela apontou para uma construção espremida entre dois prédios não muito distantes da escola. A fachada de vidro estava intacta, deixando o estabelecimento com um ar de intocado.

– Se tivermos sorte encontraremos o que procuramos na primeira – afirmou. Morris desconsiderava a possibilidade de falha ao entrar no primeiro estabelecimento. A loja não parecia ser tão simples e os remédios eram bastante comuns, seria até mais fácil se a loja fosse mesmo intocada...

Tomando a frente, a médica ergueu a arma de seu esposo com bastante confiança. Sentia-se muito melhor com a possibilidade de voltar para a igreja, voltar para a sua verdadeira missão. Não que estivesse fazendo isso contra a sua vontade, ou que quisesse provar sua bondade e compaixão para o outro grupo, pois era seu dever tratar de Carl e Judith e quem mais precisasse de atendimento. O mundo poderia ter acabado, a civilização estava acabada, assim como suas regras, mas ainda tinha seus princípios. Por mais difícil que fosse se adaptar, e era o que ela tentava fazer a cada manhã, algumas coisas perduravam dentro dela. Foram longos anos de curso para que no final ela tivesse feito uma promessa que seguiria pelo resto da vida. Um juramento ainda era um juramento, com ou sem mortos-vivos.

À medida que a silenciosa confiança tomava conta de seu corpo, a esperança começava a crescer dentro dela. Aquela pequena chama que havia dois dias parecera tão pequena, prestes a extinguir, começava a tomar forma, fazendo com que ela acreditasse que no final tudo acabaria bem. Talvez eu não esteja tão amarga assim, ainda tenho uma esperança tão grande quanto a de Johanna. Logo ela voltaria à igreja, logo as duas crianças seriam tratadas e logo ela encontraria Fred. Onde quer que ele esteja.

A fachada estava toda intacta, desde o letreiro vermelho até a escada branquinha que, se não fosse pela madeira encardia, deixaria o local com um ar de pureza ainda maior. O local todo branco em meio ao dia acinzentado típico de um inverno na Geórgia, com grande ventania e quase nenhuma neve, parecia resplandecer em meio aos poucos raios solares. Se fosse Johanna, diria que era algo sagrado, uma mensagem divina dizendo que todas as preces foram atendidas; se fosse um professor, pensaria na cor branca como a que reflete todos os raios luminosos, não absorvendo nada, dando a visão límpida do local. Mas, para Sarah Morris, formada em Medicina de Urgência, aquilo não era um sinal ou uma obra física, era um fato totalmente irrelevante e que não era digno de nota. O que era realmente digno de nota era a porta da frente trancada.

A mulher negra resolveu isso em alguns segundos. Deu um soco com as costas da mão no vidro próximo à maçaneta e rodou-a por dentro. Sem mais esforços a porta se abriu para dentro, devagar, porém não emitiu nenhum som que denunciasse a falta de cuidado do local. As prateleiras pareciam em ordem e aparentemente estavam cheias, o que, de alguma forma, contribuía para a sensação de confinamento emanada pelo local. Em contraste com a parte da frente do estabelecimento, os fundos pareciam enormes e, se tivessem sorte, o estoque ainda estaria cheio. Naquele momento, as chances de uma possível falha eram mínimas, sequer havia caminhantes na loja.

Sarah se adiantou e começou a procurar pelas prateleiras. Mentalmente, já havia listado todos os possíveis medicamentos para o tratamento da bactéria e excluído parte da relação imaginária. Alguns tinham efeitos colaterais sérios, outros eram contraindicados para bebês, o que inviabilizava o uso. A mulher decidira que deveria buscar por amoxicilina ou ampicilina, o último detentor de menores reações negativas e mais raro. Caso alguém passasse muito mal devido aos remédios, a médica sabia que seria culpada por isso, e a última coisa que queria era ser alvo de mais suspeitas.

– Por onde começamos? – Michonne questionou.

– Temos duas opções: amoxicilina ou ampicilina. São os únicos que servem para adultos e crianças sem tanta agressividade – respondeu sem tirar os olhos da prateleira à sua frente.

– Adultos?

– Estou quase certa de que a bactéria tenha se espalhado para todo o grupo, é o mais provável. Nesse caso, todos vocês precisarão se medicar – a outra acenou com a cabeça, parecendo concordar. Às vezes a médica se perguntava sobre o nível de confiança dela; seria fácil pensar que Sarah poderia estar se aproveitando da ignorância deles em relação a tais assuntos para obter alguma vantagem, e ela tinha medo disso.

Naquele dia, a sorte parecia estar a seu favor. Encontraram ambos os remédios, amoxicilina em maior quantidade, conforme o esperado. As caixas foram rapidamente encontradas na prateleira atrás do balcão, perto de várias outras. Era visível que a loja fora visitada antes, talvez por alguém que possuísse a chave do estabelecimento julgando pela porta travada, porém não havia muito a reclamar dessa pessoa. Por esse motivo, Sarah e Michonne resolveram em um acordo silencioso que a farmácia seria deixada da mesma forma, parecia o certo a se fazer.

– Vocês precisam de mais alguma coisa? – a morena perguntou antes de saírem. Não gostaria de voltar lá outra vez.

– Não, temos tudo o que precisamos – Sarah se contentou com a resposta, apesar de saber que produtos de higiene eram sempre bem-vindos.

Não havia mortos dentro do estabelecimento, isso fora constatado. O mesmo não poderia ser dito do exterior. Aquela rua, em especial, tinha sido preenchida por eles em poucos minutos, o som do vidro estilhaçando chamara muita atenção dos seres, principalmente quando eles perceberam que havia carne viva naquele local. O primeiro indício daquele grupo de mortos-vivos foi o som produzido pelas vibrações das cordas vocais, algo estrangulado e doloroso de se ouvir, muito parecido com gritos de pessoas que agonizavam, lamentos do inferno. Em segundo lugar, veio o cheiro nauseante e embriagante, impossível de não ser notado quando invadia as narinas das pessoas. E por último, depois da poluição auditiva e do olfato, veio a visual, dando uma noção do que as duas sobreviventes teriam que enfrentar em um futuro muito próximo.

Sarah ficou estagnada como um vegetal, sentindo-se enjoada. Seus pés se transformaram em raízes, perdendo uma de suas principais funções, deixando-a parada enquanto tentava inutilmente contar o número de caminhantes e esquematizar o que poderia ser feito contra eles. Poderia ter aprendido a se virar sozinha, mas ainda não tinha o pensamento rápido de um sobrevivente nato. Surpreendentemente, seu corpo foi puxado para trás por uma pessoa mais experiente que ela. A médica não se opôs ao gesto, e logo passou a caminhar por vontade própria, seguindo a espadachim até os fundos da loja. Não sabia o que a mulher tinha em mente, mas esperava que tivesse um plano, pois ela mesma não conseguia pensar em nada além do perigo que se aproximava.

Michonne a guiou pelas prateleiras, passando pelo balcão e se dirigindo ao estoque nos fundos da loja. Ela apenas torcia para que uma saída na parte de trás existisse. Isso é ridículo! , Morris pensou, entregando os pontos. Estávamos tão perto... Por quê? Estava farta daquela frustração, farta de ver sua esperança esmagada pela centésima vez. Já não era a primeira vez que se questionava sobre manter a esperança ou não, mas estava certa de que seria a última. Decidiu que não queria mais se sentir como um cachorro que persegue o próprio rabo, decidiu que não se iludiria mais. Manter as esperanças em meio ao apocalipse estava se mostrando ser algo pouco saudável, no final apenas serviria para deixá-la louca. De que adiantava, se toda a vez que estivesse prestes a alcançar seu objetivo ele escorresse pelos dedos? Nada.

Concentrando-se no presente, ela avaliou as possibilidades. Não havia muito, por isso a médica julgou a ideia de Michonne a mais viável, já que estava fora de questão duas pessoas enfrentarem aqueles mordedores sozinhas. O tempo era escasso e nenhuma das duas pareceu encontrar uma saída com sua olhada rápida e pouco minuciosa pelo local, uma vez que já era possível notar a presença dos caminhantes na entrada da loja. O tempo está acabando.

Depois que a pesada porta foi fechada e travada por dentro, a luz pareceu sumir. Havia poucos raios solares oriundos de uma janela pequena de mais para servir de rota de fuga no alto da despensa, e nada mais. O local era claustrofóbico pela falta de luz e pelas prateleiras imensas, que se erguiam até o teto como gigantes metálicos, tão grandes que Sarah se sentia em uma casa de bonecas. Nada mais além da escuridão era importante, principalmente com a horda de caminhantes do lado de fora.

O coração da morena palpitava mais forte só de pensar neles. Sarah já vira hordas gigantescas, tão grandes que poderiam ocupar um grande trecho da Interestadual, contudo todas essas estiveram distantes dela, bem longe, afastadas do seu caminho até Frederick. Essa manada, por outro lado, não estava tão distante, já batia à porta e não dava chance alguma a elas. Embora não fossem capazes de derrubar a porta de metal ou as paredes, e Sarah torcia por isso, aquelas criaturas grotescas tinham uma paciência infinita que poderia anular a resistências das mulheres. Eles não têm nada a perder, pensou enquanto se sentava no chão, encostada na parede mais distante da entrada. Abraçou os joelhos, deixando a pistola repousada em seu corpo enquanto tentava respirar.

– Qual é o plano? – ela perguntou depois de muito tempo, ou pelo menos imaginava que fosse isso. Michonne estava sentada ao seu lado, imóvel, com os olhos fixos na origem dos gemidos.

– Esperar – a espadachim não demonstrou tato ou preocupação na resposta, apenas pronunciou a palavra e deixou que o som emitido pelos errantes preenchesse a sala novamente.

O local era pequeno, e as duas estavam no ponto mais distante da porta, não que aquilo fosse servir de algo caso os mordedores invadissem a despensa. Naquele ambiente escuro e abafado, era fácil perder a noção da passagem do tempo; depois de alguns minutos, Sarah poderia ser capaz de jurar que a Lua já nascera, apesar de terem deixado a igreja no início da manhã. A mulher se sentia profundamente entediada e só conseguia pensar em sair daquele lugar, apesar de tentar ser realista e repetir mentalmente que aquilo era impossível.

Não percebeu quando começou a fazer aquilo, mas estava acontecendo. A médica segurava sua aliança entre o dedo indicador e o polegar da mão direita, rodando-o no mesmo lugar enquanto mantinha os olhos fixos nas pequenas pedras brilhantes de diamante. Apesar de suas tentativas, a escuridão não era capaz de ofuscar totalmente a joia de ouro branco, e Morris não sabia se deveria gostar ou não disso. Olhar para o anel de casamento lhe trazia sentimentos bons e ruins e, acima de tudo, lembranças.

– Como vocês foram parar naquela igreja? – Sarah perguntou para se distrair, e por alguns instantes se sentiu como a amiga Johanna nas inúmeras vezes em que a freira não conseguia ficar em silêncio. Nem ao certo entendia o porquê daquela indagação, principalmente pelo fato de que sua acompanhante não parecia ser muito aberta.

– Da mesma maneira que você e a freira foram parar lá: sobrevivendo – aquela resposta fez a doutora pensar, pensar no número de pessoas que poderiam estar passando pela mesma vida que ela, com as mesmas incertezas, mesmo desafios e quem sabe com o mesmo desejo de encontrar alguém próximo perdido havia muito tempo. Ela não estava só, as pessoas passavam pelas mesmas provações que ela, até mesmo Michonne poderia ter passado ou estar passando por essas aflições. A mulher ao seu lado não parecia estar esgotada, perturbada, mesmo vivendo nesse inferno. Ela era assim tão fraca para sucumbir à dor física, mental e psicológica desse novo mundo? – Dia após dia.

A última fala foi mais carregada, cheia de cansaço. Talvez fosse esse o único sentimento que abalasse a espadachim, fadiga de dia após dia lutar sem descanso. Mesmo assim essa era a única coisa que sua face transparecia enquanto Sarah era um poço de dor, mágoas, cansaço, frustração e grandes doses de raiva que a consumiam de dentro para fora. Era como se estivesse perdendo uma luta contra a vida, apanhando bastante no processo e se perguntando se não deveria continuar no chão depois de cair. O segredo para viver melhor no mundo acabado, uma vez que aquele estilo de vida não era o ideal, seria viver um dia de cada vez. E era caro demais nutrir esperanças. Um dia de cada vez... Acho que Fred pode esperar. Era insensato demais correr atrás dele sem ter uma referência, tanto quanto ele fora ao largar o apartamento em Dalton à procura de um “lugar seguro”. Um dia de cada vez, prepararia seu corpo e sua mente para a longa jornada do apocalipse.

– É casada? – Sarah não soube o que a assustou mais, a pergunta inesperada de Michonne ou fato de estar mexendo compulsivamente em seu anel de casamento sem saber ao certo motivo.

– Sou... Eu fui – tentou parecer fria ao pronunciar tais palavras, e não soube dizer a reação da mulher ao ouvir aquilo; talvez sua voz tivesse saído trêmula demais. Ela poderia ter pensado que era viúva, por isso a médica optou por consertar aquilo antes que perdesse a oportunidade. – Não, ele não morreu. Eu o deixei.

– Você simplesmente abandonou seu marido, mesmo sabendo que poderia nunca mais vê-lo? – Morris não conseguiu captar o que Michonne quisera dizer com aquilo, mas certamente não tinha sido uma crítica. Era como se a estranha, por algum motivo, a aconselhasse. – Mike e eu brigávamos bastante, não teríamos durado muito tempo se nos separássemos por causa de algumas divergências.

– Não foram divergências, foi a divergência.

Um silêncio quase sombrio se seguia àquelas palavras, e Sarah não conseguiu se impedir de cair em devaneios. Queria se esquecer daquela manhã, e o faria se fosse capaz, no entanto a doutora sabia que aquilo nunca sairia da sua memória, assim como aquele anel deveria continuar em seu dedo pelo resto de sua vida. Eram poucas as noites que ela passava sem pensar naquele homem, tentando se decidir a respeito de seus sentimentos. Ainda o amava? Talvez. A mulher ainda não sabia direito. O pior de tudo era não ter certeza sobre o que o esposo sentia. Apesar da afirmativa dele, a morena não poderia afirmar com convicção que acreditava naquilo. Teria ele feito aquilo se realmente a amasse? Ou James cometera tal infração por amor? Essas perguntas martelavam sua cabeça com força, e esse era o motivo pelo qual Sarah tentava não pensar no homem com quem se casara. Era essa uma das causas de sua insônia e da sua instabilidade mental. Porque, embora dissesse para si mesma que estava tudo acabado, ainda doía pensar nele, porque sentia a sua falta. Por que fez isso, Jim?

Era essa a questão mais frequente, mesmo sendo a única a ter uma resposta. Ela sabia muito bem o motivo, apenas não podia acreditar nele. Não parecia certo... Às vezes se interrogava sobre o quanto conhecia o marido. A resposta imediata seria afirmativa, era claro que sim, Sarah o conhecia desde que era uma garota de quatorze anos, passara metade de sua vida ao lado dele. Entretanto, sentia certo receio ao pensar nisso. Se fosse mesmo verdade, porque deixara aquilo acontecer? Por que não notara os sinais que foram surgindo, como arautos do desastre que tomara conta de seu lar? Não importava muito, não naquele momento. A pergunta certa a fazer, ela pensava, era se ele a conhecia. Raciocinando um pouco, era capaz de arriscar um não reticente. James nunca teria cometido aquele erro se realmente conhecesse sua esposa. O advogado jamais teria sido capaz de acreditar que Sarah poderia ter feito algo tão cruel como ele havia imaginado, caso soubesse quem ela era.

Não devo pensar mais nisso, tenho problemas demais. Feridas demais. Poderia estar certa ao tomar essa decisão, apesar de que grande parte da lacuna sangrenta em seu coração era responsabilidade daquela briga e para curá-la talvez fosse necessário enfrentar o passado de frente e rever aquele dia. Naquele momento a saída era a mais viável, Michonne mesmo dissera que nunca mais o veria novamente. James ficou pra trás e meu futuro não segue a mesma estrada. Nunca seguiu.

Seu futuro no momento parecia ser esperar. Certa de que a espadachim possuía um plano, um bom plano, aguardava pacientemente novas instruções. Em sua mente começava a acreditar que a ideia era aguardar uma possível dispersão dos caminhantes para fora da loja. Seria uma boa estratégia, se não estivessem lidando com criaturas inconstantes em um mundo inconstante. O tempo passava de forma imprecisa e, para Sarah, aquilo pareceu uma eternidade.

– Certo – Michonne disse de repente, caminhando até a pequena e empoeirada janela. Com os braços ela se ergueu até que pudesse visualizar o exterior. Bastaram poucos segundos de observação antes que ela votasse a descer. – Já passou do meio dia. Acho que já podemos ir.

Acho. Estava longe da resposta que Sarah esperava receber, queria algo concreto, queria ter certeza do que iria fazer. Porém, não era culpa de sua companheira, não havia como ela ter convicção do que estava fazendo, e a médica sabia que nenhuma das duas gostava daquela situação. Não parecia seguro, mas tinha de ser feito. Com o pouco que possuíam, deduzir que algumas horas haviam se passado desde a chegada ao estabelecimento era tão fácil até para uma criança, seu corpo dormente e cheio de formigamentos tinha percebido sem precisar olhar para a claridade do lado de fora.

Ao invés de manifestar seus pensamentos contra ou a favor da empreitada, tudo que ela fez foi acenar com a cabeça em aprovação. Sua mão logo correu para a bolsa tiracolo, onde havia guardado a pistola e a faca de cozinha. Estava quase firme na ideia de que usaria a arma branca devido às circunstancias. Como Michonne era aparentemente a líder da missão, Morris resolveu esperar que ela dissesse algo.

– Eu vou à frente. Prefiro que você fique com a sua pistola cuidando da retaguarda. Só atire se for extremamente necessário – para Sarah isso soou como um pedido para não disparar. Naquele ambiente fechado, seria melhor se não chamassem a atenção de outros errantes, já tinham problemas suficientes ali. – Saímos ao meu sinal.

O sinal não veio imediatamente, como a médica esperava. As mulheres ficaram paradas, prendendo suas respirações na tentativa de ouvir algo do outro lado. Além das paredes, um ruído pouco intenso quase não podia ser ouvido. Os gemidos fracos, o leve estalar de ossos, gotas de sangue escorrendo e de vez em quando um pequeno esbarrão, tudo isso indicava a presença de uns poucos mordedores, um número razoavelmente bom para se combater. Michonne balançou a cabeça firmemente, puxou a maçaneta e abriu a porta.

O corredor à sua frente não revelava muita coisa, no entanto, conforme seguia a outra, Sarah era capaz de enxergá-los. Os caminhantes remanescentes, alguns desgarrados que não seguiram seus companheiros mortos, perambulavam entre as prateleiras, emporcalhando uma boa parte da farmácia outrora intocada. O número não poderia ser menor que trinta, a maioria deles não passava de cadáveres decompostos e bastante deteriorados, entretanto alguns pareciam muito ágeis para a sua condição, mortos recentes.

As duas se posicionaram no interior do balcão, usando-o como barreira para impedir a entrada dos inimigos. Michonne começou matando os que se aproximavam, enquanto a doutora apenas observava, mantendo sua pistola na mão direita. À medida que os mortos-vivos avançaram, contudo, ela passou a lidar com eles. Com a faca de cozinha na mão esquerda, Sarah abateu três deles de maneira desajeitada. Quando olhou para o lado, em busca de alguma ideia ou qualquer coisa que as ajudasse a sair daquele lugar, Morris se surpreendeu ao notar que a mulher não estava mais ali. Desesperada, ela se voltou para todas as direções, tentando entender o que se passava. O balcão estava completamente rodeado por eles, sem um caminho livre. Mais à frente, entre duas prateleiras, estava Michonne, aniquilando todos os errantes que se aproximavam com certa dificuldade por conta do espaço que limitava os golpes da espada. Não havia como segui-la, de forma alguma, e isso desesperou Sarah da mesma forma que uma criança se desespera ao perceber que se perdeu de sua mãe no shopping.

Essa sensação aumentou quando viu que a companheira estava sendo rapidamente rodeada por todos os lados. Sem escolha, ela guardou a pistola no bolso e começou a forçar passagem em meio aos errantes, perfurando os crânios daqueles cujas mandíbulas se aproximavam além da distância segura. Ao sair dos domínios do balcão, tentou ao máximo seguir pela direita, onde Michonne estava, mas a barreira de corpos que se formava justamente naquela direção era um enorme empecilho. Contrariada, a mulher se dirigiu à direção contrária, entrando no corredor ao lado daquele em que a outra estava. Este lhe pareceu bem mais vazio comparado ao outro, e Sarah não tardou a correr por ele, empurrando com os ombros aqueles que entravam na sua frente.

Quando se dirigiu ao corredor de Michonne, encontrou-a cercada por quatro mordedores: dois na frente e dois atrás, enquanto sua katana estava presa no crânio de uma quinta abominação já abatida. A médica correu ao seu auxílio, pegando o primeiro caminhante pelas costas. Ela o jogou contra a prateleira e enfiou a fava de cozinha através de um dos olhos antes de soltá-lo no chão. Lateralmente, viu o momento em que a outra mulher era puxada por um dos errantes de trás. O movimento brusco que a jogou no chão fez com que a katana fosse arremessada para longe do seu alcance, a alguns metros de sua dona. Com muita agilidade, Michonne chutou o cadáver mais próximo para trás. Quando o seguinte se atirou sobre ela, ainda no chão, a mulher rodou para a esquerda, deixando-o se estatelar no chão com um baque surdo. Sarah não teve tempo de se aproximar, pois sua companheira já estava retirando a chave de fenda do bolso para matar o mordedor. Enquanto Michonne se sentava no chão para abater o quarto caminhante, aquele que ela havia chutado se aproximava. Sarah não pensou, simplesmente pulou sobre o errante, jogando-o no chão antes de perfurar sua cabeça com a faca. Quando se virou para o lado, ainda no chão, notou que o outro já estava morto.

Michonne ofereceu a mão para ajudá-la a se erguer. As duas estavam ofegantes e ensanguentadas, ainda com os corações batendo aceleradamente. Ao seu redor, apenas cadáveres e algumas poças de sangue negro, além do forte odor de podridão. Sarah não pôde deixar de sorrir por dentro ao constatar que não havia se enjoado dessa vez. Elas não tiveram muito tempo para descansar, logo Michonne se recompôs e começou a caminhar em direção à saída.

– Vamos embora – assim, elas seguiram seu caminho, ignorando o que acabar de acontecer. Mais uma daquelas ocasiões em que um sobrevivente jogava os dados e esperava para saber se viveria ou morreria.

Quando finalmente acabou, seus joelhos estavam ásperos e irritados, cansados daquela posição. Porém, ela já estava acostumada a ficar daquele jeito. Anos se passaram e ela podia se lembrar com total exatidão da primeira vez em que ficara de joelhos para rezar com sua mãe, as mãos unidas e os lábios se mexendo vagarosamente enquanto as palavras saíam quase como murmúrios. Aos trinta e seis, ficar alguns minutos naquela posição não era tão difícil quanto fora aos três, estava na flor da idade, mas nem o mais vigoroso dos corpos aguentaria sua vigília de quase três horas. Tudo isso para agradecer e fazer alguns pedidos.

O Sol havia começado a se por quando Johanna se ajoelhara diante do altar e começara a fazer sua prece. Primeiramente apenas fizera suas orações, dedicando um bom tempo a cada prece conhecida, depois começara seus agradecimentos. Eram muitos deles, como poderia não agradecer com Deus assistindo todos nós lá de cima? Agradecera por sua generosidade, por ter permitido que Sarah e Michonne voltassem a salvo para igreja e com a missão cumprida, pela possibilidade da pequena Judith ser tratada, pela erradicação da doença dos outros moradores que apresentaram sintomas da bactéria, pela comida em abundância que possuíam, por um teto acima de suas cabeças, que os protegia do frio e dos caminhantes, pelas pessoas que estavam ao seu redor. Johanna possuía mil e um motivos para permanecer o resto do dia agradecendo ao Senhor. Retribuir tudo parecia ser algo difícil mesmo quando havia tanto mais a pedir, e por isso Johanna Hill serviria a Deus até o dia de sua morte.

Seus pedidos eram os mesmos de sempre, apenas um. Tudo que ela mais desejava no mundo era que Will e Scott estivessem a salvo, onde quer que estejam nesse mundo devastado. Não havia um dia passado sem que ela pensasse em seu pequeno sobrinho e em seu irmão mais novo. Não tivera notícias deles desde antes dos mortos ganharem vida, fazendo com que toda a humanidade pagasse por seus pecados. Não que algo estranho tivesse acontecido a eles, era apenas William, que só mantinha contato em datas comemorativas, uma mania no mínimo estranha para a freira. Não posso culpá-lo por isso, estava assim desde Mary...

Seu irmão morara em Columbus, perto da fronteira com o Alabama, enquanto o convento em que a freira vivera ficava mais ao norte. Sua vida tinha sido muito corrida, e Johanna havia se conformado com o fato de ter que abnegar da família. Lembrava-se de que o irmão planejara se tornar padre, e teria se tornado, até conhecer uma mulher.

Tudo mudara depois que William e Mary se conheceram aquele dia, na mesma igreja em que viriam a se casar tempos depois. Ao conhecer aquela jovem encantadora, Johanna não tivera dúvidas de que ela havia sido mandada por Deus para fazê-lo feliz e recompensá-lo por ter sido tão bom. Mary lhe parecera uma mulher decente, amável e extremamente religiosa, assim como a família Hill. O melhor de tudo para Johanna era saber que eles se amaram de verdade, desconhecia casal mais apaixonado que o irmão e a cunhada. Com o nascimento do pequeno Scott, a felicidade deles pareceu se multiplicar ainda mais, foram uma família perfeita, e as coisas seguiram dessa forma por mais quatro anos.

Um dia Mary Hill simplesmente havia sumido, deixando para trás marido e filho, sem dar satisfações ou se despedir: ela apenas fora embora. Ninguém jamais soube os motivos daquele ato, e a mulher nunca mais apareceu na cidade. Johanna se lembrava da época perfeitamente bem, pois havia passado um mês na casa do irmão até que ele se adaptasse a cuidar de Scott sozinho. A ruiva nunca o vira tão infeliz, tentando explicar ao filho o que havia acontecido sem ao menos entender o porquê. A verdade era que, depois daquilo, o Sol nunca mais nascera para William.

Johanna nunca fora capaz de perdoar Mary por isso. Se tivesse sido com outra pessoa, certamente a freira teria estimulado o perdão, ela mesma teria perdoado, pois era o certo a se fazer, mas não naquele caso. Fora seu irmão quem sofrera com aquilo, não outra pessoa, e ela era incapaz de encontrar em seu coração o perdão para a mulher que tinha ido embora, levando junto a alegria de William. Justo Will, que era um homem tão bom... Parecia até maldade. Depois daquilo, Johanna concluíra que Mary não poderia ter sido a pessoa que ela tinha conhecido, aquilo havia sido fingimento. Afinal, uma pessoa tão boa nunca teria sido capaz de fazer aquilo. Que tipo de mãe abandonaria seu filho? O que mais entristecia Hill era que, depois de tudo, seu irmão continuara a amando. Ele acreditaria, até o fim de seus dias, que Mary tivera um motivo muito forte para abandoná-los. Scott também cria nisso, apesar de tudo que a tia tentara lhe dizer.

Perdida demais em suas reflexões ela não percebeu a presença de outra pessoa no recinto. Ainda pensava em seu irmão e em Scott, não tinha certeza de onde estavam ou poderiam estar. É melhor assim, acho... Antes fosse ter incerteza do que a certeza da morte de um deles, ou dos dois. Era mais fácil viver assim para ela, apenas aceitando que Will e Scott viviam de alguma forma, em algum outro lugar sem ela, mas seguros. Deus não seria tão cruel com uma criança amável e um homem bondoso, eles haviam sofrido demais.

– Michonne! Há quanto tempo está aqui? – Johanna perguntou quando notou a mulher. Rapidamente ela se levantou e esfregou as cotas das mãos nos joelhos que estavam arranhados por baixo da meia-calça em ruínas.

– Estamos todos esperando por você para servir o jantar – ela disse de braços cruzados. A afirmação a deixou chateada, como se a negra tivesse acabado de dizer “você está nos atrasando!”. Depois da missão bem-sucedida realizada pela espadachim e pela médica, Rick e companhia tinham passado a tratar as duas forasteiras de forma mais cordial. Era como se os remédios tivessem trazido para todos um sentimento de cumplicidade, depois daquilo todos souberam que estavam do mesmo lado. E era por isso que Hill tentava ao máximo não fazer algo de errado, pois não queria que as coisas mudassem na igreja.

Até mesmo Sarah estava mudada. Esses dias pareciam ter feito bem para médica, não só o descanso, mas a missão também havia colaborado. Voltara da farmácia com novos ares, apesar do receio de Johanna a respeito dos impactos negativos que aquilo poderia ter causado. No dia seguinte, quando ela perguntara sobre Frederick, Sarah havia dito tristemente que ele teria que esperar um pouco. Por mais que a ruiva estivesse disposta em segui-la cegamente para realizar a nobre tarefa de reunir os irmãos, ela não podia deixar de notar que aquela jornada era tão perigosa quanto imprudente.

– Eu sinto muito! Meu Deus, eu deixei todos esperando, não foi? Sou uma pessoa horrível, eu juro que nunca foi minha intenção... Pobre Judy! Vocês não deram nada para saciar a pobrezinha enquanto isso? E Carl, ele ainda não melhorou completamente... Vocês estão todos doentes, deveriam ter uma alimentação decente e... Poderiam ter começado sem mim, eu não me...

– O que você fez não tem perdão, Johanna.

Michonne sempre fora uma figura ameaçadora para a freira. Às vezes não conseguia sequer encará-la nos olhos sem sentir certo temor. Não por se tratar de uma pessoa agressiva ou algo do tipo, a freira apenas temia a força que a mulher certamente tinha em seu interior, e a forma como ela olhava para as pessoas. Naquele momento, Johanna estava pronta para desviar o olhar ou enfiar a cabeça em algum buraco, antes que fosse tomada pela vergonha.

– Dizer que sinto muito não vai adiantar, não é? – seus olhos se prenderam no chão enquanto ela aguardava uma resposta. O que ouviu a seguir não foi nada além de uma longa e sonora gargalhada.

– Você é simplesmente a pessoa mais engraçada que eu já conheci! Vamos jantar.

Tudo que Johanna fez foi segui-la até a cozinha. O diálogo a deixara confusa. Sarah dizia que ela não entendia brincadeiras e por causa disso era um alvo muito fácil. Também não entendia muito bem o que ela queria dizer com isso. Nunca fora muito boa para compreender sentimentos escondidos na expressão ou na fala, a menos que fossem tão gritantes quanto uma lágrima que denunciava tristeza. Não sabia identificar se a pessoa estava falando sério ou apenas brincando, e isso poderia ser desesperador em algumas situações. Michonne, então, era uma pessoa indecifrável, ela e aquele caipira carrancudo.

Todos estavam reunidos na cozinha, que era iluminada por uma pequena vela aromática e pelo brilho da Lua que atravessava as pequenas frestas. Na mesa de quatro lados estavam Carol, com a pequena Judith no colo, Carl, Gabriel e Rick, todos com um ar impaciente, o que fez a ruiva se sentir mal. Daryl estava sentando no balcão da pia com um prato nas mãos, mais irritado que o normal. A posição e o local escolhidos fizeram com que uma careta involuntária surgisse no rosto dela. E, por fim, no fundo da cozinha, escorada na porta dos fundos, estava Sarah, sozinha e de braços cruzados.

– Vocês estavam esperando por mim? – ela disse meio sem jeito. – Sabem que não precisam fazer isso... É muito bonito da parte de vocês, mas não é necessário e... Que cheiro maravilhoso é esse?

– Carne de cervo – Daryl respondeu dando os ombros. Ele abriu a panela e, sem cerimônia, começou a se servir da carne que havia caçado naquela manhã.

– Antes de começarmos – Rick olhou de relance para seu amigo caçador –, eu queria dizer algo. Ainda não tive a oportunidade de demonstrar minha gratidão a Sarah pelo que fez. Só queria que você soubesse que somos gratos por estar nos ajudando com a doença e por ter se arriscado com Michonne indo até a cidade.

De fato, as relações deles haviam evoluído muito. Sarah e Johanna tinham tudo para desconfiar do outro grupo, assim como eles poderiam facilmente suspeitar delas. Apesar de tudo, o grupo de Grimes não era tão ruim quanto parecia. Eles poderiam tê-las expulsado a qualquer momento, mas optaram por abrigá-las e dividir sua comida com elas. As duas mulheres também mostraram confiabilidade, a prova disso era que Sarah estava curando Judith da doença. Nos últimos cinco dias, o desconforto inicial passara, e os dois grupos começaram a interagir, como se tivessem se conhecido havia mais tempo. Esses momentos eram os que faziam Johanna se sentir otimista a respeito da humanidade, pensar que poderiam se reerguer das cinzas. Isso se ainda houver uma humanidade...

Na realidade, a freira não pensava muito nisso. Preferia seguir sua vida sem ocupar sua mente com esses assuntos, refletir sobre isso não traria certeza alguma. A obra já estava feita e não havia como interferir, por isso Hill apenas esperava que Deus estivesse olhando por ela e pelas pessoas a seu redor. Com isso em mente, ela não prestou atenção no que acontecia à sua volta. Não ouviu quando os demais integrantes do grupo também se manifestaram, cada um agradecendo à sua maneira.

– Não foi nada – a médica respondeu com um pequeno sorriso tímido no rosto. Talvez também estivesse feliz com a integração no grupo.

– Claro que foi! Você precisou ser muito corajosa para ter saído nessa cidade estranha para obter os remédios – Johanna interferiu.

– Michonne me ajudou na missão.

– Sarah, mas você...

– Deixa quieto, ruivinha, a doutora quer ser modesta – Daryl a interrompeu dando um tapinha em seu ombro. – Podemos comer?

– Antes disso, eu queria pedir desculpas pela primeira noite, nós não começamos muito bem. Eu falei aquilo sem pensar, estava muito nervosa. Te devo um pedido de desculpas, Rick – o homem apenas assentiu afirmativamente, e logo em seguida se instalou um silêncio no local.

– Acho que está na hora das perguntas – Michonne disse olhando fixamente para Rick e Carol ao mesmo tempo.

– Perguntas?

– Sim, apenas três – Carol respondeu. – Quantos caminhantes vocês mataram?

– O necessário para sobreviver – Sarah se adiantou sem pestanejar. Em seguida, todas as atenções se voltaram para a freira, que levou algum tempo até perceber que era a sua vez.

Johanna passou os olhos pelos rostos de cada um. Primeiro focou em Gabriel, que lhe pareceu incrivelmente interessado no assunto, tão interessado que chegava a incomodar. Ao contrário do padre, Daryl se importava mais com sua comida, e fazia isso como se tivesse ficado dias sem se alimentar. Aparentemente, havia escutado aquelas perguntas sendo respondidas dezenas de vezes, por dezenas de pessoas diferentes; aquilo não era nenhuma novidade para ele. Rick e Carl tinham semblantes semelhantes, ambos aguardando por uma resposta para que pudessem avaliá-la. Carol não era diferente, mas seu olhar intimidou muito Hill. Se antes ela havia aparentado ser uma inofensiva senhora, naquele momento era uma mulher fria e calculista. Michonne não a pressionava com os olhos, apenas esperava que alguma palavra fosse pronunciada.

Nunca entendera muito bem porque a mulher a tratava daquela forma. Não que ela fosse rude com Sarah, apenas não a tratava de forma tão aberta. Em algumas ocasiões a espadachim havia ido até Johanna para conversar com ela sobre assuntos variados, além de ter caçoado dela algumas vezes. A freira tentava encontrar um motivo para isso, mas aquilo se embaralhava em sua cabeça. Como não tinha coragem de perguntar, acabou se conformando com o fato de que nunca saberia. De qualquer forma, não sumia a percepção que tivera sobre o fato das conversas de Michonne com Carl e com ela serem mais descontraídas que aparentavam ser com os outros.

Eles estão olhando para mim... Querem que eu responda. A ruiva percebeu que estava fugindo do assunto, apenas isso. Não sabia o motivo daquilo, mas algo a impedia de dizer as palavras tão espontaneamente como Sarah dissera. Estava rodeada de pessoas que certamente matavam os errantes sem remorso, pessoas que achavam que aquilo era a coisa certa. Porém, para ela, era diferente. Envergonhava-se e culpava-se pelas vidas que tirara para salvar a sua, por isso evitava o assunto.

– Eu não tive opção, não teria feito aquilo se não fosse necessário. Padre Ethan viu aquele homem do lado de fora, parecia que tinha algo de errado com ele. Não podíamos deixá-lo do lado de fora, ele parecia bêbado ou doente, não sei. Precisava muito de ajuda. Abrimos as portas para ele, mas aquele homem... Ele mordeu Ethan, ele o matou! Nós... Nós o trancamos em um quarto e eu tentei cuidar do padre, mas, no dia seguinte, ele estava morto... Ainda não sei se o demônio possuiu a ele ou a mim, mas, quando ele se levantou, eu o matei. Em seguida, eu fui ao outro quarto e matei a outra criatura... – Johanna falou tudo quase sem pausas, com o transtorno aparente na voz. Seu coração sempre disparava quando pensava naquilo, e, quando disse em voz alta, foi como se estivesse vivendo tudo de novo. Mesmo depois de tanto tempo, a freira ainda sentia o sangue em suas mãos e se odiava por isso.

– Dois – Carol resumiu. Para a senhora tudo que parecia importar era quantidade, de que importa um número? O que importa sãos as pessoas e o futuro que eu tirei delas, mesmo que fosse incerto e terrível. Deus não havia feito Johanna para matar, havia a feito para servir. Tudo o que a ruiva recebeu para se sentir bem foi um sorriso de Sarah. – Quantas pessoas vocês mataram? – como se não fosse cruel o suficiente ter roubado a vida daqueles desafortunados, eles ainda esperavam que tivesse matado seres humanos comuns. Que tipo de pessoa vil eles pensam que sou?

– Nenhuma – novamente, a médica foi a primeira a responder.

– Eu nunca tiraria a vida de um ser humano – dessa vez, foi mais fácil dizer.

– Por quê?

– Não estive com muitas pessoas desde que isso começou. Mas isso não quer dizer que eu não tenha visto o que é feito do lado de fora. Às vezes, as únicas opções são matar ou morrer – em certas ocasiões Johanna esquecia como sua companheira poderia ser fria. Isso a assustava. A freira só esperava nunca ter que escolher entre aquelas opções.

– Toda vida é sagrada e não temos o direito de tirar.

Essas foram as três perguntas, e por alguns instantes o silêncio voltou a reinar. Johanna não foi capaz de interpretar os olhares que aquelas pessoas trocaram. Talvez suas respostas tivessem desagradado, mas não poderia ter mentido. Eles poderiam ter sido pessoas boas um dia, mudadas pelo apocalipse, mas ela nunca se renderia ao pecado. Depois de alguns segundos, que pareceram minutos, Michonne se manifestou, como se os olhares que o grupo trocou tivessem sido suficientes para decidir algo.

– Sejam bem-vindas ao grupo.


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Notas finais do capítulo

Se você chegou aqui, parabéns! Esse capítulo ficou monstruosamente grande, aprofundamos bastante na mente das personagens e deu nisso. Espero que não tenha ficado cansativo, mesmo com tantos parágrafos.
O próximo capítulo será o último do arco e promete bastante. A horda vai chegar! Quero saber o que acharam desse capítulo com mais ação e também quero recados fofos para a Aggie! É isso, não se esqueçam de passar no Tumblr! Tem muita coisa nova lá! Estamos postando mais curiosidades, outros especiais de datas comemorativas e (atenção!) um spoiler (ou quase isso). Até o próximo!