End of the World escrita por Agatha, Amélia


Capítulo 11
Capítulo 11


Notas iniciais do capítulo

Já faz mais de um mês, certo? Queremos pedir desculpas por isso, mas realmente não tivemos tempo. Vamos encurtar as explicações para não ficar cansativo, já que as desculpas são as mesmas de sempre: vida corrida e escola.
Nós empolgamos um pouco com esse capítulo, e por isso temos cinco mil palavras! Talvez dê para compensar o atraso... Esperamos que gostem, já que dedicamos ele a todos que estavam com saudades da Johanna e da Sarah!
Bem, já chegamos a mais de três mil visualizações só em onze capítulos. Temos isso tudo, além dos comentários maravilhosos, favoritos e acompanhamentos graças a vocês! Muito obrigada!!
É isso, boa leitura!!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/572203/chapter/11

O barulho dos saltos batendo contra o piso gelado era o único som que poderia ser escutado no ambiente. Havia poucos minutos, porém, as vozes tomaram conta do local. O tamanho reduzido da cozinha era proporcional à área pouco espaçosa da Igreja St. Sarah e, na opinião de Johanna, esse fator tornava o templo cristão mais modesto e aconchegante. A freira estava realmente feliz por ajudar, pois, para ela, ser prestativa trazia uma sensação única de bem-estar. Desde cedo a mulher estivera tentando encontrar algo para fazer, alguém para ajudar. Começara com Sarah, acompanhando-a até o padre e auxiliando na conversa. Ela desejava ter ajudado mais, principalmente depois que vira as feições de médica ao final do diálogo. Sarah não lhe parecera muito bem, isso era nítido em seus olhos claros, por mais que tivesse feito um esforço imenso para que suas palavras parecessem amenas. Havia algo na aparência dela que a ruiva só podia definir como perturbação.

Deixara sua amiga sozinha, entregue a seus pensamentos e preocupações com o irmão, parecendo indiferente ao resto do mundo, e seguira Gabriel até a cozinha, onde estivera desde então. Havia mais comida do que Johanna esperara, em sua maioria apenas alimentos não perecíveis, que não deixavam de ser valiosos. Seus olhos em tons de azul-gelo chegaram a brilhar quando Johanna observara a quantidade de comida disponível na dispensa: pacotes de macarrão, arroz, farinha, alimentos enlatados e algumas garrafas de água ainda cheias. Stokes havia lhe dito que tudo aquilo era proveniente de doações do governo e de boas pessoas aliadas de Deus que estiveram equipando a igreja para que ela se tornasse um centro de refugiados no início da pandemia. Para Hill, aquilo fazia todo o sentido. E qual lugar no mundo seria melhor para proteger as pessoas dos mortos do que a casa de Deus?

– O que você colocou aí dentro? – o padre indagou atrás dela, sentado em uma cadeira de madeira e retomando o diálogo que morrera minutos antes. – Esse cheiro todo não pode vir do macarrão instantâneo.

– Eu coloquei alguns temperos... – ela respondeu sem desviar o olhar da gaveta, formando um pequeno sorriso no canto dos lábios. A mulher conhecia o afro-americano suficientemente para saber que aquela refeição nunca fizera parte da sua lista de preferências, pelo contrário, só comia alimentos industrializados e enlatados por falta de opções. A ruiva não havia feito muita coisa desde que colocara o macarrão na panela, já que não possuía muitos temperos disponíveis e não poderia fazer combinações novas de improviso, por isso apenas tinha pegado algumas ervas encontradas do lado de fora da igreja. – Na verdade, não é nada de mais, apenas manjericão. O cheiro é maravilhoso, e já escutei diversas pessoas dizendo que é saudável. Foi muita sorte encontrá-los crescendo livremente pelos arredores!

– Não pode ser só isso...

– Minha mãe costumava dizer que eu tenho vocação para a cozinha, mas eu duvido muito. Ela sempre foi melhor que eu nessas coisas... Deveria ter provado o peru que minha mãe fez no Dia de Ação de Graças!

– Assim como você tem vocação para servir a Deus – aquele comentário a tocou de alguma forma. Ela podia jurar que tinha escutado seus pais proferindo tais palavras em algum momento de sua vida, e pareciam ter se passado séculos desde então.

Quando finalmente saiu de seus pensamentos, o que levou alguns segundos, a freira se tocou de que estava praticamente estagnada no meio da cozinha. Pegou a colher para macarrão que procurava e terminou seu caminho até o fogão a gás, dando mais uma olhada na panela. O cheiro do manjericão fazia toda a diferença e ela estava realmente grata com a possibilidade de almoçar uma refeição daquelas, Deus sempre lhe fora gentil e ela realmente esperava que Ele pudesse estar zelando por outras pessoas também. Nos últimos dias tinha orado mais do que o de costume, talvez fosse a centelha de medo que a atormentava por estar longe da sua amada Igreja St. George e a apreensão que sentia de alguém que nem conhecia. Também rezava todos os dias para que o irmão de Sarah estivesse bem.

– Eu ficaria bastante feliz se tivéssemos carne também...

– O que disse?

– Nada, só estou pensando alto. Acontece de vez em quando, Madre Superiora dizia que eu deveria me controlar se não acabaria resmungando o tempo inteiro, mas eu simplesmente não consigo – isso era o que acontecia na maioria das vezes, principalmente quando se sentia empolgada demais ou irritada em demasia, eram sempre os dois extremos.

– Eles sempre têm carne – Gabriel comentou em um tom mais baixo e por vários instantes Johanna se sentiu perdida. Quem eram eles? Sua expressão facial pareceu perguntar por ela. – O outro grupo. Um deles é caçador, ele sempre sai para a mata e volta com algum animal pequeno ou, se tiver sorte, com um de médio porte.

– Caçador? Qual deles? – ela perguntou interessada, sem notar que a pergunta havia escapado de seus lábios.

– O caipira.

– Talvez... Talvez eu possa pedir a eles. Eles não nos negariam isso, e se negassem... Bem, talvez pudéssemos trocar por algo que temos aqui! Isso! Faremos uma troca! Assim ninguém sairá perdendo – não que ser solidário fosse algo que trouxesse prejuízo, ela pensava, mas se aquele grupo de pessoas carrancudas e mal-humoradas não entendesse da maneira que a ruiva compreendia, uma troca traria proveito a ambos.

– Eu não teria tanta certeza assim. Você mesma me disse ontem que eles não lhe pareciam muito... amistosos. Não foi? – com um aceno de cabeça ela respondeu positivamente. Não foi a primeira vez que Hill contradizia ou anulava tais palavras negativas, no dia anterior ela fizera a mesma coisa ao defendê-los em sua conversa com Sarah. Mesmo assim, não tinha perdido a fé, tal como havia dito à médica, Johanna não conseguia acreditar que aquele grupo de seis pessoas poderia ser cruel a esse ponto, talvez fossem apenas desconfiados. Assim espero... – Johanna, esse estoque de comida que eu tinha não pertence mais a mim. Eles tomaram posse da igreja, e de tudo o que havia nela.

– E você simplesmente aceitou? – questionou chocada. Se tivesse escutado essa afirmação alguns minutos antes, de certo teria associado isso tudo à falta de pulso firme e à covardia do padre, porém naquele momento Johanna só conseguia pensar no outro grupo que dividia a igreja com ela, Gabriel e Sarah.

– O que eu poderia fazer? Eles se apossaram da minha igreja.

– Eles tomaram sua igreja?

– Não foi exatamente assim... Eles... Eu os trouxe até aqui, abri minha igreja para um grupo de quinze pessoas! Queria ajudá-las e, quando dei por mim, eles já controlavam esse lugar, eu não tenho mais voz.

– Aqui é a casa de Deus! Uma casa onde tudo pertencem a todos! Eles não podem simplesmente fazer o que bem entendem! Eu vou falar com eles, vou conversar com aquele grupo e dizer algumas verdades... – naquele instante, a freira se sentia incrivelmente encorajada a atravessar a cozinha, seguir para os fundos da St. Sarah e conversar com eles. Nem mesmo o caipira, a mulher negra de dreads ou o homem que discutira com Sarah na noite anterior lhe deixavam apreensiva.

Sua fala foi interrompida pela entrada de uma mulher mais velha na sala. Johanna sentiu um calafrio percorrer seu corpo naquele instante, ela simplesmente não conseguia dizer mais nada, nem produzir um único som, apenas ficar com a boca ligeiramente aberta e com um olhar apreensivo. A senhora de cabelos grisalhos e um tanto repicados, com mechas de tamanhos diferentes e essencialmente curtas, por outro lado, estava muito mais confortável do que os outros dois presentes na cozinha. Seu sorriso levava certa cortesia e um tanto de ingenuidade, o que provavelmente espantaria os integrantes de seu grupo que sempre viram expressões decididas e determinadas estampadas em seu rosto.

– Bom dia! Como foi sua noite? Espero que tenha sido agradável, assim como a minha, por mais que aquele sofá do escritório não seja assim tão confortável... – Johanna desandou a falar com certa rapidez, simplesmente sem saber o porquê e sem pensar direito no que dizia. O que faria se aquela mulher tivesse escutado a conversa? Não que a tal senhora parecesse representar algum risco, contudo por mais indefesa que ela aparentasse ser, Johanna tinha a certeza de que ela poderia dar as costas e contar tudo o que ouvira para seus companheiros rudes. – Não podemos reclamar muito, não é? Deus é muito bom conosco! Assim como vocês devem ser, assim espero... Espero que não se importem, mas pegamos um pouco da comida de vocês. Se quiserem podem pegar uma parte, afinal, tudo que está aqui deve ser partilhado com os filhos do Senhor, por mais que essa única porção de macarrão instantâneo não sirva muitas pessoas... Talvez três ou...

– Irmã – Gabriel chamou, interrompendo-a após longos segundos em que sua voz nervosa tomara conta do ambiente.

– Cristo! – ela disse tampando sua boca com as duas mãos, em um gesto totalmente involuntário. Estava realmente nervosa. – Me perdoe, eu sou meio inconveniente... Sempre sou! Falo demais o tempo inteiro, não há quem me aguente – principalmente quando estou nervosa... Por favor, por favor, que ela não tenha me escutado falando mal de seu grupo de degenerados. – Nem me apresentei, que grosseria! Eu sou Irmã Johanna, e você?

– Sou Carol Peletier. Mas é só Carol.

– É um prazer conhecê-la. Estou bastante ansiosa para conhecer os outros também... Eu ouvi, ou melhor, vi que vocês têm um bebê.

– Sim – Carol respondeu, tentando esconder o quão desconfortável estava, e lançou um breve olhar na direção do padre. A ruiva estava prestes a dizer o quanto gostava de bebês e o quanto eles eram adoráveis, porém conseguiu segurar a língua, sem dúvida havia tocado em um assunto perigoso. Os olhos dela dizem isso. Cristo! Como estou nervosa! É só uma mulher... – O nome dela é Judith. É uma ótima garota.

– E como podemos te ajudar, Carol? – Gabriel interveio parecendo meio incomodado com o rumo que a conversa estava levando e com o fitar levemente sugestivo que Peletier lhe mandara. Ele não tinha muito fé no grupo de Carol e sua descrença de alguma forma lhe dava coragem.

– Bem, eu fui até seu escritório hoje de manhã, já que alguns pertences meus ainda se encontravam lá... Eu não pude deixar de notar que vocês possuíam um kit de primeiros socorros.

– Não se sinta constrangida por ser observadora, provavelmente a bolsa ficou aberta em cima da mesa e você viu o conteúdo. Sarah é médica e eu duvido que ela saia sem um kit desses, nunca se sabe o que pode acontecer lá fora, não é mesmo? Se bem que ela anda muito distraída ultimamente...

– É sempre bom estar preparado – a mulher de cabelos acinzentados confirmou, ela se demonstrava um pouco mais segura em sua fala, para Johanna suas tentativas de deixá-la mais à vontade pareciam surtir efeito. – O que não é o caso do meu grupo. Temos poucos remédios disponíveis. Isso é um problema para nós, já que Carl, o irmão de Judith, está febril.

– Pobre garoto! Podemos fazer algo por ele? – o padre não se prontificou, todavia a freira o incluiu em suas palavras, sabia que ele ajudaria como pudesse.

– Acho que alguns remédios para passar a febre podem resolver, mas como você disse que sua amiga é médica, eu acredito que ela possa dar uma olhada nele.

– Claro! Eu vou falar com ela.

A cada minuto que se passava da conversação entre a ruiva e Carol, Johanna confiava mais na senhora, suas suspeitas iniciais em relação a ela haviam sumido rapidamente. Não era como na noite anterior, em que o homem de olhos azuis e cabelos cacheados, aparentemente o líder, fora evasivo e um tanto descortês, quase mandando ela e Sarah para fora da igreja. Carol tinha sido bem sincera e lhe contara um pouco mais sobre o grupo, além do fato infeliz sobre a enfermidade do jovem Carl.

Aquilo tudo certamente a deixaria maluca. Tudo o que fazia, cada passo dado, cada decisão tomada, cada ação levaria ela à loucura. Não o que estava fazendo naquele exato momento, observar as escrituras nas paredes do lado de fora do celeiro não perturbariam mais sua mente já fatigada, essa tarefa não passava de um ledo engano cometido por Sarah quando pensara que conseguiria se distrair olhando para aqueles riscos na madeira, que formavam frases estranhas ou simples palavras soltas, porém isso não chegara a acontecer. A tarefa não lhe fazia esquecer as ideias que perturbavam sua cabeça, apenas contribuíam para agravar seu estado de cansaço mental.

Você vai queimar por isso.

A morena havia lido aquilo minutos antes, quando passara pela igreja, porém ela ainda podia ouvir seu sussurro fraco quando repetira aquilo para si mesma. Eram palavras fortes, entretanto não significavam nada para Sarah. Quem queimaria no Inferno? Pelo quê? Por que alguém teria escrito aquilo? Não fazia sentido algum. A mulher nem imaginava que pudesse descobrir as respostas para tais interrogações. Se alguém perdesse o seu tempo para praguejar contra outro ser humano, gravando tal profecia macabra nas paredes de uma simples igreja, essa pessoa só poderia estar tomada pelo ódio. A médica bem sabia que tomar atitudes extremas e insanas era muito fácil quando o rancor corria pelas veias do corpo envenenando.

Seus dedos deslizaram vagarosamente pela madeira, passando pelos riscos que formavam várias letras, umas mais profundas que as outras. Aquilo tudo era muito suspeito, porém sua mente não se importava com aquilo, ela estava em outro lugar. Um lugar bem distante, tão distante que ela não sabia onde ficava ou como era, apenas sabia que ele estava lá, correndo ferozmente, fugindo de alguma coisa, precisando de ajuda, de sua ajuda. Fred precisava dela e ela dele. Queria estar com o irmão mais do que tudo no mundo, mudaria planos, desistiria de sonhos, arriscaria vidas, inclusive e principalmente a dela mesma para ver o jovem West mais uma vez e garantir sua segurança. Isso tudo fazia com que Sarah se questionasse se estaria se tornando obsessiva ou se aquilo era algo natural. De qualquer forma, aquilo não era saudável para ela.

Desde o alvorecer, Frederick povoara seus pensamentos. No momento em que havia acordado, Sarah fora ao encontro de Gabriel, arrastando Johanna junto. A seu ver, seria muito mais fácil conversar com o padre se a ruiva estivesse por perto, afinal, os dois eram conhecidos. À medida que Stokes respondera às perguntas, sua animação e expectativa pareciam ter se esvaído, dando lugar a sentimentos como raiva e frustração. Gabriel afirmara que ninguém tinha passado pela igreja desde que Deus abrira as portas do Inferno, em suas palavras, que o tempo todo ele estivera sozinho com as portas muito bem trancadas e que teria escutado qualquer movimentação exterior. Quando ele finalmente tinha acabado seu relato, a fúria havia praticamente dominado a morena, que deixara o padre para trás antes que dissesse algo um tanto rude ou simplesmente o agredisse.

Havia algo naquela história que não se encaixava. Aquilo não condizia com todas as palavras escritas no celeiro e, principalmente, com a condenação talhada na parede da igreja. Aquilo não poderia ter sido feito na era pré-apocalíptica. O que eu estou esquecendo? Não faz sentido.

Não era culpa dele, tudo se resumia nela e em Fred, nada mais. A médica tinha que encontrar uma maneira de achá-lo, tinha de encontrá-lo. Estava tão decidida que faltava muito pouco para que recolhesse seus pertences no escritório do padre e partisse em busca de seu irmão desaparecido, sem nenhuma pista de seu paradeiro ou do caminho que deveria seguir. Sequer havia pensado em Johanna, se quisesse ir que fosse junto, Morris nunca pediria para que a freira a acompanhasse em sua jornada incerta, não parecia justo arriscar a vida de uma pessoa como ela.

Sentia uma espécie de aversão por cada uma daquelas pessoas estranhas enfurnadas naquela igreja e de seus olhares desconfiados, de Gabriel Stokes e de sua história tão perfeita e correta que não convencia, de Johanna e de seu jeito de sempre enxergar o lado positivo do mundo, até mesmo quando não havia um, de Fred e sua ideia maluca de sair sem deixar pistas e, o principal, dela mesma. No final, Sarah aceitava que a culpa era toda dela e de sua incompetência, somada à sua esperança sem limites que não a diferia muito da freira. O resto do mundo não tinha nada a ver com aquilo.

Poucas vezes sentira tal ódio, talvez apenas uma vez, na verdade. Naquele fatídico dia, naquela trágica discussão. Lembrar daquilo fazia com que emoções até então escondidas bem no fundo do seu âmago regressassem. Nunca sentira algo igual, uma mixórdia de raiva, mágoa, desespero e confusão. Foram tantas emoções acumuladas que ela e James trocaram diversas ofensas, palavras e ações das quais a morena não se orgulhava e faziam com que ela preferisse, sinceramente, esquecer aquilo tudo. Entretanto, no calor do momento, tudo aquilo parecera mais que merecido. Naquele átimo, meses antes, a médica não fora capaz de reconhecer seu marido, não era mais aquele rapaz que esbanjava jovialidade e determinação quando a pedira em namoro. Havia se tornado um homem distante que guardava tudo para si e não parecia disposto em dividir uma relação com ela. Era como se ele tivesse mudado, acumulado preocupações que o angustiavam ou apenas havia sido um efeito do apocalipse, que o tornara frio.

Sarah sacudiu a cabeça ao se lembrar daquilo, e teve que respirar fundo várias vezes antes de prosseguir sua caminhada. Avançando mais alguns metros, a mulher leu outra inscrição na madeira do celeiro: Assassino. A diferença era que esta, mais curta, estava escrita com sangue, um sangue que extrapolava os limites da escrita de tão volumoso que era e, pela coloração escura, deveria ser antigo. Pelas marcas sanguíneas deixadas mais abaixo, no encontro da madeira com a terra, ela deduziu que, provavelmente, o autor daquilo traçara as letras em seus últimos momentos de vida, e com seu próprio sangue. Aquilo fez a médica estremecer, imaginando o que levaria um moribundo a grafar aquilo. A palavra só deixava uma coisa clara: a pessoa em questão fora morta por alguém, certamente um vivo, e como ato final descontara toda a sua raiva na madeira.

– Sarah?

Se a morena tivesse prosseguido sua leitura, talvez um ou dois passos, teria feito outra descoberta. Havia uma mensagem naquela parede que realmente a deixaria interessada.

Sarah, eu estive aqui. Você já sabe o próximo passo. FW.

– Sarah, você está aí?

– O que foi? – a médica abandonou seus pensamentos e seguiu a voz de Johanna, respondendo de maneira menos animada que ela. No entanto, a freira sempre estava animada.

– Eu estava te procurando! Achei que você decidiu não me escutar e ir embora de uma vez! Fiquei preocupada... – era o que eu pretendia fazer... Ela apenas pensou, um pouco desanimada, naquele momento não sabia bem o que fazer ou qual rumo seguir, porém preferiu não compartilhar a informação com a amiga. – Eu sei que você está de TPM, estressada, irritada e cansada, mas mesmo assim pegou muito duro com o padre! Por um instante eu achei que você fosse socá-lo, e eu sei muito bem que Gabriel não tem só cara de medroso, talvez ele nunca mais consiga te olhar nos olhos de tanto pavor! – depois de muito tempo só escutando a voz e os barulhos que o salto de Hill produzia contra o solo, Sarah finalmente viu seus cabelos alaranjados e ondulados aparecerem. – O que você está fazendo aqui?

– Pensando...

– A igreja tem um monte de cômodos vazios, claro que os dos fundos estão todos ocupados, mas acho que você fez uma boa escolha em vir aqui. O barulho da natureza é melhor que qualquer silêncio, é como se... – Johanna fez uma careta e parou de falar, o que deixou a médica ainda mais curiosa. A ruiva estava sempre falando e, quando interrompia uma frase no meio, era por algum motivo no mínimo sério.

– O que foi?

– É uma bobagem, você já deveria estar acostumada, é só o que eu digo mesmo – uma risada pequena escapou de sua boca e Sarah riu ainda mais quando recebeu um olhar constrangido e irado ao mesmo tempo. A mulher que se encontrava à sua frente sempre dizia o quanto era irritante, inconveniente e até mesmo imprestável, sempre se desvalorizando. Porém, em todo o tempo que passaram juntas, Sarah nunca percebera algo do tipo, muito pelo contrário, aí estava a verdadeira graça. – Está bem, eu digo! Quando estou ao ar livre, sinto que Deus está falando comigo, já que estou rodeada pelas criações d’Ele.

– O que você veio fazer aqui? – um silêncio havia se criado antes que o questionamento fosse feito, como se ambas tivessem parado para ouvir os sons da natureza.

– Conversar... Você ouviu o choro daquele pobre bebê? É de dar pena!

– Sim, é terrível – Sarah comentou, se esforçando para não parecer austera.

– É uma verdadeira lástima ouvir o sofrimento daquela criança – Johanna concordou, sem entender o real significado da fala da companheira.

– Eu quase não consegui dormir sabendo que aquele bebê estava lá... Eu quase não consegui aguentar a presença dele – seu olhar ficou perdido em uma nuvem qualquer no horizonte, no entanto a freira captou a mensagem rapidamente.

– Sarah! O que você disse é muito cruel, até mesmo para você! Se bem que você nunca pareceu ser cruel, o que é pior ainda! É só uma criancinha indefesa! O que você tem contra isso?

– Eu apenas não suporto aquele choro, não suporto bebês – a médica respondeu de maneira ríspida, o que fez Hill se perguntar se realmente a conhecia.

Mas a verdade era que aquelas palavras não passavam de uma grande mentira. Ela não tinha aversão a crianças, e sabia muito bem disso. O sonho de Morris sempre fora ser mãe, e isso não tinha mudado, apenas a realidade. Sarah não havia tido filhos até então e acreditava que nunca chegaria a ter. Não que ela fosse velha de mais, ou que fosse estéril, porém tudo mudara, e de forma tão brusca que a mulher tinha optado por desistir daquilo o mais rápido possível. O rompimento estranho com James e sua busca alucinada por Fred não lhe davam outra opção. Naquela noite, tendo que ouvir o choro do bebê por horas, Sarah só conseguira pensar no filho que ela nunca havia tido, e que nunca teria.

– Acho melhor trocarmos de assunto, não foi sobre isso que eu vim falar – Johanna propôs depois de certo tempo, ainda chocada e tentando lidar com aquilo. – O irmão do bebê... Judith, é melhor dizer o nome dela do que ficar repetindo a palavra... OK, vamos ao assunto. Ela tem um irmão mais velho, Carl. Talvez você tenha visto o garoto também, ele usa um chapéu. Eu não tinha notado nada estranho nele, até que Carol, uma das mulheres do grupo, esteve lá na cozinha e conversou comigo e com Gabriel. Eu acabei mencionando que você é médica, espero que não se importe. Ela me contou que Carl está com febre, e eu disse que te avisaria. Será que você poderia dar uma olhada nele? Sei que não gosta muito dessas pessoas e, pra falar a verdade, eu estou começando a ficar com um pé atrás, mas ele é só um garoto. Então, o que me diz?

– Eu posso... – Sarah não conseguiu terminar sua resposta, pois uma terceira pessoa surgiu no local.

Carl, ao lado das escadas da igreja, segurava Judith nos braços, olhando-a atenciosamente. Como estava a alguns metros das mulheres, ele não notou a presença delas, o que possibilitou a ambas alguns segundos de observação. O garoto havia saído com sua irmã para que ela pudesse tomar um pouco de Sol, por sugestão de Michonne.

Inicialmente, Sarah olhou distraidamente para a criança loirinha nos braços dele, se controlando para não deixar o local de imediato. Conseguindo desviar o olhar, ela passou a analisar o garoto, sem encontrar nada anormal na aparência dele. Apenas com um olhar mais atento as manchas rosadas em sua pele e o suor que fazia seu rosto brilhar ficaram evidentes. O jovem parecia superficialmente abatido, e a médica deduziu que deveria ser apenas uma febre, como fora dito antes. Nada que um rápido tratamento não pudesse resolver.

Johanna tomou a frente, puxando Sarah pela mão, se dirigindo até Grimes, que não tirara os olhos de Judith desde o momento em que chegara. A cada passo que a morena dava, o cansaço do garoto parecia mais evidente a seus olhos, e ela começou a perceber que as informações que Carol dera a Johanna foram um tanto eufêmicas quanto ao estado do menino.

– Carl – a ruiva chamou e o garoto de chapéu virou assustado, provavelmente sem reconhecer a voz que lhe chamava. – Eu não sei como começar essa conversa... – disse em voz baixa com a cabeça inclinada para o lado apenas para que ela mesma escutasse. – Sua amiga, Carol, me falou de você.

– Falou?

– Sim, e de sua irmãzinha também. Judith é um bebê adorável – o garoto de olhos azuis não baixou a guarda, parecia em estado de alerta. Algo dizia para Morris que, por mais que tivesse pouca idade, poderia ser tão perigoso quanto os homens que havia encontrado vez ou outra na estrada em direção a Dalton. E não era por menos, ele deveria ter sido apenas uma criança quando o apocalipse se espalhara e tinha crescido naquela terra de ninguém. O fim do mundo havia moldado a pessoa que Carl Grimes tinha se tornado. – Ela está muito preocupada com sua saúde e pediu nossa ajuda.

– Pediu?

– Sim.

– Quando?

– Hoje de manhã. E pare de fazer perguntas! Não somos pessoas ruins que formam planos diabólicos e se passam por boas pessoas! – a última frase foi dita com certo desconforto e em seguida Johanna envolveu os braços em seu tronco, desviando os olhos, talvez constrangida, Sarah não conseguiu identificar a razão. O fato era que aquela aparente petulância do jovem certamente era usada com um escudo, como se ele utilizasse as perguntas para se esquivar do assunto principal e obter algumas informações.

– Carol nos disse que você não está muito bem – a morena mentiu, decidindo ir direto ao ponto.

– Ela pediu a nossa ajuda, estava realmente preocupada com você, Carl. Eu sei que você não confia em nós e, francamente, eu não sei muito bem o porquê, mas estamos apenas tentando ajudar, vai ser melhor para você, e para Judith também. Não temos motivos para tentar feri-lo – ao ouvir as palavras da freira, o garoto de chapéu pareceu refletir sobre a proposta. Ele, mais que qualquer outra pessoa, sabia que estava doente. E sabia também que a pessoa que mais seria prejudicada com isso tudo era sua irmã Judith.

– Está bem, mas como pretendem fazer isso?

– Eu sou médica. Tenho um kit de primeiros socorros, mas não sei se vai adiantar muito. Eu precisaria te examinar, se você permitir – Sarah aguardou por uma resposta, e o jovem olhou para o bebê em seus braços por algum tempo. Parecia um pouco inseguro em relação ao que fazer com a garotinha, e ambas as mulheres perceberam que todo o grupo deveria ser bastante protetor para com ela, o que explicava o receio de Carl sobre deixá-la com uma estranha.

– Eu posso pegá-la – Johanna se ofereceu. Ela já estava bastante animada com a possibilidade de poder segurar um neném após tanto tempo, e feliz por estarem, aos poucos, conquistando a confiança do menino. Ele acabou cedendo e depositou sua irmã delicadamente nos braços da ruiva, que a segurou com bastante cuidado. – Eu adoro bebês, teria tido alguns se não fosse freira... Não me importo nem um pouco com o choro deles, acho que a doçura compensa – a mulher comentou com os olhos focados na pequena, mandando uma pequena indireta quase que involuntária.

– Carl – a voz não veio de nenhuma das mulheres, muito menos do dono do nome. Instantaneamente, os três se voltaram para a porta da igreja, onde estava Rick Grimes.

Ele analisou bastante a cena antes que fosse capaz de dizer algo. Viu a mulher, aquela com quem discutira, perto de seu filho, com uma mão no ombro dele. Enquanto isso, Judith estava no colo da outra mulher, a que conhecia Gabriel. Todos permaneceram em silêncio, observando o homem barbudo que, por sua vez, os observava com feições duras que escondiam a sua preocupação com seus filhos. De repente, talvez por ter visto o pai, a garotinha de olhos claros soltou uma gargalhada que, em outro momento, teria sido bem recebida, porém, em tais circunstâncias, apenas serviu para enfurecer mais o xerife.

– Carl, a Judith já tomou muito Sol. Vocês dois podem entrar agora – o líder do grupo não precisou dizer duas vezes, a ruiva apenas entregou o bebê para seu irmão, que saiu de lá com o olhar baixo. Assim que a porta da Igreja St. Sarah se fechou, o ambiente externo ficou completamente mudo.

– Seu filho está doente – as palavras de Sarah foram o suficiente para chamar a sua atenção antes que ele se virasse e repetisse o caminho do garoto. – Eu não tive tempo para examiná-lo, mas deu pra ver que Carl não está nada bem. Talvez você já tenha percebido.

– Só queremos ajudar – Johanna completou.

– Ajudar? – Rick ainda aparentava desconfiança, apesar de ter decidido ouvir o que elas tinham a dizer.

–Sim. O que esperava que nós fôssemos? Pessoas sem coração que só importam com si mesmas, como... Não importa – a ruiva de olhos azuis percebeu que aquele não era o momento.

– Como vocês pretendem fazer isso?

– Eu sou médica. Não tenho muita especialidade nessa área, mas sei que posso curar o seu filho. Só que não dá pra fazer isso sem descobrir o que ele tem.

– Certo... Carl, venha aqui – o home de olhos azuis abriu a porta novamente para chamar o jovem. Dessa vez, ele veio acompanhado de Michonne, que carregava sua irmã.

Calmamente, a morena se aproximou dele. Ainda mantinha um leve receio, que era gravado pelo olhar profundo que Rick mantinha nela, contudo tentou ignorar tudo isso para tentar se concentrar em Carl. Primeiramente, analisou sua aparência. Ele possuía olheiras, algumas manchas rosadas na pele e, involuntariamente, movimentava as mãos de maneira compulsória, como se estivesse agitado. Apesar desses sintomas, que para ela não significavam absolutamente nada, a médica precisava de mais informações para tentar eliminar algumas de suas hipóteses.

– Há quanto tempo você está assim?

– Duas semanas, mais ou menos – o pai respondeu por ele e, quando pronunciou as palavras, percebeu que fazia mais tempo do que parecia.

– Nessas duas semanas, o que você tem sentido?

– No começo era só dor de cabeça, e eu pensei que ia passar. Depois comecei a tossir e a sentir muito frio, na hora não percebi que era febre, Michonne e Carol me disseram isso.

– Não dava pra saber a temperatura, mas a pele dele estava muito quente. Carol falou que deveria ser uma febre alta – a mulher de dreads explicou.

– E a temperatura abaixou depois dos primeiros dias?

– Não, continuou a mesma – ela tornou a responder.

– E como se sente agora, Carl?

– Cansado, meus músculos estão doloridos e de vez em quando sinto calafrios.

– Tem mais dessas manchas rosadas? – Morris indicou uma em seu braço esquerdo.

– Sim, nas costas e nas pernas.

– Já tenho uma pequena noção do que é. Não é uma infecção viral, já que a febre não é baixa e não melhorou no início. Também pelo tempo que durou: se fosse um vírus os sintomas deveriam ter passado depois de duas semanas.

–Então o que você acha que pode ser? – Johanna, que até então se limitara a assistir, fez a pergunta que Michonne e Rick gostariam de ter feito.

– Estou quase certa de que é uma infecção bacteriana. Provavelmente ele a contraiu por ingestão de algum alimento contaminado, e não preciso nem perguntar o que vocês comem. Se estiver certa, todos vocês podem estar contaminados, inclusive Judith.

– Não me parece que ela dormiu bem esta noite – a freira observou. – Será que a pobrezinha já está doente também?

– Não duvido muito disso.

– O que podemos fazer? – a afro-americana questionou visivelmente preocupada.

– Precisamos de um bactericida – dizendo isso, Sarah suspirou. A médica sabia que precisaria ir até uma farmácia para buscar o remédio o que, segundo as suas contas, aumentaria em um dia a distância entre ela e seu irmão. O pior de tudo era que a mulher nem sabia para onde ele havia ido, Fred poderia estar se dirigindo para o norte, rumo às grandes cidades, para leste, visando o litoral, ou para qualquer outro lugar.

Naquele momento, a morena se sentiu egoísta por estar pensando naquilo. Frederick West se colocara naquela situação, ele assumira os riscos ao sair de casa sozinho e era maduro o suficiente para sofrer as consequências por aquilo. O irmão poderia esperar. Sarah observou os garotos e percebeu que ajudá-los era a sua obrigação, eles precisavam dela. Carl era muito jovem, tinha perdido seu passado e seu futuro. Judith, uma filha do apocalipse, nunca vira os dias normais, os mortos-vivos eram a sua realidade. Sua prioridade, no momento, estava mudando.

– Tem uma cidade nessa região, não fica muito longe. Posso encontrar o bactericida, só me diga o nome e eu busco – Michonne se ofereceu e, de início, parecia um ótimo caminho.

–Não. Eu vou com você. Eu tenho que ir.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Então, o que nos dizem?
Só para avisar, fizemos uma nova postagem no Tumblr. Se possível, passem lá antes de comentar, queremos saber o que acharam das curiosidades da Avery.
Nossa próxima atualização deve ser em Hold On, talvez semana que vem. Assim que possível começaremos a escrever.
Até mais! Beijos!