Ethereal escrita por Ninsa Stringfield


Capítulo 26
Vigésimo Quinto




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/572150/chapter/26

ANTES

Sua garganta ardeu quando ela engoliu em seco.

Diane supunha que tinha algo relacionado ao frio. Ou ao fato de que estava correndo noite enevoada adentro, com um vestido de mangas curtas que estava em frangalhos, sendo guiada por um garoto ensanguentado de cabelos prateados que segurava firme em sua mão sem nem ao menos olhar para ela enquanto se apressava por entre as árvores.

Ela não sabia o que fazer além disso. Além de segui-lo aquela mata adentro enquanto conseguia apenas piscar para espantar os flocos de neve que caiam em seus cílios, forçando suas pernas a continuarem a se mover apesar de sentir um frio em suas veias que não tinha nada a ver com a temperatura ao seu redor.

A visão de Dorian parado acima de todos aqueles corpos mutilados nunca sairia de sua cabeça. Eles desviavam de um galho e seu coração se acelerava achando que aquilo eram braços se estendendo para agarrá-la. Seus pés tropeçavam na barra de seu próprio vestido e ela tinha certeza de que estava caminhando num mar de sangue prestes a cair num abismo.

Dorian tinha permanecido muito tempo ali. Parado daquele jeito sem nem ao menos mover seu diafragma para respirar. E foi apenas quando o castiçal caiu dos dedos dela, tilintando no chão ao mesmo tempo que um raio tocou as montanhas do lado de fora, foi que ele se virou lentamente para ela. E ela teve certeza de que por um segundo seus olhos tinham estado completamente escurecidos. Então ele se moveu e a luz das poucas lamparinas ainda restantes finalmente moldaram o rosto dele numa forma quase humana, e ele começou a caminhar em direção a ela. Diane sabia que devia ter corrido assim que o viu parado ali, mas nenhum dos músculos de seu corpo pareciam se lembrar que deveriam se mover; então ela ficou apenas o encarando por todo seu percurso. Até que ele finalmente estava diante dela e seus pés deram um passo involuntário para trás. Algo quente escorreu pelo seu rosto no segundo que ele pegou em seu cotovelo.

— Nós temos que ir - a voz. Ela não lembrava que a voz dele era tão rouca assim, ou ao menos não conseguia acreditar que já tivesse sido - Agora.

Então ele a estava puxando escadaria abaixo. E Diane negava com a cabeça, negava com todas as palavras que não sabia mais pronunciar. E eles estavam passando por cima dos corpos, passando por cima deles como se não passassem de insignificantes obstáculos. E ela sabia que não deveria estar olhando para baixo, sabia que não deveria tentar decifrar seus rostos ou imaginar a dor pela qual haviam passado para terem morrido com aquela expressão; mas seus olhos corriam pelo chão mesmo assim. Corriam pela face dos homens que a haviam ridicularizado, do vestidinho manchado de uma criança para o pescoço de Lynn que ficaria eternamente virado naquele ângulo estranho.

Um soluço finalmente cortou seu peito, mas Dorian continuou apenas a arrastá-la. E havia um grito preso em sua garganta, um grito e uma dor aguda por todas aquelas vidas perdidas, algo punjante que parecia se espalhar do ponto que a mão dele tocava na dela para todo o resto de seu corpo. Havia sangue ainda não completamente seco nos dedos dele que agora manchava os dela, e Diane simplesmente não conseguia respirar.

Eles continuaram caminhando por entre o vento, por entre as árvores e por entre o frio como se não soubessem que deveriam ser apenas humanos, não parte de algo divino e incorpóreo que facilmente se mistura com o cosmos. E correram por tanto tempo que Diane conseguiu sentir suas pernas queimarem, seus pulmões resmungando toda vez que ela engolia ar demais quando era pega de surpresa por mais uma baforada de vento. 

Ela não sabia por quanto tempo permaneceram se esgueirando dentro daquela mata escura e desconhecida, mas quando finalmente pararam pela primeira vez o estômago de Diane tentou se virar do avesso e ela se contorceu para agachar e vomitar. Dorian estava parado do lado dela, e tudo o que ela conseguia ouvir dele era sua respiração ligeiramente rápida demais enquanto ele se concentrava em apenas encará-la naquela posição inútil. Vomitando todo o conteúdo de seu estômago enquanto tossia e quase se afogava em meio as próprias lágrimas.

Diane percebeu tarde demais que estava tremendo. Mas não podia saber se tinha alguma coisa a ver com o punhado de neve que agora ela apertava entre seus dedos no chão ou com o fato de que o garoto de cabelos prateados continuava ali. Parado ao lado dela como se não tivesse acabado de fazer o que fizera.

Ela ergueu os olhos para ele lentamente. Mas na penumbra ela mal podia enxergar o seu rosto.

— Por que... - ela conseguiu pronunciar por cima do choro - P -por quê...?

Mas ela não conseguia dizer mais do que isso e ele ficou longos segundos apenas observando o estado dela.

— Tinha que ser feito - respondeu finalmente, a voz sem emoção alguma.

— Você não... Entende... Aquelas pessoas...

— Aquelas pessoas iriam te matar - ele a cortou - Cada uma delas. Desde o momento que você cruzou as portas daquele salão era isso o que todos pensavam, e agora você quer sentir pena deles?

Diane se ergueu cambaleante enquanto continuava a balançar a cabeça negativamente para ele.

— Havia crianças ali, Dorian. Você matou todas elas!

A floresta se mexia freneticamente ao redor deles, e a sombra dos galhos acima de suas cabeças se projetavam no rosto dele transformando suas feições em algo que se retorcia. E ela não conseguia saber se aquilo que se movia nas veias de seu pescoço eram sinais de sua própria raiva ou apenas um reflexo do ambiente ao redor.

— Tinha que ser feito - ele repetiu, dando um passo em sua direção.

Mas isso só fez o estômago dela se revirar mais. E ela cerrou os punhos para controlar a vontade de se agachar e vomitar de novo. As lágrimas que caiam pelos seus olhos agora pareciam muito mais frias do que seu rosto que congelava.

— Não - discordou ela, com a voz mais firme que seu corpo aguentava produzir.

E algo pareceu se agitar dentro de seu corpo, porque Dorian estava sorrindo para ela. Sem felicidade alguma, apenas repuxando ambos os cantos de seu lábio para cima, desenhando a própria careta em uma máscara. Então deu de costas para ela, balançando a cabeça enquanto seu corpo todo parecia chacoalhar com a eminência de uma gargalhada forçada.

— Você não sabe nada sobre o mundo.

Ele continuava balançando a cabeça de costas para ela, como se tentasse convencer a si próprio de alguma coisa. E o pensamento finalmente lhe ocorreu. Ela conseguia ver perfeitamente todos os momentos que passara o encarando por um segundo a mais, o modo como ele nunca se cansava mesmo quando eles andavam rápido demais, ou como havia derrubado todos aqueles guardas. Ela lembrou de repente do dia que ele a salvara no beco, do fato que ele havia sido baleado na perna e nem ao menos fizera um curativo no machucado. Diane deu um passo para trás enquanto todas as células de seu corpo se agitavam como em alerta.

— O quê... O quê você é?

Sua voz não passara de um sussurro, mas o vento carregou sua pergunta até os ouvidos dele e Dorian pareceu congelar por um segundo. Incerto se a pergunta havia vindo dela ou dele próprio. Mas então ele estava se virando para ela. Lentamente. Os olhos percorrendo o rosto dela enquanto seus cabelos impossivelmente brancos dançavam nervosamente com o vento.

— Não importa o que eu seja, o que importa é que o mundo não vai pensar duas vezes antes de te carregar com a correnteza se você não aprender algo logo - ele caminhava em direção a ela e Diane recuava, até que trombou de costas com um tronco e uma exclamação de surpresa escapou por seus lábios. Mas Dorian não parou de se aproximar até que ela teve que erguer um pouco o queixo para encará-lo.

 - O mundo vai continuar te fazendo de idiota enquanto você não aprender que só sai vivo daqui quem atacar primeiro - continuou ele - Que na vida real não existe moral ou heróis. Existe apenas a arma que você tem em mãos e o que você está disposto a fazer com ela para continuar vivo.

Ele estava ofegante e ela não conseguia respirar. Suas costas doíam de tanto que ela se pressionava contro o tronco tentando encontrar um pouco de ar longe da atmosfera dele. Ela percebeu que algo definitivamente se movia debaixo da pele de seus olhos que não tinha nada relacionado com as sombras ao seu redor. E talvez ele tenha percebido que ela estava encarando, porque se afastou de repente numa lufada de ar que a fez escorregar alguns centímetros para frente. Arranhando uma boa parte da pele em suas costas no processo.

Ambos ficaram então um bom tempo em silêncio enquanto tentavam recuperar o próprio fôlego. Mas um pássaro alçou voo em algum ponto ao redor deles, e eles finalmente se lembraram de que deviam estar correndo. Dorian lançou apenas um olhar para ela antes de começar a correr novamente, e ela o seguiu apesar de saber que deveria estar correndo na direção oposta.

***

Diane não conseguia dormir.

Apesar de estar completamente paralisada virada de costas para Dorian desde que ele determinou que montariam acampamento no meio de dois grandes troncos caídos no meio da floresta, Diane não tinha conseguido nem ao menos fechar os olhos.

E supunha que não ousaria fechá-los tão cedo quando sabia que se depararia com a imagem de todos aqueles corpos espalhados pelo chão caso o fizesse. E ela não queria morrer disso. Da dor pinicante em seu peito, mas também não tinha onde lavar as mãos. Então teve que esfregá-las na saia de seu vestido branco até que todas as flores que cobriam seu corpo estivessem derramando lágrimas de sangue.

Diane engoliu em seco. Imaginou que se deixasse seu corpo parada naquela posição por muito tempo na neve ninguém seria capaz de notar quão morta ela já se sentia antes mesmo de seu corpo congelar propriamente. Ela conseguia ouvir ainda os gritos dos convidados pedindo desesperados por socorro enquanto ela apenas os ouvia sem mover um músculo.

Diane levantou seu tronco subitamente, incapaz de continuar parada enquanto os gritos a ensurdeciam como se ela ainda estivesse presa naquela mesma situação. Virou a cabeça para Dorian, cujo peito subia e descia regularmente enquanto ele se esforçava em dormir virado de costas para ela. Mas não conseguiu o encarar por muito tempo com aquelas roupas também encharcadas de sangue e abraçou suas próprias pernas para ganhar suporte.

Seu coração estava acelerado novamente. Como se ela ainda estivesse correndo daqueles guardas na mansão. Correndo, correndo, correndo sem conseguir sair do lugar. Ela arregalou os olhos que não havia percebido que havia cerrado e se levantou de repente. Seus pés começaram a se mover sem sua permissão e, quando percebeu, estava caminhando para longe de Dorian; para longe dos corpos e de seus gritos indistintos enquanto se esgueirava por entre as árvores e lutava para respirar por cima do nó que apertava sua garganta.

Diane não sabia para onde estava indo, e não conseguiu perceber por quanto tempo caminhou até que seus pulmões começaram a arder pelo esforço. Só então se deu conta de que estava correndo e parou abruptamente, quase indo de encontro com uma árvore. Olhou pela primeira vez para trás, para a mata escura que não dava nenhuma indicação de por onde ela poderia ter vindo. Então se voltou novamente para o tronco que segurava e encostou sua testa na madeira áspera.

Respirou fundo uma, duas vezes. Contou até dez.

A voz de Bev ecoava em sua cabeça pedindo para que ela ficasse perto de Dorian não importa o que acontecesse. Mas ela não conseguia compreender exatamente o que a velha dona da hotelaria dizia, não por cima das batidas de seu próprio coração que só conseguia se focar na feição de Dorian quando ele se virou pela primeira vez para ela depois de ceifar todas aquelas vidas sem nem ao menos piscar.

Então se virou. Decidida a correr para o mais longe que seus pés pudessem aguentar. Decida a correr o mais longe daquele cheiro de sangue em seu vestido que conseguisse. Mas uma sombra havia se esgueirado sorrateiramente por trás dela sem que percebesse. E um grito de surpresa cortou sua garganta afora no segundo que sentiu uma pancada na lateral da cabeça. Forte o suficiente para fazer seu mundo desmoronar e ela cair com tudo em direção a escuridão.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Ethereal" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.