Ethereal escrita por Ninsa Stringfield


Capítulo 24
Vigésimo Terceiro




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ANTES

Seus dedos deslizavam pelas pedras no corredor e por vezes se arranhavam enquanto ela caminhava. Havia sempre uma brisa constante que arrepiava os poucos fios rebeldes em sua nuca, e ela se via engolindo em seco toda vez que quase perdia a noção de onde estava quando um degrau aparecia de repente em seu caminho. As vozes que ela seguia esporadicamente se elevavam e ela tinha o desejo de apressar o passo, mas o caminho era escorregadio e estreito - e muito, muito gelado - então ela segurava a própria respiração enquanto seu coração se acelerava e dava passo antepasso com cuidado. 

Quando finalmente ela avistou um ponto de claridade a sua frente, Diane teve vontade de urrar em alegria depois do que pareceram horas naquele corredor escuro e quebradiço. Mas ao invés disso ela respirou fundo e segurou a barra de seu vestido para descer acelerada um último lance de degraus. Quando finalmente alcançou seu destino, sua visão demorou mais para se ajustar do que sua audição, e o som perturbante de risadas masculinas e debochadas reverberou pelo ar fazendo-a enrugar a testa antes de compreender exatamente o que via. 

Havia uma falha na parede entre duas pedras que produzia um retângulo de luz amarelada no outro lado do corredor. E por baixo das risadas que ecoavam havia o barulho de água. Como uma corrente que gotejava em algum ponto mais a fundo do corredor. 

Diane deu um passo em direção ao barulho, mas antes que pudesse fazer qualquer outra coisa, uma das vozes se sobressaiu da falha na parede e ela se deteve. 

— Apesar de achar toda essa conversa interessante, saiba que não tenho tempo sobrando, Marquês. 

Era Dorian. Ela suspirou, uma nuvem de fumaça branca saiu por entre seus lábios. As risadas cessaram, alguém limpou a garganta. Diane se virou para o buraco. 

— Ah, garoto - começou uma voz grave, entretida consigo mesma. Propriedade do Marquês Axis - Sempre querendo mais do que pode pedir não é mesmo? 

Diane estava agora suficientemente perto da abertura para que conseguisse enxergar o salão com um de seus olhos. Dorian e os outros homens com quem ele havia saído estavam sentados ao redor de uma mesa larga numa sala pequena demais e pouco iluminada. Cada um deles se encontrava ou com uma taça na mão ou um charuto, e o local todo estava coberto por uma nuvem de fumaça branca envenenada; e ela percebeu que parte do cheiro de podridão daqueles corredores eram resquícios do ópio impregnada nas pedras emboloradas. 

Ela mudou o peso de perna e se moveu para o lado para tentar enxergar melhor. Mas não havia muito mais a se ver, e sua atenção estava completamente voltada para Dorian a ponto de conseguir ver exatamente o momento que ele levantou uma sobrancelha em resposta ao Marquês. Ela não sabia como qualquer um deles tinha coragem de enfrentá-lo. Seu rosto estava sério e impassível, mas o segundo a mais que ele levou para estampar um sorriso calculado no rosto disse tudo que seus olhos negavam. 

— Estou atrás apenas do que foi combinado entre nós. 

Axis deu uma gargalhada e ela observou como todos os outros homens da mesa estavam desconfortáveis e ocupados demais se entreolhando ou desviando o olhar dos dois homens em lados opostos da mesa. Ele deu um longo gole em sua taça e esvaziou seu conteúdo. Prontamente um criado se aproximou para reencher, porém ele o dispensou com um aceno de mão. 

— Do que foi combinado? - repetiu o Marquês finalmente - Interessante da sua parte lembrar disso, considerando que não recebemos nossa remessa do mês passado. 

— Sua remessa? - Diane podia sentir dali a força que Dorian fazia para não pular por cima da mesa e estrangular o outro homem. Ele deve ter sentido a mesma coisa, porque se recostou em sua cadeira como se não quisesse nada e tomou mais algum tempo para continuar: - Nós subtraímos dois homens porque não havia necessidade de tantos assim. Você sabe melhor do que ninguém que quatro de nós dão muito mais do que conta do trabalho. Em contrapartida, você cortou por completo nossa remessa de carvão. 

Axis deu de ombros, seus olhos correram por entre os homens da sala como se estivesse de divertindo e eles fossem a sua plateia. Ele se aproximou mais e apoiou os cotovelos no tampo da mesa. 

— Talvez eu quisesse chamar a atenção de vocês. 

— Conseguiu. 

A tensão era maleável no ar, e todos os presentes não participantes na conversa - incluindo ela - pareciam incapazes de se mexer enquanto os dois travavam uma conversa silenciosa com o olhar. 

— Veja, garoto - começou o Marquês com sua lábia de vendedor - Os negócios estão se expandindo, a Inglaterra precisa mais do que nunca do meu carvão e apenas uma mina não será mais suficiente. 

— Você quer que cavemos um buraco para você por acaso? - indagou Dorian com a cabeça levemente inclinada. Axis apenas riu. 

— Você sabe muito bem o que quero. 

Um breve silêncio se seguiu, Diane segurou a respiração e Dorian maneou a cabeça como se considerasse a proposta. 

— Tudo bem. Você pode ter quatro homens por mina. E vamos querer o dobro do montante atual de carvão. 

O Marquês verdadeiramente riu disso. 

— Quatro homens por mina? - debochou - Você está louco? Eu tenho dezenas de trabalhadores por metro quadrado, não há como quatro de seus homens cuidarem de uma mina inteira. 

— Bom, é isso ou nada. 

— Isso ou nada? - ele repetiu - Garoto, eu sou dono da maior parte das terras desse país e tenho negócios com todo o resto. Nada acontece nessas ilhas sem que eu diga para que acontecerem. Então se eu digo que terei trinta de seus homens por mina com um belo de um desconto pelos danos causados pelo desentendimento da remessa passada, é porque terei trinta malditos de seus homens por mina

Diane não sabia muito sobre negócios, não sabia o que poderia levar alguém a querer se aventurar naquele mundo. Numa vida que mais se assemelha a um jogo onde sempre vence aquele com mais recursos e disposição para arriscar e arcar com a possibilidade de sair perdendo. Ela, no entanto, sabia reconhecer muito bem a cara de uma pessoa que se arriscava demais porque não está acostumada a sair perdendo. 

Por isso, quando Dorian deu um de seus sorrisos habituais em resposta - cheio de malicia e algo mais que ela não conseguia identificar - ela não ficou nem um pouco surpresa quando o Marquês Axis fez apenas um gesto com a mão e dois de seus guardas se aproximaram por trás de Dorian. Ela pensou em gritar por ele, tentar avisá-lo de algum modo pelo o que estava por vir. Mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, o inevitável aconteceu. 

A primeira coisa que ela viu foi um vislumbre, o reflexo das chamas das lamparinas da sala vindo de um dos bolsos internos do casaco de Dorian quando ele ergueu o braço para passar as mãos pelo cabelo num gesto casual. Então os olhos dela se arregalaram e Dorian se ergueu de um pulo, derrubando ambos os guardas antes que pudessem sequer erguer as mãos para detê-lo; e assim que se virou novamente para Axis, havia um objeto retorcido de madeira em uma de suas mãos que era contornado por uma borda de lâmina. E que lhe pareceu estranhamente familiar. 

— Veja - começou ele, o Marquês e todos os outros integrantes da sala se levantaram de seus assentos e deram um passo involuntário para trás - Eu sou um homem da paz, sou mesmo. Mas se medir forças é o que você quer Marquês, saiba que nunca fujo de uma briga. 

— Guardas! - gritou Axis. 

Mas tudo o que Dorian fez foi sorrir. Seus olhos estavam daquele jeito de novo, vazios e cerrados como quando ela o vira pela primeira vez no bar de Bev. Cheios de uma certeza que parecia sensata apenas para ele. E Diane teria desviado o olhar como não fora capaz de fazer na primeira vez se a porta da sala atrás de Dorian não tivesse sido aberta em um baque. E um grupo do que deveriam ser dez homens armados adentraram no cômodo com pressa. 

Parecia impossível que qualquer outro ser humano pudesse entrar naquele cômodo minúsculo, mas mais e mais homens apareciam e tudo o que Dorian fez foi virar a cabeça para eles lentamente. Então ele se moveu. E foi como nada que Diane já tenha visto. 

Primeiro ele estava parado. Então ele jogou seu braço que segurava a estranha lâmina para trás e o objeto saiu girando pela sala e atingindo oponentes enquanto seu dono inclinava seu tronco para trás desviando de um golpe dos guardas e então se impulsionava para a frente com um soco que atingiu uma mandíbula num crack. E antes que seu corpo retornasse à posição inicial ele chutou outro guarda ao seu lado para longe e agarrou o casaco de outro pela gola puxando-lhe para trás e travou um golpe certeiro em sua garganta. Dorian levantou o braço e sua lâmina, que vinha girando no ar até então, completou um arco perfeito e veio parar novamente entre seus dedos pingando de sangue. Tudo para que ele arremessasse o objeto mais uma vez e continuasse a lutar. 

E Diane teria assistido a tudo imóvel, a cena rápida e sangrenta demais para que ela acompanhasse, cobrindo sua boca com sua mão em choque, caso um movimento não tivesse chamado sua atenção pelo canto do olho. 

Como da primeira vez, no começo havia sido apenas um vislumbre de um reflexo das chamas; e então ela virou a cabeça e viu o Marquês Axis se aproximando pelas costas de Dorian com uma adaga levantada pronta para atingir o garoto. 

— Não! - gritou ela antes que pudesse se conter. 

Então tudo aconteceu rápido demais. O Marquês se assustou com o grito dela e demorou um segundo a mais para agir, o que deu tempo suficiente para que Dorian se virasse e detesse o golpe dele, empurrando seu braço para longe. A adaga caiu de sua mão e Axis tropeçou nos próprios pés mas foi socorrido por um de seus guardas antes que pudesse atingir o chão que começou a carregá-lo para longe. Dorian tentou ir atrás dele, mas outra adaga foi lançada, e seu ombro foi atingido bem na hora que outro guarda o agarrava pelo casaco. Mas como se nada no mundo pudesse pará-lo, ele simplesmente deu um giro e se desvencilhou do próprio casaco, arrancando a adaga de seu ombro e fincando-a no pescoço de quem ousasse pará-lo. 

E Diane estava tão distraída com a cena toda, que quando uma dupla de homens apontou para a direção onde ela se escondia atrás da fresta e gritou ordens, ela não reparou até que Dorian também se virou pra ela e fixou o olhar no dela como se realmente pudesse vê-la. 

— Corra - ele gritou.

E sem pensar duas vezes, Diane o obedeceu imediatamente, agarrando a saia de seu vestido ensopada e seguindo apressada pelo o que ela julgou ser a mesma direção pela qual veio. Mas seus olhos eram incapazes de se focar em qualquer coisa e seu coração estava tão acelerado que ela quase podia senti-lo subindo pela sua garganta. Ela tropeçou e ralou seu braço diversas vezes pelas paredes enquanto seguia desorientada e desesperada por uma saída daquela escuridão. Isso até que avistou um ponto de claridade e correu para atravessar a tapeçaria e se encontrar no mesmo corredor que esteve com Lynn.

Ela parou um segundo para recuperar o fôlego, tentando silenciar o chiado que nublava sua audição. Então ouviu passos se aproximando e seus pés começaram a se mover para fora do corredor antes mesmo que ela desse a ordem. Três homens avançavam em sua direção, Diane se virou pro lado oposto e correu. Acabou arrancando uma parte da barra do seu vestido tropeçando nele, mas se recusou a parar enquanto fazia a curva para adentrar em outro corredor desconhecido e parou apenas para se armar com um castiçal e se jogar para dentro da primeira porta que encontrou. Ela trancou a porta e jogou suas costas contra ela, olhou ao redor do cômodo e arrastou uma mesa grande de madeira o mais rápido que pôde para servir como bloqueio. Então se afastou dela enquanto ouvia os homens gritando e se forçando contra a tranca.

Seu coração continuava a golpeá-la em seu peito e ela continuou recuando até que encostou na parede oposta em um sobressalto. Diane observou enquanto continuavam a forçar a porta, observou quando a lâmina de uma espada foi enfiada no vão para se opor ao lacre, observou quando o som de corpos sendo golpeados e lâminas sendo trincadas se fez ouvir do lado de fora. Então a porta se abriu num chute e a mesa foi jogada violentamente na sua direção, passando raspando pelo seu corpo enquanto ela se jogava para o lado.

Mas antes que pudesse gritar, Diane ergueu o castiçal ainda preso firmemente entre seus dedos e por pouco não o jogou nos seus perseguidores quando as mãos de Dorian se entrelaçaram na arma.

Diane tropeçou com o choque e se encostou na parede novamente, deslizando até o chão enquanto tentava acreditar que continuava viva, tentava se adaptar ao som dos gritos abafados que vinham do corredor afora e tentava se adaptar com a figura de Dorian ali, segurando o objeto que ela vinha utilizando para se proteger. E coberto de sangue da cabeça aos pés.

— O que aconteceu? - ela conseguiu perguntar em um sussurro, sua voz soando muito distante para seus ouvidos que escutavam seu coração batendo no peito.

Mas tudo que Dorian fez foi dar de ombros. E apesar de suas mãos estarem cerradas em punhos e de sua expressão permanecer tão rígida quanto uma rocha, ele não parecia ter perdido nem o fôlego.

— O que aconteceu? O que diabos está acontecendo aqui, Dorian? - ela perguntou mais uma vez, agora mais alto e se levantando para empurrar o peito dele.

— Hein? - insistiu ela, empurrando e socando o peito dele mais uma vez - O que foi que você fez? - ela o esmurrava e ele não se movia, ela descontava cada gota de sua raiva empurrando e tentando despertá-lo daquela calma inebriante mas ele nem ao menos piscava - Onde foi que você me trouxe!?

Lágrimas de raiva escorriam pelo seu rosto e sua voz estava embargada, suas mãos estavam cobertas de um sangue que não era nem dele nem dela, e Diane teria desmoronado ali mesmo se ele não tivesse agarrado o braço dela antes que ela pudesse esmurrá-lo mais uma vez e obrigado que ela o encarasse.

— Eles estão vindo. Espere aqui.

Então empurrou o castiçal para o peito dela e se virou. Mas Diane limpou o rosto com suas mãos sujas de sangue e o deteve.

— Não! - ela berrou - Onde é que você está indo? O quê é que você vai fazer?

Mas ele simplesmente olhou para ela. Seus olhos não eram mais os mesmos. Não era raiva que ela via, ou o jeito que ele costumava olhar para o mundo como se pudesse segurá-lo entre as mãos e esmagá-lo. Mas o rosto de alguém que tinha acabado de fazer isso e assistia suas mãos sangrarem espetadas pelos estilhaços do resto da humanidade. Não era a expressão da vitória ou de alguém que sabia que venceria uma luta, mas a postura do último sobrevivente em um campo de batalho, a postura de alguém que assistia sozinho ao mundo queimando.

— Espere aqui - sua voz soava tão estranha e distante quanto a dela - Se quiser continuar viva. Espere aqui.

Então ele passou pela porta cuja tranca ele havia quebrado e a encostou. O castiçal ainda pendia precariamente em sua mão ao lado do corpo quando ela ouviu os primeiros gritos. Primeiros porque não pararam por aí, foram minutos e minutos de gritos, do som de ossos sendo quebrados e socos sendo disparados, minutos e minutos de corpos caindo no chão. E Diane permaneceu ali, congelada, os olhos arregalados, os lábios entreabertos, o estômago embrulhado e as mãos tremendo. 

Diane permaneceu ali quando os sons finalmente cessaram, permaneceu ali quando ouviu alguns cavalos partindo para longe, e permaneceu ali quando um trovão soou do lado de fora e uma chuva forte começou a cair. Tudo o que conseguiu fazer por muito tempo foi soltar o ar preso em seus pulmões em uma nuvem de fumaça branca.

Quando seus pés se moveram pela primeira vez, ela não sabia para onde deveria ir. Mas ela caminhou até o lado de fora, caminhou até o fim do corredor e pelo caminho até a balaustra. Assim que chegou na beirada, seus olhos se voltaram para o salão abaixo.

Para os corpos, tantos corpos espalhados pelo mármore e desacordados. Para seus vestidos reluzentes tingidos de vermelho, para os empregados, para as crianças e para o garoto de cabelo prateado que permanecia de pé acima daquilo tudo, congelado no epicentro do fim do mundo ainda segurando uma estranha arma de madeira que gotejava.

Uma trovão cortou os céus e tingiu a cena toda com um clarão que projetou o corpo de Dorian como uma cobra prestes a engolir sua próxima vítima.

O castiçal finalmente escapou dos dedos dela, e atingiu o chão num tilintar de dentes.


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