Ethereal escrita por Ninsa Stringfield


Capítulo 23
Vigésimo Segundo




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 A maior parte dos carregamentos para o Forte eram feitos via aérea - tanto mantimentos quanto pessoas; e, por isso, os descarregamentos aconteciam no lugar preferido de Diane. A garota em questão e Quinn, observavam enquanto uma porção de Ilegítimos armados sinalizavam para o grande caixote de metal que descendia dos céus por meio de correntes que o aterrissavam justamente no centro da Sala de Simulações.

Elas analisavam tudo atrás de um dos cubos nas plataformas ao redor da sala. Um dos Ilegítimos estava com uma prancheta na mão, e checou o número em seus formulários antes de procurar o mesmo no caixote e só então bater no objeto para que os outros o carregassem para dentro. Quatro deles se posicionaram em cada um dos lados do caixote e o ergueram do chão apenas com a força de seus braços.

Diane ainda se lembrava dos meses que passou se adaptando a nova força em seus músculos, poderosa e resiliente demais para ficar parada, a ponto de que todos eles tinham que treinar todos os dias não apenas para aprender a se defender numa luta, mas para impedir que seus músculos se rompessem tamanha era a força que continham. Era como se houvesse algo vivo dentro deles, como uma fogueira eternamente acesa que pinicava cada um de seus nervos implicando para que se agitassem. E cada um deles domava a sensação do seu próprio modo. Diane costumava combater fogo com fogo.

Os quatro atravessaram a entrada, e Diane guardou sua foice no coldre. Quinn assentiu para ela, e elas pularam.

Para Diane, alturas nunca foi um problema. Seu maior entretenimento quando criança fora subir nas árvores ao redor da propriedade em que serviam. No começo, havia sido apenas o modo que ela encontrara para fugir da mãe e passar um tempo em paz em meio as copas das árvores; mas, com o tempo, ela havia encarado cada escalada como uma tarefa que deveria ser cumprida. Era como se toda vez que entrasse na floresta, a vegetação ao seu redor abrisse um gigantesco sorriso cheio de presas e dentes sínicos para ela, rindo de sua fragilidade, desafiando-a a tentar. E ela, em toda sua gloriosa teimosia, aceitava a cada um deles com a cabeça erguida. Sempre nas árvores mais altas, sempre através dos galhos mais precários, sempre com os pés descalços.

Diane havia experimentado mais quedas nos seus primeiros dez anos do que muita gente experimentaria por toda uma vida. Ela carregava os galos, arranhões e cicatrizes como troféus pelo corpo, e nunca se arrependeu de qualquer uma das vezes que caiu. Por isso, para ela, ser o Corvo e a garota portanto responsável pelo reconhecimento do local nas missões nunca foi de fato um desafio. Ela havia sido feita para viver nas alturas.

Quinn, por outro lado, adorava a terra. Para ela, tudo que tinha uma raiz era sagrado, e tudo que se arrastava por cima ou dentro da terra deveria portanto ser respeitado. Ela era responsável pela maior parte da manutenção da vegetação que cercava a ilha, e não porque havia recebido essa missão, mas simplesmente porque ninguém naquele Forte seria forte o suficiente para pará-la. Desde que ela havia tomado a ilha sob seus cuidados, houve uma maior valorização do local em que moravam; como se ver aquela garota loira e feroz com tatuagem de lobo na panturrilha andando por aí com mudas e terra entre as unhas lhes fizesse lembrar de uma parte vital de suas antigas vidas que haviam ignorado completamente: sem a Terra sob a qual pisavam, eles não eram nada. E nenhuma força sobre-humana, nenhuma ilusão patética de um rosto bonito ou uma bagagem infinita de anos pela frente valia a pena se não tivessem onde morar.

Diane até mesmo já a pegara conversando com as plantas, como se Quinn as considerassem tão vivas e importantes quanto qualquer um dos Ilegítimos, rindo para o vento e sendo acompanhada pelo farfalhar ritmado das folhas.

Por isso, ela teve que treinar com Quinn por diversos anos até que a garota tivesse coragem de tirar os pés do chão. E agora, muitos anos depois, elas performavam com perfeição uma queda de mais de oito metros e caíram tão silenciosas e invisíveis como suas sombras atrás dos Ilegítimos que carregavam o caixote - que eram liderados por Sebastian.

O garoto em questão guiava sua equipe pelos corredores, percorrendo o caminho escolhido por Diane. Ela e Quinn seguiam o grupo a poucos metros atrás, esperando pelo momento certo para agirem. O caminho, entretanto, não era o que os Ilegítimos de Sebastian esperavam.

— Por que não estamos seguindo para elevador Leste? - perguntou um deles, o que estava na ponta direita da frente - Ele dá direto no depósito.

— Sim - respondeu Sebastian, sem nem levantar os olhos da tela do tablet em que mexia - Mas estão fazendo uma reforma no corredor que leva até ele.

Ele ergueu a tela para mostrar imagens das câmeras que gravavam Irene, Michael, e um bando de Ilegítimos do setor de manutenção mexendo em fios atrás das paredes de metal do corredor. Mesmo naqueles breves instantes, a forma de Irene se impondo sobre todas as outras ficava clara conforme ela jogava ordens para todos os lados. Ordens que não eram questionadas, quando ela as dava sempre com um sorriso no rosto e uma mão sobre o ombro de cada um deles, como se ela pudesse tocar em suas almas e os enfeitiçar para obedecê-la.

Outro Ilegítimo de Sebastian bufou irritado, arrumando o caixote em seu ombro.

— Não acredito que vamos ter que pegar o maior caminho por causa de uma maldita manutenção.

Sebastian se virou para eles e riu, como se não fizesse ideia do que realmente estava acontecendo ali.

— Uma maldita manutenção que vai impedir que sua internet caia - replicou - Vamos lá, Robert, falta pouco. Não percam a concentração pessoal, estamos quase lá.

E o grupo respirou fundo em uníssono, voltando sua atenção para o peso que carregavam e fazendo o resto do caminho em silêncio. Ou pelo menos teriam feito, caso não tivessem sido interrompidos no meio do caminho.

Antes de conseguirem fazer uma das últimas curvas que fariam, a porta da Sala de Treinamento foi violentamente aberta conforme o corpo de Seth foi jogado no corredor a frente deles. Os quatro Ilegítimos deram um passo para trás surpresos, e o caixote caiu de suas mãos num baque ensurdecedor. Mas eles ignoraram o barulho quando sua atenção voltou-se para Cléo Zahia, que saia de dentro da sala lentamente, arco e flecha apontados para o corpo de Seth no chão.

O Ilegítimo, no entanto, lançou um sorriso para ela - os dentes vermelhos por causa do sangue -, e se levantou na hora exata que uma das flechas passou raspando em sua orelha.

— Aceite, Leopardo - começou ele, tentando manter a voz firme apesar de estar claramente sem ar. Ele abriu os braços ainda com um grande sorriso no rosto - Não é hoje que ganhará essa luta.

Mas Cléo não o ouvia. Assim que viu que sua flecha não alcançara o objetivo, ela guardou o arco num movimento rápido em volta do peito enquanto dava um giro e chutava Seth com tudo para a parede. O corpo dele caiu no chão, a parte onde sua coluna atingira o metal na parede ficando levemente amassada.

— O que foi mesmo que disse? - perguntou ela com os olhos cerrados e a cabeça virada para o lado, enquanto se aproximava dele com os punhos já prontos para o ataque.

Mas assim que ela se aproximou o suficiente, Seth deu uma rasteira em suas pernas e ela caiu em cima da própria aljava. Ele se levantou, e já estava pronto para o próximo golpe quando Cléo agarrou suas pernas e o jogou no chão, usando o apoio para se impulsionar para cima. Ele jogou as pernas para cima da cabeça e se levantou apenas com a força dos braços. Cléo partiu para cima dele com uma sequência de chutes e socos que ele conseguiu desviar por pouco.

E eles ficaram assim, num vaivém de golpes que fez Sebastian e sua equipe assistirem paralisadas. Afinal, por baixo de cada investida, cada soco e chute; havia uma fúria muito pessoal e primitiva. Cléo parecia quase cega com os próprios arredores tamanho era o foco que ela direcionava a Seth. Seus olhos estavam cerrados e regados em raiva. Era como se houvesse um véu manchado de vermelho na frente de seus olhos, que a impedia de ver qualquer coisa além de seu desejo de matá-lo.

Quando Diane estava escalando cada um para uma parte do plano, e questionou quem gostaria de fazer essa parte, Seth se candidatou segundos depois de Cléo.

— A briga vai parecer mais real se for nós dois - ele havia dito.

E, de fato, não havia como negar. Enquanto assistia escondida por trás dos Ilegítimos chocados, Diane quase se esqueceu de que tudo aquilo fazia parte de um plano tamanho era o ódio que se chocava entre os dois. Cléo lutava com duas de suas flechas em mãos como se elas fossem espadas, e Seth não tinha nada para se proteger além dos próprios braços; mas isso não impediu Cléo de continuar investindo para cima dele, cada vez com mais força e precisão.

Diane soube no instante que Seth se candidatou que aquilo tinha muita chance de dar errado. Mas também sabia que ele estava certo quando implicou que apenas uma luta entre os dois poderia servir como uma distração real o suficiente para fazer a equipe de Sebastian - uma das mais antigas e portanto mais treinadas naquela Instituição -, parar tudo o que estavam fazendo e olhar. Por tempo suficiente para que Diane e Quinn, posicionada atrás deles, roubassem as armas dentro do caixote que carregavam.

Diane chegou perto do painel digital atrás do caixote e digitou o código que Evans lhe passara naquela manhã. O garoto monitorava as câmeras de segurança enquanto o plano era executado, e mudava seus ângulos quando elas passavam. Quinn abriu a porta quando as luzes do painel ficaram verdes, e as garotas se depararam com oito caixas empilhadas. Elas se apressaram para pegá-las o mais sorrateiramente possível, e logo Nolan apareceu ao lado delas para ajudá-las carregando apenas um caixa por vez até a primeira sala vazia que encontraram pelo caminho - um quarto que havia a pouco sido desocupado -, de onde mais tarde moveriam as caixas novamente.

Foi um processo trabalhoso, dificultado apenas pelo fato de que não poderiam fazer barulhos muito altos ou soltar um respiração mais pesada. Mas em menos de dois minutos eles já tinham conseguido carregar todas para fora. E Diane estava justamente fechando o caixote e colocando a trava novamente, quando o som de algo grosso se partindo reverberou pelo ar.

Foi um som desagradável, como um passo em falso ou o som que sai da garganta de alguém após tropeçar. O som parecia vir de dentro de seus próprios ossos, como se ela tivesse tropeçado, como se ela tivesse partido algo antigo, algo importante em infinitos pedaços.

Os dedos de Diane pararam no ar no segundo que alguém segurou a respiração em surpresa, e ela e Quinn se entreolharam. Os olhos do Lobo estavam arregalados, e ela estava prestes a formular uma frase quando Diane balançou a cabeça com veemência e indicou que ela saísse dali com Nolan.

Quinn teria discutido mais, mas então elas ouviram a voz de Sebastian gritando por Cléo, e Diane saiu de trás do caixote sem nem olhar para trás ou pensar duas vezes, empurrando a equipe de Sebastian para longe do caminho.

Cléo Zahia!- gritou ela, antes mesmo de conseguir processar a cena a sua frente e assustando tanto os quatro Ilegítimos quanto o próprio Sebastian.

A voz de Diane pareceu acordá-los de alguma espécie de devaneio e todos se viraram para ela, mas os olhos de Diane estavam ocupados demais olhando para frente.

E lá estava Cléo. Ela segurava uma parte de seu arco, que havia sido de algum modo partido ao meio - cuja outra extremidade repousava toscamente no chão ao lado dela -, que estava montada em cima de Seth. O garoto, em contrapartido, estava com o rosto e as mãos toda ensanguentadas, e havia um hematoma enorme no seu olho esquerdo, que estava fechado e inchado - e era exatamente onde Cléo planejava atingi-lo com seu arco antes de Diane gritar seu nome. O arco tinha um porta distorcida e afiada. Tão afiado quanto os olhos e dentes que ela exibia para ele como se fossem presas prestes a rasgar-lhe a garganta.

Não havia um sorriso em seu rosto, ou a feição de alguém que estava prestes a comemorar uma vitória. Mas raiva. Uma fúria tão pura e cristalina quanto a força de mil furacões. E seus olhos, quando Cléo se virou lentamente para Diane, pareciam dois buracos negros prestes a engolir a próxima vítima. Ela respirava rápido e com dificuldade, como se o grito de Diane tivesse lhe resgatado do lago de ódio onde havia se afundado, e agora ela se arrastava trêmula para a superfície.

Seth estava imóvel abaixo dela - ainda vivo. Mesmo que não tenha erguido um dedo para parar o golpe de Cléo; como se estivesse tão ansioso quanto ela para ser atingido. Diane não pode deixar de lembrar de Quinn noites atrás, parada naquela mesma situação também sem a intenção de mover um nervo que fosse para se salvar. E isso só aumentou a intensidade de sua raiva quando chegou perto dos dois e arrancou o arco quebrado dos dedos de Cléo.

— Para o quarto - ordenou Diane, sua voz saia baixa e carregada de uma fúria gelada e certeira. Cléo nem ao menos conseguia olhar para ela - Agora.

***

Olhando para o saco de pancadas enquanto o segurava entre as mãos, Cléo tentou se lembrar de sua infância.

Cléo Zahia! - Diane havia gritado.

Deuses, há quanto tempo ela não ouvia o próprio sobrenome daquele jeito? Muito tempo antes dos Ilegítimos a terem encontrado, quando ela ainda passava a maior parte dos seus dias correndo.

Ela não tinha memórias completas, a maior parte seu cérebro havia bloqueado, como se a estivesse protegendo de alguma coisa. Mas ainda havia o suficiente para não fazê-la dormir bem a noite, de modo que Irene tinha que segurar suas mãos praticamente o tempo todo.

Flashes, e sempre havia alguma versão dela - as vezes pequena, as vezes na idade que se encontrava agora - correndo, sempre com os pés descalços e calejados no chão arenoso do deserto. Ela havia nascido no Egito, e desde que se entendera por gente, fugia com sua irmã mais nova das garras do Império Britânico através do deserto.

Isso até que foram pegas. Isso até que foram separadas para sempre.

Cléo fechou os olhos com força, mas a memória veio mais rápido. Com força, como se ela estivesse se afogando - onda após onda de lembrança. Se sobrepondo uma a outra, jogando seu corpo mais baixo, sempre mais para o fundo toda a vez que ela tentava mexer os braços.

A cela, o grito, o choro, o tiro.

Cléo socou o saco, e abriu os olhos segundos antes de ser atingida pela força do próprio golpe. Ela conseguia ouvir a própria respiração como se ainda estivesse presa naquele lugar no escuro, sozinha. Sozinha, sozinha, sozinha. Até que os Ilegítimos a encontraram, e deram finalmente um propósito para todo aquele medo que ela foi aos poucos transformando em raiva.

E como se pudesse sentir tudo o que se passava na cabeça dela, Diane entrou no quarto e fechou a porta atrás de si em silêncio.

Cléo, a garota que crescera fugindo do Império. Diane, a garota que se refugiara bem no centro do coração dele.

Elas estavam no espaço reservado para a sua equipe equipe, com quatro portas adjacentes onde cada um deles dormia. Diane tinha um quarto só seu que era do tamanho de todos os cubículos deles juntos, do outro lado do corredor. Mesmo que na maior parte do tempo ou ela dormia com eles ou eles dormiam com ela. Agora, no entanto, Diane não parecia disposta a convidá-los para nada.

Naquela hora, elas eram as únicas ocupantes do aposento, por isso, quando Diane finalmente falou, Cléo foi a único que pôde lhe ouvir e abaixou a cabeça.

— No que diabos você estava pensando?

Sua voz estava estranhamente baixa e contida. Cléo estava de costas para ela, e não planejava virar o rosto a não ser que fosse de extrema necessidade.

No que diabos eu estava pensando? - Cléo repetiu, a voz embargada - Eu estava pensando em Michael, ou você se esqueceu do que Seth Brekker fez?

Ela sabia que aquilo era um golpe baixo, mas no momento simplesmente não tinha forças para pensar em qualquer outro argumento razoável.

— Se eu tivesse me esquecido - lembrou Diane, ainda controlada - Ele não carregaria até hoje as marcas da palavra que gravei nele.

Pois Seth Brekker não era apenas um dos integrantes daquela antiga equipe de Michael que o havia machucado simplesmente porque ele não queria falar; mas sim o líder deles. A cabeça que arquitetou tudo. E exatamente por isso, Diane não havia escrito ESCÓRIA com sua foice apenas em sua testa, mas também em cada um de seus braços. Mas por alguma razão, depois que ele e os outros que participaram do ataque foram mandados para a enfermaria, ele foi o único que permaneceu lá por mais tempo. Para sair de lá, um mês depois, com apenas as inscrições em sua testa apagadas, pois ele havia marcado com fogo onde Diane escrevera em seu braço, para que as palavras durassem para sempre.

No começo, eles haviam achado que era tudo um modo de fazer com que Diane fosse incriminada pelo ataque. Mas então ele abdicou seu posto de líder na equipe, apenas para que Quinn - entre todas as pessoas naquele maldito Forte -, o integrasse a sua equipe. E ainda o colocasse como o segundo no comando.

Cléo ainda se lembrava das inúmeras brigas que ela e Diane tiveram por causa disso - talvez uma das piores e mais longas que ela havia visto entre as duas. Mas com o tempo, Diane simplesmente aprendeu a ignorar o fato, e Michael...Michael o perdoou. Mesmo que os garotos não se falassem - ou pelo menos não interagissem entre si -, ou evitassem ficar muito tempo sobre o mesmo teto; Michael simplesmente dava de ombros toda vez que Cléo tentava insistir no assunto. E Irene sempre a tirava de perto dele, dizendo que aquela não era a briga dela.

Mas era.

Aquela, especificamente, era a briga dela. Cléo ainda se lembrava de sua antiga equipe, do que havia feito com ela, do que ela havia feito com eles. Ela fechou o punho, e estava prestes a dar outro golpe no saco de pancadas quando a voz de Diane chegou aos seus ouvidos novamente:

— O que você vai fazer quando a raiva acabar?

Cléo ainda se recusava a virar para ela. E não ousou soltar o ar preso em seus pulmões.

Parte dela queria gritar, quanto a outra queria cair no chão. Mas a maior parte queria quebrar o mundo em dois, enfiar suas presas no tecido da realidade até que toda a essência apodrecida da humanidade estivesse escorrendo pelo seu queixo.

Mas ao invés disso, ela olhou para as próprias mãos. Os dedos fechados em punho. E observou, assim que relaxou os músculos, as marcas de unha nas palmas de suas mãos. O desenho que elas formavam pareciam rachaduras, como se ela fosse um prédio que estava prestes a cair.

— Foi você quem me disse para me agarrar a ela.

Cléo ainda se lembrava de cada um de seus rostos. Apesar de ter vivido muito pouco tempo com eles, ela ainda se lembrava das feições de cada um deles; e, principalmente, do jeito que ficaram enquanto ela os executava.

A raiva parecia viva dentro dela desde então. Viva e maleável. Viva e indomável. Uma estrutura sólida e inquebrável que na maioria das vezes a mantinha de pé. Que nunca a deixaria porque precisava dela. Uma precisava da outra para sobreviver.

Aqui embaixo, o que tiver o poder de te destruir, você tem que quebrar com os seus próprios dentes. Foi isso que Diane dissera no dia que a encontrara naquele quarto onde sua equipe havia lhe trancafiado, e foi isso que ela fizera. E a sensação sempre fora a mesma de entrar dentro da própria casa.

— Eu disse para você se alimentar da raiva quando necessário - contestou ela - Não deixar que ela a consuma.

Uma risada borbulhou em seu peito e Cléo se permitiu estampar um sorriso distorcido nos lábios.

— Acredite em mim, eu sei o que estou fazendo.

Então investiu mais um soco, que foi brutalmente interrompido por Diane, que surgira ao seu lado e agora segurava em seu punho.

— Acredite você em mim - ruiu ela - Acha que não conheço a sensação, que já não me deixei entregar a ela? - agora foi a vez dela de rir em desprezo - Isso que você sente, essa onda de poder que finge te guiar na verdade está te atraindo para uma armadilha. Você acha que pode depender dela, confiar nela? A raiva vai te deixar assim que seu corpo ficar inútil para ela.

Então soltou o braço de Cléo com violência e apontou um dedo para seu rosto.

— Você acha que vale a pena? - continuou, avançando na direção de Cléo que instintivamente recuava - Perder o controle sobre o próprio corpo, ser incapaz de se conter mesmo que isso ponha a vida de todos ao seu redor em perigo?

E Cléo queria responder, sabia que devia responder a altura. Mas as palavras não saíam, as palavras simplesmente não existiam naquele momento.

— Tudo isso pelo o quê? - insistia Diane - Por uma falsa sensação de segurança, de estabilidade? O que você vai fazer quando for longe demais, quando não tiver mais como voltar atrás?

Mas Cléo permaneceu calada. Pela primeira vez na vida, ela não sabia o que dizer. Ela sentia uma silenciosa indignação misturada com algo parecido com ânsia se agitando em seu estômago.

Diane permaneceu alguns segundos estudando seu rosto, esperando que Cléo se defendesse ou pelo menos gritasse alguma coisa. Quando percebeu que a garota não seguiria nenhum dos caminhos em questão, apenas balançou a cabeça e respirou fundo.

— Você não me deixa nenhuma outra opção - os olhos de Cléo se arregalaram, e ela se virou inteiramente para Diane. Mas agora era tarde demais - Você está banida de todas as missões até segunda ordem.

Então simplesmente se virou e foi embora. Passando e deixando a porta aberta sem nem ao menos se virar para Irene, que esperava as duas no corredor com os braços cruzados.

Cléo finalmente conseguiu soltar a respiração. Apenas para sentir toda a força de seus membros se desmoronando e cair no chão com as palmas das mãos abertas. E tremendo pela súbita falta de apoio.


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Notas finais do capítulo

Aaaaa, esse merece um feedback, hein? Hehe
Então, passando aqui simplesmente para avisar que provavelmente vou fazer mais um pequeno hiatus na história :P
Porque to em ano de cursinho, e o segundo semestre é simplesmente monstruoso e vai consumir toda a minha alma. Espero estar viva para continuar a história apenas kkkkk (e quem sabe entrar numa faculdadizinha só para variar kkkk)
bjs, ninsa



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