Ethereal escrita por Ninsa Stringfield


Capítulo 10
Nono




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A música tocava melancólica nos alto-falantes, as batidas da música clássica enchendo os ouvidos dos convidados e por vezes os cansando. Alguns até mesmo ousavam rondar os anfitriões e parabenizá-los pelo grande evento, enquanto outros mexiam distraídos em seus copos de espumante observando uma obra ou outra que acabariam por comprar por um altíssimo valor apenas para mostrar que podiam.

A hora mais esperada da noite se aproximava, o leilão que ocorreria às exatas meia-noite e cuja maior parte da renda se destinaria à caridade e projetos sociais. Aquela era uma festa como qualquer outra da high society, e todos estavam muito ocupados representando seus receptíveis papéis para notar a presença de um membro indesejado. Para falar a verdade, a pessoa não agia sozinha, mas naquele momento serviria como tal.

Sua imagem passou despercebida pela multidão de jóias e perfumes caros, fugindo furtivamente dos olhares penetrantes da imperatriz da festa, a atual esposa de Mu Ning e mãe de Wei, a indiana Arya Ning. A mulher em questão ostentava beleza e riqueza. Sua feição parda era acentuada pelo grandes olhos azuis e pelo cabelo caramelo e espesso que caía na altura de seus ombros. Ela seria sem sombra de dúvida o ser mais belo daquela festa senão fosse pelo pequeno grupo de Ilegítimos presentes e camuflados na multidão.

Diane lançou um olhar por cima do ombro, para a mulher que há pouco a encarava, e sorriu internamente ao perceber que a despistara. Ela cortou caminho para o fundo do salão, onde se encontravam os toaletes e desapareceu por trás da porta que indicava o feminino.

Felizmente, o banheiro estava vazio. Ela tentou não reparar na decoração, igualmente luxuosa comparada ao resto da casa, e se pôs a trabalhar. Mexeu distraidamente nos pingentes de sua pulseira dourada e clicou discretamente no batão ao lado do feixe antes de se olhar no espelho e fingir que arrumava seu cabelo. Um clique no fundo de seu ouvido foi o alarme de Evans dizendo que estava tudo certo. Até ali o mais simples já tinha passado, e todas as câmeras da casa foram substituídas por imagens de sua escolha.

Seu olhar finalmente se focou na sua própria imagem no espelho, e Diane engoliu em seco. Seu cabelo curto já crescia até a altura dos ombros, e seus olhos, que já haviam sido da cor de âmbar, agora pareciam muito mais com um tom de castanho escuro, negros o suficiente para refletir sua alma. E sua pele, que já havia sido de um moreno legítimo, agora quase se via pálida naquela luz clara. Ela virou o rosto para os dois lados, observando como a perfeição lhe caia bem, assim como fazia com todos os Ilegítimos, e mesmo assim, a enojava. Todas suas tatuagens foram temporariamente apagadas, assim como a principal de todas, a asa de um corvo que descia majestosa do seu ombro até o cotovelo.

Além do corvo, que simbolizava o próprio animal em sua Sombra, ela tinha na lateral de seu corpo, um pouco acima do quadril, os últimos versos do poema Still I Rise, de Maya Angelou, "I rise. I rise. I rise". O que havia sido ideia de Quinn, que a acompanhara na primeira vez que ela fora ao estúdio de tatuagem, e alegara que o poema a lembrava de Diane. Na época ela não tinha entendido a referência, mas agora observando seu novo reflexo, entendia perfeitamente.

Ela ouviu um chiado distante, e não ficou surpresa quando viu uma ave negra emergindo das sombras e voando na sua direção pelo canto do olho. Ele deu algumas voltas no ar antes de se dar por satisfeito tendo chamado a atenção da garota e então finalmente pousar na pia diante dela, a cabeça abaixada em uma espécie de reverência. Diane revirou os olhos.

– Eu não estou vacilando - disse à ave que só ela podia ver. Sua Sombra.

Um chiado longo em resposta.

Ela voltou a se olhar no espelho, ajeitando o cabelo por pura distração. E foi enquanto arrumava uma de suas mechas para trás da orelha que a região de sua clavícula ficou exposta e ela foi capaz de ver a marca de queimadura que carregava ali desde pequena.

Diane passou os dedos pela cicatriz, reprimindo uma careta como se ainda pudesse sentir a dor do dia que a fizera. Por alguma razão que desconheciam, qualquer tipo de queimadura era a única coisa que nenhum dos Ilegítimos era capaz de esconder, se você tivesse alguma marca, a carregaria para sempre, seja ela feita antes ou depois de ter se tornado um deles. Havia dias, como naquele momento, que ela agradecia por isso. Aquela marca era seu último resquício de humanidade, os últimos vestígios da garota que havia sido, da garota que se esforçou tanto para destruir.

Sua Sombra voltou a soltar um chiado, jogando a cabeça para o lado como se dissesse "Foco".

Diane se perguntou o que estaria fazendo agora se ainda fosse aquela garota. O que teria sido de sua vida se não tivesse encontrado o homem que a destruíra. Eu levanto, eu levanto, eu levanto; dizia a tatuagem. Mas por quanto tempo seria capaz de fazer isso? Será que sua humanidade, como aquela queimadura em sua pele, duraria pela eternidade?

A Sombra gritava agora desesperada em seu ouvido.

Foco.

***

10 horas atrás.

– Deixa eu ver se entendi - repetiu ele pelo que pareceu a terceira vez só naquela mesma hora - Você tem um plano, que aliás é completamente suicida, e só eu e você sabemos disso?

Diane revirou os olhos e suspirou fundo impaciente pelo que definitivamente era a terceira vez.

– Sim...

– E nenhum dos outros assassinos profissionais que te acompanharão nessa missão, que por sinal são seus amigos, fazem ideia disso...?

– Acredite em mim, você não quer que eu repita.

– Eu ressaltei o fato de que eles são tipo os melhores assassinos desta Instituição, e que não vão hesitar em nos matar se acharem que estamos por trás de uma conspiração contra eles...?

– Eu pago para ver qualquer um deles tentando.

– ... Que não vão hesitar em me matar primeiro, para que minha cabeça pendurada na sala de treinamento seja usada como um exemplo e então...

– Evans! - gritou Diane, o interrompendo - Foco, por favor.

– Você acha que só porque todo mundo têm medo de você vão poupar sua vida se descobrirem que está fazendo isso? - perguntou ele quase histérico - Isso é ridículo, Diane! Você viu o que Cora está prestes a fazer com o próprio mensageiro, o pobre Carl, que nunca fez nada além de ser leal à ela, e que por um mísero atraso nas entregas vai ser executado?

Ela deu um alto suspiro.

– Todos sabem que Cora é uma maldita de uma louca - resmungou ela, cansando de pressioná-lo - Cedo ou tarde ela faria algo assim, era de se esperar.

– Mas o pobre garoto está delirante! - contou ele, exaltado - Fica murmurando coisas sem sentido, dizendo que estamos todos em perigo.

Diane riu.

– Ah, é mesmo? E sobre o que ele murmura?

– É meio difícil de entender - confidenciou - Mas pelo que me disseram são coisas relacionadas a fogo.

Diane sentiu um tremor involuntário na espinha, levou a mão para sua queimadura na clavícula por impulso, mas tentou disfarçar o gesto coçando o pescoço.

– Hum... - ela pigarreou - Er... podemos voltar ao assunto agora? - não era uma sugestão.

Agora foi a vez dele de revirar os olhos, derrotado. Então se virou na cadeira giratória e começou a mexer nas dezenas de telas de computador a sua frente. Evans era o especialista em computação daquela instalação, assim como ela própria era especialista em mecânica nas horas vagas. Cada Ilegítimo possuía algum tipo de função no Subsolo. Às vezes não passavam de tarefas simples, como lavar a louça ou limpar a sala de treinamento, mas tudo que ocorria ali embaixo era igualmente divido entre eles, onde cada um fazia sua parte para manter a Organização.

Ele aprumou a cabeça expondo uma parte de sua tatuagem na lateral do pescoço, na forma de uma puta de cachorro, que era ao mesmo tempo desconcertante e compreensível. Era só passar um tempo com aquele garoto para saber exatamente em qual animal sua Sombra se transformaria. Então ele estralou os dedos e começou a digitar como se estivesse com fome e o teclado fosse a última comida disponível, tão rápido que ela mal podia acompanhar. Vários desenhos de plantas de uma casa desconhecida apareciam na tela, cada uma em um ângulo diferente. Diane se inclinou sobre o ombro dele, acompanhando as imagens.

– Então meu plano é possível.

– Infelizmente sim - concordou ele - E posso mexer na energia sem problema.

– Preciso que controle as câmeras de segurança e os dutos de ar.

Ele assentiu de lado.

– Sem problemas - garantiu ele - Mas alguém vai ter que entrar antes para colocar os equipamentos.

Diane sorriu, olhando ele por cima, algo que obviamente ele foi incapaz de reparar. Descobriria na hora certa.

– Posso pensar em alguém - ela assentiu - Então parece que meu plano nem é tão suicida assim.

– Ha - riu ele forçadamente - Essa, querida, é a parte fácil, o problema é o que vem depois...

– Sim - concordou - Mas problemas são para pessoas que não conseguem achar uma solução - ele levantou uma sobrancelha para ela e Diane retribuiu o olhar, se inclinando na direção dele e sussurrando em seu ouvido: - Eu sempre acho uma solução.

***

Diane saiu da cabine do banheiro prendendo o cabelo em um rabo. Ficou surpresa com o fato de não ter sido seguida até o banheiro - depois daqueles olhares penetrantes da matrona da festa -, ou até mesmo por ninguém ter entrado no recinto. Na verdade ficou aliviada. Um corpo morto no chão sem um esconderijo específico seria a gota d'água daquilo tudo.

Ela teve a sabedoria de não se olhar no espelho enquanto terminava de vestir o uniforme de combate, não poderia perder mais tempo. Vestia uma regata preta por baixo de uma jaqueta também preta com um zíper transversal e que cobria quase toda a extensão de seu pescoço por proteção. Ilegítimos não precisavam de tanta proteção assim - não era exatamente como se ficassem feridos por muito tempo -, e além de tudo, o peso de uma espécie de armadura ou tecido mais fortalecido acabaria pesando mais e atrapalhando nos movimentos.

Aquela roupa, por incrível que pareça, mesmo sendo justa e parecendo desconfortável, era flexível - uma conquista do laboratório de pesquisa deles, que tivera o prazer de encontrar um material que não chegava a ser propriamente couro, mas uma mistura de vários tecidos e fibras que garantiam um movimento muito mais livre e próprio para lutas.

Diane remexeu na mochila novamente entre suas mãos e tirou um celular, onde Evans tinha colocado todas as informações que ela necessitaria. Quando mais cedo discutiram sobre o alguém que teria que se infiltrar em meio aos funcionários do buffet que organizaram a festa e os aperitivos, Diane obrigou o garoto a fazer esse papel, cujo único trabalho seria sair escondido por tempo suficiente para entrar no toalete e esconder uma mochila com todos os equipamentos necessários no tubo de ventilação.

Ela retirou um três Colt 45* da mochila e prendeu duas em seu coldre que circundava sua coxa, e a outra segurou nas mãos enquanto pegava sua nova foice portátil e abria o bastão de ferro para revelar suas lâminas duplas presas por uma corrente também de ferro. Ela colocou algumas facas nos outros bolsos disponíveis no coldre e na lateral do pé ante de pôr o novo rádio no ouvido, que agora possuía um pequeno transmissor.

– Câmbio, está me ouvindo tenente? - veio imediatamente a voz de Evans.

– Posso saber por que não estou sendo chamada de capitã? - ela fechou o zíper da bolsa enquanto pegava o último item restante em seu uniforme: a bandana que cobria seu rosto deixando apenas seus olhos expostos, e Evans ria.

Desculpe, mas hoje o trono é meu, Corvo.

Diane soltou uma risada enquanto prendia sua foice no arnês em suas costas.

– Lembre-se que a noite é uma criança - adivertiu ela, ainda sorrindo - E contate Sebastian, Quinn e os outros, vamos dar início à festa.

Ah, querida. Eu esperei a noite toda por isso – uma pausa enquanto ele digitava rapidamente os comandos - Nós realmente precisamos de playlists para momentos como esse.

Coloca na lista de sugestões. Foco no jogo, garoto da informática - Diane soltou um suspiro ao lembrar de uma coisa - E a propósito, você conseguiria mandar uma mensagem para algum computador ou celular da casa sem ser rastreado?

Isso é uma pergunta séria? - perguntou ele rindo, mas então se calou - Beleza, vou ignorar essa dúvida na sua voz e apenas responder afirmativo.

– Você consegue ou não?

– É óbvio que sim! - gritou ele pelo rádio - Sinceramente, que tipo de garoto da informática eu seria se não soubesse hackear alguns computadores?

– Mande uma mensagem para Wei Ning, avise para que feche qualquer porta que tenha ligação com o interior da casa, colocar um pano nos vãos existentes, e então permanecer perto de janelas abertas.

Como pedir, Capitã.

– Agora sim estamos falando a mesma língua.

Ela terminou de arrumar as coisas e voltou a última cabine no banheiro, fechando a tampa do vaso sanitário e subindo em cima deste. Pegou a chave de fenda eletrônica e começou a desparafusar a grade de ferro da parede que dava direto aos dutos de ar, e entrou. Teve que percorrer alguns metros até conseguir achar uma curva para poder se virar e fechar sua passagem de entrada. Os dutos eram insuportavelmente apertado, e ela tinha que se espremer toda para conseguir rastejar em direção ao seu destino.

Os sons da festa eram abafados ali dentro, mas vez ou outra ela se via diante de outra grade de ferro embaixo de seu corpo que dava direto nas salas, sem parar para observar ninguém. Tudo o que se obrigou a notar foi a posição estratégica dos Ilegítimos que encontrava no caminho, com maior atenção à Quinn e Sebastian. A dupla conversava amigavelmente com outro casal muito mais velho, como se realmente estivessem se divertindo e não fossem apenas peças no tabuleiro de Diane.

Se fosse viver pela eternidade, pelo menos poderia ver tudo ao seu redor como apenas um jogo. Uma brincadeira (destrutiva) de criança, nada demais. Nada com que pudesse fazê-la sentir-se com remorso. Nada com que pudesse fazê-la se sentir humana.

Continuou a rastejar pondo toda a força em seus braços. Não precisou se preocupar em fazer muito barulho, todos estavam ocupados demais para notar a sombra que passava por suas cabeças. Quando finalmente avistou o ponto de seu desígnio, quase respirou em alívio, já que pelo percurso todo havia sido perfurada pelas armas em seus coldres. Ela abriu a mochila que havia trazido de frente para sua cabeça aquele caminho todo, e tirou um pequeno cubo preto cuja única indicação de que era um objeto suspeito era uma pequena luz vermelha que piscava maldosamente.

Diane pegou o celular que Evans deixara com todas as informações e observou o desenho que ele fizera todo colorido como se ela fosse uma criança que precisava ser ensinada a montar uma bomba. Por favor, resmungou ela em pensamento.

Ela pegou então um relógio da bolsa, um cronômetro, e percebeu que demorara mais tempo do que deveria. Mais especificamente, tinha três minutos. Sem pânico.

Começou a trabalhar com os fios desesperadamente que saiam do relógio e conectá-los com outros que saia da caixa preta que (surpresa!) não era uma simples e inútil caixa preta. Quando terminou, olhou para o detonador mais uma vez para avaliar seu trabalho, e chegando com os desenhos de Evans mais uma vez, se deu por satisfeita e começou a guardar todo o resto da mochila.

Ali dentro era gelado, já que aquela na verdade era a passagem do ar condicionado, e agradeceu mil vezes a todo laboratório de pesquisas por ter feito um uniforme com tecido térmico. Olhou o relógio mais uma vez. Quarenta segundos. Abriu outro bolso menor na mochila e tirou cinco pequenas esferas, todas também brilhando com a luz vermelha insistente. Pegou duas e as jogou por outras duas passagens do duto de ar que divergiam do ponto que se encontrava. Então começou a rastejar de costas desesperadamente pela passagem de volta, não tendo tempo de poder se virar.

As curvas foram as partes mais difíceis, e mesmo que a dor em suas costelas da luta performada mais cedo tivesse ido embora, ela pôde jurar que sentia uma nova pontada decorrente do esforço físico.

Não teve tempo para reclamar, continuou rastejando até se ver no corredor que dava para o banheiro de novo e finalmente encontrar uma oportunidade de se virar, jogando uma das esferas para o lado da grade de ferro ao invés de ir para aquela direção. Só mais duas esferas, só mais duas esferas...

Checou o horário novamente. Dez segundos.

Finalmente encontrou sua saída, e teve que chutar a grade de ferro, não tendo tempo para arrancar seus parafusos, e se jogou na passagem quando viu a grade ceder e caiu de encontro com o chão.

No segundo de seu impacto e do som de seus ossos rachando mais uma vez todas as esferas que ela jogara pelo duto de ar, incluindo as duas que ela ainda segurava, pararam de piscar e se abriram em um clique mudo.

Então o caos reinou.


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Notas finais do capítulo

*Colt 45: pistola semi-automática de ação simples.



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