Dias e noites em uma pousada no sul escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 3
Ato 3 - Fogo azul




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Aprendi com uma velha amiga que não está mais entre nós, que todos os seres humanos têm uma bolha transparente e permeável envolta de si. Um exemplo claro é quando em um fila de lotérica duas pessoas se esbarram e uma se desculpa e a outra retribui com um sorriso sincero e tímido, as bolhas foram levemente penetradas e por um lapso no tempo retornaram aos seus estados originais. Esperando inconscientemente que alguém se importasse com elas, com os furos e todas as fendas causadas por dores e segredos.
Naquela tarde, quando tive meu coração tocado, minha bolha se tornou poeira e voou, misturou-se ao ar e vulnerável, constatei que estava a par do amor e também da decepção, quis por um instante esquecer que ficaria apenas por quatro dias no local, agarrei a imortalidade como uma velha amiga e a beijei, assinando em baixo para perpetuar entre todas as minhas existências o que acontecesse nos dias que teriam seguimento. Assinei meu atestado de óbito ou talvez engrandeci-me.
Em todos os meus casos anteriores, minhas ilusórias paixões deixaram-me, arrancaram meu coração em um sacrifício. Uma crosta foi se formando entre meus membros, e a epidemia de amores roubados decaiu-se sobre minha alma. Transformando minha personalidade.
Após a espada, veio a carta branca e estava assinado logo abaixo do meu nome: “Dóris”.
No trajeto até o Chalé, variei passos longos e rápidos com curtos e lentos, aproveitando minha estadia. Já teve a sensação de querer parar o tempo e aproveitar tudo que as horas poderiam proporcionar sem que o dia terminasse? E você pudesse repetir demasiadas vezes sem se cansar. Imagine isto intensificado por um garoto que desacreditava na vida.
Havia encontrado a chave para o El Dorado, e ela encontrou o expedidor.
Abri a porta do Chalé, meu pai arrumava os materiais para a pesca, minha mãe apenas esperava para acompanhá-lo, minha irmã ainda não havia chegado e só me dei conta que a havia deixado sozinha quando cheguei.
Meu pai logo perguntou:
— Onde você estava? — Disse sem dirigir o olhar.
— Andando.
— Cadê sua irmã? — Minha mãe perguntou sentada na minha cama.
— Deve estar vendo os cavalos.
— Deve? Você deixou ela sozinha? — Estagnou sua procura por sabe lá o que, e ereto fitou-me, com seu olhar áspero.
— Ela queria ficar lá. — Fui encurralado.
— Vai buscá-la, agora! E depois conversamos... — Levou as mãos a cintura e abaixou a cabeça — Nós não conversamos sobre isso ?! De não deixar sua irmã sozinha?
Não respondi e saí por onde entrei. Havia esquecido completamente. Enfim, a Beatriz tem 12 anos, e meus pais ainda assim me forçam a ficar olhando-a. Não que eu não sinta ciúmes, mas logo que cheguei procurei alguma presença masculina, quando reparei que havia apenas eu com idade inferior a dezesseis anos, libertei-me destas amarras de ficar no encalço dela. Pelo jeito, não foi a melhor escolha.
Voltei ao estábulo. E a encontrei, não do modo que esperava, estava em prantos aos cuidados do cuidador dos cavalos, com o joelho esfolado. Aproximei-me e dirigi a pergunta ao homem:
— O que ela arrumou desta vez?
— Saiu correndo e caiu. Já passei uma pomada. — Atencioso e humilde, respondeu-me.
— Obrigado. Você está bem, Bia?
— Eu sai correndo para contar que você me deixou sozinha, e caí, a culpa é sua, quando eu chegar vou contar tudo! — Aquilo não me cheirava bem.
Peguei-a pelo braço, com um movimento brusco fez-me soltá-la, feito um escravo amarrado em seu calcanhar segui seus passos. Enfurecida, lembrava-me um predador correndo para dilacerar a presa.
Abriu a porta, perguntei-me quem é mais violento na hora da ação: a polícia ou a minha irmã.
Começou a esbravejar:
— Pai, mãe! Ele me deixou sozinha! — Apontou para o joelho e empunhou a metralhadora — E olha o que ele me fez!
— Davi, hoje você não sai mais, apenas para comer. Arruma o seu livro e descansa, é bom para pensar. — A naturalidade do meu pai, assusta.
— Não! Não posso ficar em casa hoje! — Desesperado, entrei no assunto.
— Só isso, pai ?! Ele me fez perder o joelho! — Insatisfeita, retrucou.
— Você adora exagerar! — Minha mãe disse algo com nexo.
— Pai, você não está pensando com episteme.
— Episteme? Fala a nossa língua, por favor! — Meu pai, muito intelectual. Como já dizia uma querida amiga, a filosofia não é para todos.
— Você não pode me deixar em casa hoje, eu tenho 15 anos e você ainda ousa me deixar de castigo?
— Ainda está sobre minha tutela e não vai sair hoje, e ponto final.
Moí meus dentes, rangi-os e dei-me o direito de uma última réplica.
— Vocês podem pelo menos, dar-me a gentileza de me deixar sozinho?
— Já estamos de saída mesmo, vem Bi. — O amor materno transpareceu.
Após fecharem a porta, deitei na cama, emburrado e embrutecido, queria fugir, enfiar minha cabeça em alguma fossa. Então, passou diante meus olhos um filme, de tudo que seria perdido se a deixasse sozinha na estrada do açude. Fiquei inquieto e senti-me na obrigação de planejar um plano de fuga.
Fiquei repetindo-o na minha cabeça: “Saíamos para jantar, e então quando estivermos chegando, aproveitarei do cansaço dos meus pais e direi que voltarei para buscar o toca-fitas, é quando desvio-me e corro para a estrada do açude, e espero até a hora que ela chegar”. Um plano suicida. Sim, foi mesmo.
Em uma guerra, você nunca sai ileso, se não for atingido pelas balas, estará surdo pelos gritos.
Não abri o livro, nem ouvi músicas para me acalmar, estava eufórico, e mesmo que houvesse a crença que o sentimento não fosse recíproco, criei expectativas e não aconselho, apenas se você tiver muita insanidade para dar e vender.
O relógio me amedrontava com o seu tic-tac inverso. Ensurdecedor.
Finalmente havia chego a hora, meus pais chegaram sujos de terra e a minha irmã, você já sabe, com a sua expressão que ia do feliz ao brutal. Banharam-se, aproveitei a brecha e levei-me a ducha.
A água torrente descobriu vielas desconhecidas na minha grande montanha, higienizou minha alma, clareou meus olhos e transformou fios de cabelo em pétalas, formando um buquê, contrariando o aspecto mórbido, deu vigor e o enfeitou para a minha amada.
Remeteu-me a lembrança amarga de quando meu romantismo entediava as pessoas, e os meus colegas de classe diziam: “Elas não querem isso, meninas odeiam românticos”. Disparavam meu coração e acendiam uma bomba relógio que me deixava decapitado por dias.
Guardei minhas palavras belas para alguém que as ouvisse. E silenciei-me.
Enxuguei-me, pus uma roupa decente sem formalidade e segui o plano. Ao ponto que chegávamos, a poucos metros da cozinha principal, disse com naturalidade:
— Nossa, esqueci meu toca-fitas, eu já volto, vou buscá-lo.
— Ahh, para com isso, você consegue ficar sem ele pelo menos no jantar. — Meu pai, claro, meu pai.
— É rapidão, podem ir comendo.
Sai correndo, de braços dados a liberdade. A fuga, a loucura, a felicidade.
Passei reto o chalé e fui ao encontro do local marcado, um pouco adiantado, se botasse meu plano para funcionar após o jantar chegaria atrasado e quem sabe perderia a passeata.
Arregalei os olhos quando a vi, não era sete horas ainda, preferi acatar a ideia de que ela estava ansiosa como eu. Levantou-se da pedra onde estava, com os cabelos molhados e as pernas perfeitamente delineadas na escuridão da noite que adentrava o recinto de paz e devaneios.
Abriu um sorriso atraente, que desenvolveu rapidamente uma corda entre eu e ela, puxando-me cada vez mais forte para os seus laços, quando percebi meu cérebro queria indubitavelmente dar trégua no tempo para nunca mais sair daquele abraço. O hipotálamo ligava-se as divindades de outrora, e o meu cerne pedia mais.


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