Dias e noites em uma pousada no sul escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 2
Ato 2 - Lua vermelha


Notas iniciais do capítulo

O primeiro dia na pousada, e a vida gritando: "Viva-me!".



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/571152/chapter/2

Não se assuste com o título, a cor vermelha não deve lembrar sangue, e sim paixão, ardente e gradual. Quando chegamos, o Sol pungente se tornava proeminente no céu esplêndido.
Meu pai parou o carro, voltei a realidade quando minha irmã me cutucou azucrinando-me, fechei o livro transtornado, nunca retire um mochileiro das galáxias de seu transe.
Desci do automóvel pisando em uma poça de lama, levantei o olhar e avistei a entrada do logradouro, com uma das mãos agarrada no pilar de madeira prestes a descer os degraus, estava ela, com um sorriso cortante dilacerando minha alma retraída.
O mundo estagnou, boquiaberto e sem fluxo de sangue perscrutei uma diva do paraíso.
Descalça, com seus pequeninos pés em contado com a Cabreúva. Olhando o horizonte, lembrando-me filmes dramáticos que me fizeram chorar. Uma regata listrada, rosa e branca, um short jeans levemente colado em suas carnudas pernas, que me lembravam alicerces do segundo círculo. Luxúria. Sútil. Cabelos e olhos que se entrelaçavam em uma cor castanha beijando o éter de meus efêmeros sonhos.
Corpo escultural, com seios exuberantes que estancavam minha lucidez e premiavam minha loucura. Cabelos lisos e levadiços. Um homem abandona seus ideais quando percebe o quão parvos se parecem e se assemelham a uma maldita distopia.
“Davi, Davi... Filho!”
Minha mãe trouxe-me a realidade e o tempo voltou a discorrer normalmente, foi quando tive os olhares fitados, e fui abatido feito um carneiro. De tão cintilantes os lasers que me varavam, obliterado e sem local para fugir, captei o abrir de um sorriso do outro lado da ponta e ameacei abrir um.
— Líbia, vamos almoçar! — Uma voz feminina ecoou de dentro do casarão.
Logo, veio a resposta.
— Mãe... Já vou.
Uma sinfonia rompeu meu toca-fitas portátil. Meu corpo estremeceu, e a voz que ouvi jurei ser a melhor. Contínua e oscilante. O enigma que até o mais aventuroso morreu tentando desvendar. O poder da voz feminina.
Desnorteado tentei acompanhar os passos dos meus pais que se perdiam ao longe.
Uma missão de reconhecimento. Moinhos de vento, um lago mediante a fazenda e a escuridão, distante dos chalés. Mosquitos. Moscas. Mosquitos. Odeio mosquitos! Pterodátilos sugadores de preciosos sangues. Pestes.
Diversas estruturas, consequentemente animais e seus sons. Cacarejos. Grunhidos. Relinchar. Mugidos. Os ladrados e os zumbidos. Bateu uma saudade de casa, ao mesmo tempo que a minha consciência pedia tempo ao tempo para me mostrar o que o mundo havia guardado em sua caixa de Pandora.
Encontrei minha família no Chalé Vermelho. Meu pai ditou:
— Encontre um lugar para suas coisas e arrume sua cama.
O silêncio apercebeu como a melhor resposta.
Após os mandamentos básicos fomos almoçar. Troquei de roupa antes, uma calça jeans no calor infernal incomoda.
Sentei ao lado da minha irmã que parecia comer como um animal. Um banquete diante de mim, comida caseira sempre me apraze. No outro canto da mesa, sentada em cima de uma das pernas, a eufórica garota repousava, demorei dar a primeira garfada, quando constatou meu olhar hipnotizado, começou a flertar-me por debaixo dos olhos, um jogo de gato e rato, silencioso e mortal, iniciou-se.
Nunca fui o estilo de garoto que ludibria garotas. Sempre errei as palavras e o primeiro sentimento que experimentei no ilusório começo de um relacionamento conjugal foi a negação. Desenvolvi uma birra, tornando-me irritadiço.
Todo mundo terminou de comer e o meu prato persistia cheio, podia jurar que havia ingerido comida suficiente. Após alimentar-me. Ouvi o conselho da minha mãe. Depois de sairmos da cozinha principal, ela disse para os seus filhos, que no caso sou eu e a minha irmã:
— Agora vocês estão livres, vão no celeiro, ou na manjedoura. Nós vamos andar um pouco agora. Tomem cuidado.
Fomos ver os cavalos. Minha irmã fissurada ficava fazendo perguntas para o cuidador. Aproximei-me de um cavalo negro, com os olhos castanhos que eram confundidos com a imensidão habitual. Do meu lado surdiu a sua presença, de súbito o cavalo deliciava-se com as carícias de Líbia. Com a boca entreaberta encarou-me, a pele levemente bronzeada por tanto forrar-se com o Sol, gotas de suor demonstrando que a ilusão cinematográfica não baseou-se em todas as alterações químicas que ocorrem em nosso corpo.
Questionou-me.
— Qual seu nome?
— Davi, prazer.
— Me chamo Líbia. Mas prefiro que me chame de Dóris.
— Prazer, Dóris.
Uma leve risada brotou e continuou:
— Você é de onde?
— Grande São Paulo.
— Sou do Rio.
— Não tem sotaque.
— Meus amigos falam isso. Um enigma, não?
Calmaria. Apenas. Dóris retomou a conversa.
— Gosta de animais?
— Sinceramente, não tenho o mesmo gosto que a minha irmã. Mas tenho uma cachorra.
— Eu também. Qual raça?
— Shitzu e a sua?
— Também, são lindas, e aqueles dentinhos para fora, fofas!
Comprimiu a face contraindo-se com a “fofura” que havia dito.
Vê? Descortino esse misticismo sobre os relacionamentos, não são como Hollywood. Não são conversas sobre sagas épicas, o meu relacionamento começou falando sobre raças de cachorros, olha que fantástico.
Quebrei o gelo:
— Gostou daqui?
— É a segunda vez que venho, eu e a minha família amamos aqui. É uma bela fazenda. Fugir de toda civilização. Sufocante. E você?
— Sem dúvidas, um local impressionante. — Acho que pela expressão de riso que ela me enviou, captou minhas palavras mentirosas, além disso, com um fundo de verdade, se as estruturas arcaicas e corroídas da fazenda não me impressionavam, pelo menos ela conseguia.
— Vamos no lago?
— Sim. Por onde é?
Segui-a, sem tendências evolucionistas.
Alguns passos a minha frente levavam-me a Asgard, com todas as belezas naturais. Não condene-me, por favor. Enquanto no colégio os garotos se contentavam com pornografia, vulgaridade e palavras ultrajantes para provocar excitação. Eu tendia para o erotismo, para a nudez artística, para assim apreciar cada curva de uma mulher, do sorriso a vulva. Eles não me acompanhavam e não entendiam a verdadeira essência que tanto procurava, muitas se perderam na lábia masculina, repararam fatalmente que a maioria deles não se importavam com o amor e assim começaram a se entregar de corpo e alma para relacionamentos, esperando que alguém lesse seus pensamentos e as entendesse.
Havia um banco na encosta do lago, ficamos ao lado, apreciando a água azul escura, com poucos movimentos e ondulações. Desta vez fui eu que a peguei olhando para o meu cerne. Em resposta, ela me perguntou:
— Ei, o que acha da vida?
— Da vida? Que ela vai te eviscerar, em um jogo doentio apresentar cartas em um ritual nulo onde o ganhar é a maior taxa de erro.
Líbia tomou caminho até mim, com passos curtos e lentos, engoli seco, ela estendeu a mão e tocou meu coração por cima da blusa. Inarrável, causou trepidação entre minhas artérias e disse com uma sensualidade acidental:
— Está sentindo isso? É a chance de um recomeço, de fazer diferente. Enquanto esse coração bater você pode ter uma ideia diferente sobre a sua volta. — Retirou sua mão e apontou para um ponto inexistente na água — Está vendo toda essa água, é a vivacidade, a vitalidade exigindo que você a viva. Se o prazer natural não vem até você, vá até ele.
Onde eu estava mesmo? Ahh, sim. Foi neste exato momento que as palavras fugiram. Levou-me a lona, nocaute. O fascínio pela tristeza, pelo monótono e a solitude te distancia do entorno, a vida te derruba e te força a levantar para mostrar seu aspecto dualístico, no fenecimento ainda nos prendemos ao coração lúgubre da tristeza. E não a liberdade da juventude que vem na bendita bandeja prateada. Continuou:
— Então, hoje vai ter um programa especial aqui na fazenda, meu pai comprou, vai ser uma viagem no bonde, se quiser eu consigo por você para dentro. Quer ir comigo?
Hesitei, autoflagelei: “Como uma garota como essa pode querer ficar perto de mim?”, comecei a minha frase com: “é...”, logo fui interrompido.
— Isso é um sim? Então tá, me encontre na estrada do açude as sete, essa fazenda fica maravilhosa a noite. Espero-te lá.
Ela saiu andando, eu estava recortado, um pedaço dos meus trapos estava com ela, afinal, ainda está. Não podia perder a oportunidade, desafinado com a minha voz grossa, proclamei:
— Dóris! — Virou-se — É um prazer conhecê-la!
Derreteu-se, e respondeu com singela expressão:
— Eu também amei conhecê-lo Davi, há muito mais por vim. Aguente. Te irritarei todos esses dias.
Quase respondi: “Ajoelhar-me-ei para isso!”. Sublimado, com uma corrente deflagrada no chão, fui calmamente voltando para o chalé, rindo e disperso com todos os meus anjos e demônios.
Apedreje-me, apaixonei-me. E o dia ainda não havia acabado.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Gostaram?



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Dias e noites em uma pousada no sul" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.