Dias e noites em uma pousada no sul escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 4
Ato 4 - Noite estrelada




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Ao sair da ligação calorosa, ficamos ali por alguns segundos nos encarando, sem saída, sem fuga. Tivemos nossos universos invadidos, por uma frota invencível, varrendo nossos interiores feito um porão escuro e úmido necessitando limpeza e dedetização, ao mesmo tempo que as paredes atrativas forçavam os anjos asseios a apreciar a beleza escondida por trás de tantas teias.
Dóris. Minha querida Dóris. Disse e foi feliz ao dizer:
— Percebe o quão difícil é ficar olhando por muito tempo os olhos de outra pessoa?
— Sem dúvidas, é difícil. Ainda mais quando... — Lembrei em um rápido filme os antigos resultados de quando disse com precisão tudo o que sentia e pensava, e silenciei-me.
— Diga.
— Não. Deixa para lá.
— Por favor.
Rasgando meu coração, vi-me na obrigação de dizer, ela pedia com tamanha sinceridade.
— É mais difícil ainda fitar os olhos de uma outra pessoa, quando eles se apresentam tão bonitos.
Arregalou um sorriso esplendoroso, atravessando meu cadáver como uma ventania mortal trazendo estilhaços da construção de um último tributo ao amor. Levou uma das mãos ao cabelo trazendo-os para trás, bagunçando-os, com uma maestria esquecida entre os sábios.
Apontei para rocha onde ela estava sentada anteriormente e perguntei:
— Não quer sentar? Para esperarmos?
Tardou responder, e com um sorriso envergonhado abrindo-se além das nuvens, piscou desenfreadamente para sair da hipnose. E respondeu engasgando-se com as palavras:
— Ahh, sim. Sim. Vamos sentar.
De plano de fundo um casal e Miles Davis na sua peregrinação ao som do épico Kind of Blue.
Esfregando as mãos contra as coxas polpudas, deu continuidade ao nosso diálogo exponencial.
— Chegou cedo.
— Olha quem fala, já estava aqui quando cheguei.
Um breve riso.
— Quis chegar mais cedo para não atrasar — Quando ela disse, houve uma consonância de preposições.
Dei uma trégua, estávamos ligeiramente travados. Olhei os postes de luzes e com um olhar penetrante e voraz, apreciei de uma certa distância os lábios levemente desenhados, rubicundos e suntuosos, em cada pequena curva minha alma sofria um acidente. Líbia olhava as pastagens e as estrelas que vagavam pelo céu enegrecido.
Alternando minha percepção entre os cantos de seu rosto, disse com uma clareza maior que a Lua.
— A noite está tão bela hoje. Sempre gostei de apreciar a Lua. Houve uma vez, em uma hora insone, que levantei da cama sem sono e para suprir meu desalento, recorri a madrugada e com a imagem de uma amada distante refletida na Lua, centralizei-a, e ali fiquei com os olhos brilhando sendo confundidos com as minhas lágrimas. Ela me abraçou. Um abraço reconfortante, foi então que chorei em seus braços. Pergunto-me se alguém ao olhá-la focaliza em seu pensamento os meus passos.
Atenciosos na Lua, imaginávamos a cena, reconstruindo-a passo a passo, Dóris aprofundou:
— Era um dia muito frio, e eu estava deitada, e a minha cama dá para uma janela, chorei por tanto tempo abraçada a um coração que um ex-namorado havia me dado, estava desestruturada, pensei que a minha vida ia acabar, e tudo estava por um fio... A Lua estava presente e eu me perguntava o mesmo, será que ele ainda lembra de mim? Fui apenas mais um L na sua agenda. Joguei o coração de pelúcia no chão e me descabelei, os poemas que fiz pra ele estavam todos no chão, fotos e retratos no lixo, minha mãe invisível dormia ao meu lado... — Virou-se e contemplou a cor verde que era roubada pelo seu brilho intenso, nasceu para ser estrela do mar e transmutou-se em uma radiante estrela cadente — Mas, a vida segue, não é verdade, Davi? Não voltemos ao passado, o que de novo ele irá sussurrar aos nossos ouvidos?
O descontrole apoderou-se do meu corpo e os lábios a minha frente pareciam me clamar. Não me pergunte como sei, todavia quando um desejo torna-se fortificado, sabemos com a insegurança ou o descontrole se ele é recíproco, o apreciar da bela não reteu-se apenas ao meu murmurar apaixonado, quando a cupidez por uma boca toma o domínio do corpo, não há como fantasiar um anseio ultrarromântico.
Os dois corpos foram ao encontro, elevaram-se, com uma linha imaginária fomos puxados por uma irrupção sagrada... Quando uma frase merece algo maior que a exclamação, o que uso? Um gritou ecoou pela fazenda afora, titubeando nossos corpos tão ansiosos. Impedindo um beijo quente e orvalhado!
— Líbia!
Uma voz masculina. Em passos apressados, o pai e a mãe da minha confidente moral e sentimental, aproximavam-se. Sua mãe com as mãos na cintura, indignada, disse:
— Esperamos você para jantar até agora! O que está fazendo aqui?!
Seu pai intrometeu-se:
— Ainda é cedo para o passeio e afinal, quem é esse garoto?! — Um olhar recheado de deboche.
A majestosa respondeu:
— Esse é o Davi. Um amigo meu. Davi, esse é o meu pai. Ronaldo, Davi, Davi, Ronaldo.
Apresentou-nos. Estendi a mão para um cumprimento, hesitante, foi educado, apertando-a. Para contornar o momento, usei a expressão:
— Um prazer conhecê-lo, Ronaldo.
Então, Líbia apresentou sua mãe:
— Essa é a minha mãe, Mariana. Uma mulher virtualística.
— Uma mãe muito bonita a sua.
Inflei o seu ego e ela abriu um sorriso inflado, agradecendo:
— Obrigado, querido.
Guarde minhas palavras, um elogio iniciante a mãe é estritamente necessário, pois se houver conflitos entre o pai e a filha, a mãe sabe o melhor lado para ficar, se ele gostou do garoto (no caso, eu), há maior probabilidade de persuadir o pai. Em latim, strategĭa.
Líbia, preocupada, questionou os pais:
— Pais, o que vão fazer agora?
Ronaldo tomou frente.
— Agora já vamos ficar aqui, descemos toda corredeira.
Desanimei. Confesso. Ficamos silenciados até a chegada do bonde, gradativamente o ponto foi usado como referência para aglomeração de pessoas.
Subimos aos trancos e barrancos, repousamos e avante fomos.
Ela havia mesmo dito a verdade. A fazenda se demonstrava muito mais bela do que antes acreditava. Animais em seus mais altos níveis cármicos, casais emaranhados em carícias decentes (e também nas indecentes), beijos nos bancos dispersos, coitos ocultos e tributos a rainha.
Almas vagantes em um bonde flamejante. Após passarmos um buraco e a locomotiva titubear, senti um toque miúdo na minha mão que estava apoiando meu corpo no banco. Mirei feito um velocista, e avistei Dóris entrelaçando seus dedos junto aos meus, apertamos fortes, para constatarmos a realidade. Vislumbramos velozmente o brilho estampado em nossos olhos e voltamos a apreciar o passeio.
Meu corpo dividindo temperatura com o ambiente, o calor que residia caía para um frio atrito que fazia a mais débil vaca rugir (mugir). Apoiou sua cabeça no meu ombro, confortando-me. Claramente não se importava se seus pais estavam atenciosos em seus movimentos, não queria mais pular no jogo escuro, eternizado e vital, queria se agarrar em uma mão que não fugisse de seus prazeres, e lá estava eu, voluntariando-me.
Um garoto-homem para dias frios, para noites calorosas, para crises de meia-idade e idades avançadas para lembrar os “bons tempos”.
Lá estava eu, sedutor para os melhores beijos, sensível para os mais sórdidos segredos, silencioso para ter o peito adormecido pelos cabelos bagunçados, dispersos e levadiços.
O garoto-homem para elogiar o seu corpo, acariciar suas pernas, massagear seus pés, falar de amor e sussurrar anedotas ou piadas sujas.
Aquele que ensaboaria seu corpo quando pedisse e também sentiria o gosto de sua pele quando lençóis e fluídos corporais formassem uma passeata pelo admirável corpo feminino, poderia ser o médico para conhecer as suas curvas, o inocente para retirar seus cravos e o amigo para sanar suas feridas.
Aquele que sentiria o cheiro do suor numa noite calorenta, e inebriado pela fragrância preferiria 10 mil vezes o olor do que um perfume francês.
O homem que não mentiria quando dissesse: “Eu te amo”.
Após um curto passeio aos meus olhos, paramos e havia chego a hora da despedida. Esperamos um dos lados começar, após delongas, deixei a minha alma explanar.
— Não é segredo para ninguém. Parecemos duas crianças descobrindo o mundo. Você é uma das meninas mais incríveis que já conheci.
— O que te leva acreditar nisso?
— Quando a pele esfria, e duas peles distintas se tocam, um calor intenso queima-nos por dentro, o corpo aciona o estado de emergência, como se um tigre estivesse correndo constantemente atrás de nós, um receio, um medo de dizer algo que entristeça... Neste momento, você pode ter certeza que conheceu um anjo, que ainda se desconhece. E que não encontrará alma semelhante em lugar nenhum.
Sorriu. E após dois passos na minha direção, mostrou o seu lado:
— Considere meu confidente sentimental, Davi. Seja Dóris, ou seja Líbia, me senti vazia e sem nome quando nos despedimos hoje, no lago... Tive certeza que algo havia acontecido, seus olhos mudaram de cor quando falei com você pela primeira vez. Quando voltei para o chalé, escrevi sobre...
— Nós?
— Nós.
Na ponta dos pés aproximou-se do meu rosto, beijando minha bochecha no local mais sensível, remexendo meus sentidos. Aguçando o sexto: Amor. Amor. Amor.
Questionei:
— Nos veremos amanhã?
— Jogarei uma moeda no poço dos desejos, espero que o gênio me ouça.
Foi andando para trás, se despedindo contrariante, como se uma lâmina oculta perfurasse seu corpo conforme se distanciava do meu. Dei as últimas palavras:
— Tenha uma boa noite. Bons sonhos.
Respondeu com um tilintar de dentes, virou-se e se despediu na penumbrosa madrugada que se iniciava. Incrível como quatro dias na metrópole não supriria o que aprendi em um dia no campo.
Soldados rasos aprendem com sua mortalha e preparam-se para voltar para suas casas, com a esperança de encontrar o seu amor repousando em sua cama.
Eu ainda estava naquele abraço, meu corpo andava mosqueado de vermelho, e o meu espectro ficava para trás, naquela curva estreita e abarrotada. Conforme saía da bolha protetora, voltava para o Chalé, onde eu tinha a máxima certeza que nada de bom me esperava. Lembra-se? Fugi. Contrariando uma imposição clara e objetiva.
No entanto, poxa... Tudo deu certo, e só por isso, a minha vida valeu a pena.


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