Os olhos violetas escrita por Flávia Monte


Capítulo 1
Capítulo 1 - Eu não sou cega!


Notas iniciais do capítulo

"O pior cego é aquele que não quer ver"



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Espaço não fica vazio.

Isso era tudo o que eu pensava quando abri os olhos nessa manhã.

Minha professora de física não tentou ser filósofa ou algo do tipo, só me falou o óbvio. Também disse que dois corpos não ficam no mesmo espaço. Acho que vou acabar levando isso para vida, afinal, essa professora é minha mãe.

O sol se escondia atrás do horizonte. Poderia dizer mil coisas lindas com o mesmo sentido, porém o que importa é: Já era noite. A chuva batia contra a janela da varanda e ao longe ainda dava para ouvir os lobos uivando. Não era a primeira, e provavelmente, nem a última vez em que observava o horizonte. Lobos? É meio estranho dizer isso, pois muitos nunca os viram. Morar por um tempo no interior me provou que não sei muito sobre a natureza.

— O que está fazendo acordada até agora? - Perguntou minha mãe

— Não entendo porque, logo amanhã, teremos que nos mudar! Eu já estou começando a gostar daqui e agora temos que ir, do nada...

— Feche a janela, Suzanna, está frio. E vá para a cama, amanhã acordaremos cedo. Você ficará na casa de sua tia, já lhe disse isso faz quase um mês.

Eram dez horas quando finalmente dormi, mas a água da chuva ainda caia quando acordei. Minha mala já estava pronta no canto do quarto. E eu até já havia ouvido coisas sobre a tia Rosários, quando eu era mais nova. Meu pai dizia que a tia Rosa era loucamente apaixonada por todos e que sempre gostou de uma aventura. Já a minha mãe apenas dizia que minha tia se comportava estranha às vezes, que ela era diferente. Só isso. Tia Rosa não era minha tia de verdade, ela era a tia do meu pai.

Mamãe disse que se eu precisar de algo, ligar para ela, que talvez não atenda por estar na Noruega com sua companhia de dança, mas tentará sempre me ligar.

— Rápido, rápido, não quero pegar trânsito para a casa da Rosa! Sua tia já está esperando, vamos, vamos. - Minha mãe, Rachel, colocou as malas no carro e me esperou.

Beijei delicadamente a madeira da porta de nossa casa e fui para o carro. Meu pai havia me ensinado a dar um beijo em cada cômodo da casa antes partir, pois assim teríamos sorte. Porém, não foi isso que ele fez antes de ir embora.

A viagem foi longa e cansativa, ficamos ouvindo o rádio e uma vez ou outra cantávamos juntas. Sentia saudades do papai toda vez que olhava para minha mãe. Ela sorria tanto quando éramos nós quatro. Meu pai, minha mãe, eu e Bluddy, nosso cão. Eu tinha apenas nove anos quando ele se foi.

Gostava quando ele me fazia dormir com nosso cachorro, na realidade, amo aqueles momentos. No dia que ele se foi, Bluddy morreu também, não de imediato, mas algum tempo depois. Mas uma águia, que me seguia desde pequena não se foi. Aquela ave idiota que me assombrava e dava medo. Dei o nome dela de "Remendo", apesar de não combinar muito.

Essa águia era linda, eu admito, mas ela é tão estranha. Seu comportamento de ficar parada na frente da minha porta e encara-la era o que meu pai chamava "a encarada mortal". Sempre ria disso, quando pequena. Apenas quando pequena. Não tinha graça, mas meu pai me fazia rir. Olho pela janela e vejo-a, com suas lindas asas, planando bem perto do carro.

— Quero que se comporte, Suzanna. Sabe que não poderá dormir tarde - Minha mãe disse ao estacionar - E lembre-se, sua tia é um pouco esquisita, mas siga as regras dela!

Parecia até que eu não me comportava. Ajeitei meus cachos castanhos em um coque mal feito. Demorou um pouco até que eu tivesse o efeito planejado, pelos cachos irem até minha cintura e a minha paciência para arruma-los não ajudava. Olhei-me no espelho, meus olhos violetas nunca estiveram tão chamativos quanto agora. Coloquei os óculos de sol, para esconde-los.

Meu pai tinha os olhos parecidos com os meus, mas eram mais escuros. Um tom roxo uva. Nunca os escondia, nunca mesmo. Eu diria que era por que eram bem escuros e poucos novam sua coloração verdadeira. Dizia que os meus olhos eram como pedras Ametistas, e eu adorava.

— Nossa, que felicidade encontra-la - Veio uma moça, de no máximo quarenta anos, na minha direção - Sua tia ficará tão feliz em vê-la - Ela me abraçou.

— Sou Suzanna, quem é você? - Perguntei com a melhor delicadeza que consegui, olhando para os traços profundos que havia em seu braço. O que não foi muita, já que meu mau humor estava intensificado essa manhã, e minha ousadia também.

— Sou Ima. Amiga de sua tia - Ela sorriu. Seus olhos estavam cada vez mais negros, me fitando com curiosidade. Não havia afeto, nem desdém. - Falarei com sua mãe e em seguida ela colocará sua mala em seus aposentos. Já a sua tia está a sua espera na sala de jantar.

Pela forma que me tratava, pensei até que Ima fosse uma empregada e não uma amiga. Sei que amigos também ajudam e tudo o mais, contudo, Ima era formal e agradável. E apesar de sua aparencia não mostrar muito, deduzir que tinha em média uns cinquenta e poucos anos. Vagando pelos corredores notei os móveis antigos porem, limpos e bem cuidados em cada cômodo. Não encontrei nenhum mordomo ou empregada pelo caminho, mas afinal, estamos no século vinte um. Deveria pelo menos haver alguém que limpasse aquilo tudo. Era uma mansão a casa de tia Rosa e eu não vi motivo para tanto.

Passando de porta em porta vi um quarto com uma placa escrita o nome "Logan" em verde. O verde era claro e chamativo, quase em neon. Deve ser meu primo, ou meu tio. Apesar de que se fosse meu tio, não acharia que teria um nome na porta. Nem que não dividisse o quarto com Rosários.

Vi uma moça adulta, com uma folha sobre uma longa mesa de madeira. É ela, notei. Tinha em média de quarenta ou cinquenta anos, a mesma idade de Ima talvez. Era magra e usava um vestido azul escuro, um pouco justo, com a estampa de poucas flores brancas.

— Tia Rosários? - Cheguei mais perto da senhora, até o instante em que ela me olhou.

Seus olhos eram brancos. Minha tia é cega, pensei. Mas como ela está fazendo palavras cruzadas? Será que a folhinha é em braile?

— Sim, querida? - Ela fechou o caderno e sorriu com seus lindos dentes para mim. - Nossa, Suzanna querida. Alguém já te disse que tem os olhos do seu pai? Talvez um pouco mais claro. - Nesse momento notei que havia tirado os óculos para vê-la melhor. – Ok, bem mais claros e vibrantes! São perfeitos para um rosto tão fino e sensível como o seu.

— Espera, você me enxerga? - Eu perguntei um pouco   incrédula e mais alto que o preciso.

— Porque não enxergaria minha querida? - A voz dela estava mais na minha cabeça do que ali na minha frente - Por acaso você é um fantasma? Espírito? Assombração? Ou até mesmo apenas uma sombra?

— Não. Mas... É que seus olhos... Eles são claros... Tão brancos... - Eu sorri sem graça e meu humor mudou de irritada para envergonhada.

— E por isso deduziu que sou cega? - Ela sorriu para mim. - Então está querendo me dizer que vê tudo lilás, meu anjo? - Quando neguei com a cabeça ela continuou. - Enfim, vejo perfeitamente. Minha íris é branca e isso não significa nada. É apenas uma cor. - Ela estendeu o braço indicando o sofá. - Sente-se e tome uma xícara de chá comigo.

Minha mãe chegou pouco tempo depois e disse que já estava para sair. E eu ficaria sozinha. Eu perguntei por que ela não ficava e Rachel disse apenas que a companhia de dança precisava dela. Minha mãe dava aula de dança em todo o mundo para garotas com no mínimo a minha idade. Quando eu disse-lhe que me recusava a dançar ela ficou decepcionada comigo.

Eu disse apenas que eu não gostava da competição e das normas que tinha que seguir. Regras e cobranças eu já tinha demais, não preciso de algo assim. Mas a verdade era que a dança era o que meu pai mais apreciava, e sem ele aqui para me ver dançar, perdeu toda a graça. E esse tipo de lembrança dava dor no coração e na alma.

O táxi da minha mãe chegou e já a aguardava.

— Está na hora, Rachel. - Disse minha tia, gentilmente apontando para o carro.

— Quando eu chegar ligo para você minha filha. - Disse minha mãe entrando no carro e ignorando Rosários.

Pouco tempo depois que ela se foi eu ainda olhava a rua vazia. Minha mãe não admitia, mas também não negava quando eu lhe dizia que ela me afastava por causa das lembranças. Já que a cada dia que se passava eu me parecia mais com meu pai.

— Suzanna, meu bem, não quer entrar? Quero te mostrar meu lugar favorito da casa. - Disse Rosa entrando em casa e subindo até o terraço. - A vista daqui não é fenomenal? - Ela pergunta com um sorriso mostrando orgulho - Sabe, aqui é um ótimo lugar para pensar.

Os olhos brancos dela me dão medo, esse foi meu primeiro pensamento.

— Me desculpa tia, mas, porque seus olhos são assim? Tão claros? - Perguntei observando as casas a minha volta.

— Não precisa de eufemismo, minha jovem, pelo menos não comigo. Meus olhos são brancos porque puxei essa característica da minha avó. Diziam que ela era vidente.  – O orgulho estava estampado em suas feições.

— Está dizendo que sua avó previa o futuro? - Perguntei me ajeitando no banco de metal, pintado de branco e cheio de detalhes, e agora admirando o entardecer.

— Isso também, mas minha mãe dizia que ela podia ver seres que algumas pessoas não vem. – Ela disse sorrindo para o céu.

— E ter os olhos dessa cor modifica em nada a sua visão? - perguntei agora percebendo cada som da natureza.

— Atrapalha a sua? - neguei com a cabeça - Mais alguma pergunta? - neguei de novo. - Ótimo, irei agora te mostrar o seu quarto.

Minha tia sorriu e me encaminhou até uma porta de madeira, tão simples quanto as do resto da casa. Mas, quando abri a porta, um cheiro de avelã veio até o meu nariz. Tudo era perfeito. Parecia feito para mim esse quarto. Era até mais bonito que meu anterior, pensei.

Os móveis de madeira antiga, entalhados com detalhes extrodinários. Todos pintados com branco e havia um pouco de preto também. Tinha flores em alguns vasos e a cama de casal estava bem feita.

Desde o momento em que minha mãe foi para a viagem até o agora, o tempo havia passado surpreendentemente rápido. Eu olhei para o relógio e os dígitos vermelhos piscavam.

21:47

Minha mãe disse que ia ligar assim que possível, porque ainda não me ligou?

Ouvi batidas na porta e a cabeça de um garoto, quase da minha idade, talvez um pouco mais velho, surgiu. Era moreno, isso mesmo com a fraca luz eu notei, tinha maçãs do rosto firmes, um corpo exuberante e o queixo um pouco quadrado. Ele abriu um enorme sorriso reluzente.

— Oi, você deve ser Suzanna, estou certo? - Disse o forte rapaz - Sou Logan.

— Ah, pensei que logo te conheceria. - Eu disse levantando da cama e indo me encontrar com ele na porta do quarto. - Você deve ser meu primo, eu vi seu nome na porta de um dos quartos.

— Que bom. Isso significa que já sabe onde estarei caso precise de algo. - A essa distância podia comparar nossas alturas e era aparente que Logan tinha mais do que 1,80 metros, pois preciso olhar muito para cima. E perceber também que seus olhos eram azuis claros com pintinhas verdes .- E a propósito, não sou seu primo.

Olhei para Logan e notei que ele era, realmente, diferente da tia Rosa. Não se pareciam em nada. Podia até não ser de sangue, contudo, apenas haviam eles dois naquela casa, então algum parentesco devem ter.

— Você é o que meu, então? - perguntei

— Ainda nada. – Piscou. - Vim lhe trazer um prato de comida fresca. Mesmo a Sra. Rosa não me permitindo comer no quarto, ela deixou que você faça isso hoje. O que é bem injusto comigo.

Nesse momento notei o prato na mão dele, que continha um hambúrguer com batatas fritas. Comida fresca?

— Bem, foi isso o que comi. Não sabia até agora pouco que teríamos uma garota entre nós, então deixei um pouco da minha comida para você. Se não se importar em comer gordura. - Logan passou os olhos pelo meu corpo, demorando um pouco e analizando,  até chegar ao prato que agora estava em minhas mãos.

— Certo - Eu apenas disse, colocando o prato na cama e pegando o hambúrguer com as mãos. Meu humor havia se alterado de novo, naquele instante que percebi que sozinha estou. Olhei para a porta ele ainda estava lá, com o rosto aparentanddo surpresa. - Não tentando ser grossa nem nada, mas é isso? Posso voltar para o que eu estava fazendo?

— O que estava fazendo? - Nessa o garoto havia me pego, não havia feito nada hoje além de olhar pela janela e contemplar o horizonte, mais uma vez. Notando que eu não iria responder, Logan continuou a puxar assunto.  - Amanhã iremos à minha escola. Pelo visto a Sra. Rosa já fez sua inscrição e tudo. Não se preocupe, só há uniforme na educação física.

— "Iremos"? - perguntei enquanto comia o hambúrguer. Calma. Educação Física?

— É - ele respondeu me olhando demoradamente, ainda com o sorriso no rosto. - Seremos da mesma escola. Sabe o que é isso? Escola?

— Não sou tapada! Apenas por não estudar em uma na outra cidade não significa que eu seja ignorante, seu idiota - Dei um soco em seu braço, Logan fingiu doer, sorrindo. Para ter essa reação então Logan sabe algo sobre mim, sim.— Já estudei antes em uma escola. Em algumas.

Achei que ele ia se irritar com meu soco mas apenas continuou sorrindo, o que me irritou mais do que pensei.

— Certo. – Ficou em silêncio por alguns segundos e concluiu.  - As 6:30 desça e prepare seu café da manhã. Boa noite.

E com essas últimas palavras Logan saiu do quarto e deixou um espaço vazio em seu lugar. Confesso que é bonito e será como um irmão mais velho que eu nunca tive. Com esses pensamentos fui levada por Orfeu, para um sono profundo.

Acordei um pouco antes da hora que Logan me disse, sem ao menos precisar do despertador. Isso é raro. Coloquei uma blusa branca justa, uma saia jeans e um colete preto. Desci para a cozinha, fritei dois ovos, despejei o leite no copo e bebi. Poucos minutos depois senti um cheiro já conhecido de margaridas mescladas com canela. Logan estava para chegar.

— Já está pronta e comendo? – Perguntou.

— Sim, porque não estaria? - Eu sorri, ainda com muito sono. - Você vai assim para a escola? - Ele usava uma blusa azul, que ressaltava seus olhos, uma bermuda larga e chinelo.

— Qual o problema das minhas roupas? – Logan se sentou no sofá comigo, bebendo leite. - A sua roupa que é problema. Pelo menos não sou eu que pareço está indo para um concurso de moda. - Ele sorriu de uma forma não tão gentil, até meio aflita.

— Por quê? - perguntei - Está tão ruim assim?

— Até que em você combina, só espero que você não entre no grupo das lideres de torcidas. Elas me dão arrepios. – O garoto colocou o copo na mesa, sem colocar nada por baixo e aquilo me incomodou. - Você está muito patricinha.

— E se eu for? Será muita humilhação morar com uma? – perguntei, já achando graça de todas as reações de seu corpo.

Ele colocou a mão na cabeça como se estivesse pensando seriamente na pergunta. Depois virou o rosto com um sorriso de canto de boca.

— Não, talvez seja até um privilégio. Contudo, terá algumas garotas que não gostarão de você. - Como se notasse que eu não entendi bem o motivio, Logan disse – Pois, você chamará atenção de muitos idiotas jogadores de futebol americano.

— Futebol? - perguntei e ele confirmou com a cabeça - E você joga o que, para não gostar deles? Xadrez?

Percebi que Logan me ignorou, pegou a chave de seu carro, e saímos de casa. Como eu não havia notado a Picape prata dele bem ali na frente da garagem? Ela é linda. Ele abriu a porta de carona para mim e entrou pelo outro lado dando a partida no carro.

— Lutador. – Falou, depois de ter suspirado e se encostado no banco de couro.

— Como?

— Sou campeão de Jiu-jitsu. - Ele sorriu, mas não muito animado. – Ninguém é capaz de me ganhar, acredite.

— Certo... - Eu disse prolongando o “R” e mexi em minha bolsa, pegando uma escova de cabelo. - Então quando chegarmos à escola eu vou para onde?

— Ah, falando nisso. - Logan tirou um papel do bolso e me entregou - Esse é seu horário escolar. Fiz o favor de perguntar a Sra. Rosa quais eram as suas aulas e marquei o que faremos juntos.

— São quase todas as aulas! – Exclamei ao ver tantos traços de marca-texto distibuidos pela folha.

— É, não me culpe, foi a Sra. Rosa quem me deu a lista e pediu para eu te ajudar a fazer amigos. Principalmente, porque todos vão tratar você como uma cega, enquanto usar esses óculos ai. - Ele apontou para meu rosto. – Sem preconceito nenhum, eu tenho amigos cegos, surdos e mudos. Não ligaria se você fosse qualquer um desse, só estou dizendo que existem pessoas que ficam um pouco incomodadas e comentam.

— Tanto faz. - Eu disse, não sabendo muito bem se eu discutia com Logan, a favor dos cegos ou não.  - Voltando a conversa anterior... Você luta, então? - Olhei para os braços fortes dele, até que faz sentido.— Qual seu apelido nas lutas? Pelo o que vejo em MMA, sempre existe um nome mais utilizado.

— Logan "Parafina".

Eu ri muito alto e senti que ele olhou para meu rosto sem nenhum pingo de humor. Qual foi, isso não é nome de lutador, né?

— Qual é a graça?

— Você pelo menos surfa? - Olhei pela janela para uma escola enorme, essa é minha nossa escola, suspirei. Há uma sigla na frente do portão, contudo, nada me vem a mente quando as leio. JEML

— Sim, óbvio, e sou muito bom - Logan estufou o peito.

— Te ganho fácil. - Eu ri e cantei vitória antecipada. – Qual o sentido de seu nome de luta seja algo relacionado a outro esporte? É como se um jogador de basquete seja reconhecido por saber atirar com arco e flecha. Não faz sentido.

— Aposto para ver se você é capaz. E claro que faz sentido. - Ele sorriu sem se atingir com a minha crítica, ou até a ignorou, e estacionou o carro. - Hoje tenho treino então você terá que arranjar um meio de voltar para a casa, ou se preferir, pode assistir minhas lutas, e depois vamos juntos. - Deu de ombros, saiu do carro dando a volta e parando na minha porta, a qual eu já havia aberto. – Eu ia abrir, sabe?

Quando entramos na escola tocou o sinal do primeiro tempo. Química. Olhei para o horário e eu não teria aula com Logan nesse tempo. Despedimo-nos, mas antes me mostrou onde seria a aula.

Logan estava completamente certo. Todos me olhavam com pena. Todos achavam que eu era cega. Principalmente, por eu estar de óculos de sol no corredor, onde a luz era fraca e um pouco fria.  Como se eu fosse precisar de ajuda, um garoto, Bernardo, se apresentou para mim, perguntou onde era minha próxima aula e também qual seria o meu nome. Quando disse, o garoto colocou minha mão em seu braço e começou a andar me guiando.

A princípio achei interessante e até galanteador. O garoto era loiro, alto e seus braços eram fortes. Sua mão um pouco áspera, percebi isso quando me cumprimentou. Bruscamente tirei minha mão do braço dele, por finalmente entender do que aquilo se tratava.

— Não preciso da sua ajuda, obrigada. - Disse ríspida e com a voz embreada de mágoa.

— Só estou sendo amigável, garota. - Olhou em volta depois acenou para mim, como se quisesse saber se eu estava o vendo.

Olhei friamente para ele desejando acertar sua cabeça com alguma coisa. Mesmo que esse idiota não veja meus olhos. Neste instante Remendo apareceu e cravou suas lindas garras no braço do Bernardo. Depois de tantos gritos do garoto, Remendo se instalou sob meus ombros e lá ficou esperando. O garoto, tão chocado quanto eu, enxugou o sangue do braço com as mãos. Seu cabelo loiro estava um pouco sujo também e encharcado de suor.

— De onde esse bicho apareceu? - Pareceu que Bernardo queria perguntar outra coisa. Eu consegui o ouvir repetir isso em um sussurro, só havíamos nós nesse momento no corredor. Entrei na sala indicada por Logan, e ignorei os acontecimentos. Não que isso fosse normal de acontecer, o que não era. Contudo, por mudar muito de moradia, mudei também onde estudava. E eu nunca sei quanto tempo fico em um lugar só. Então, não faz diferença se o loiro iria gostar de mim ou me odiar para o resto de sua vida.

Assim que o professor me apresentou a turma, me sentei em uma das últimas cadeiras, perto da janela. Evitando manter contato visual com o resto dos alunos. As mesas da sala de química eram divididas em duplas. Senti meu ombro gelar, ao perceber que a águia continuava  ali. As garras sujas de sangue mancharam minha blusa, porém ninguém pareceu notar.

— Sai daqui, ave idiota - Sussurrei e ela saiu pela janela. Sem ninguém nota-la, de novo.

A cada minuto que se passava eu olhava para o relógio em meu pulso e quando não o olhava eu mirava meus pensamentos para fora da janela. Tudo naquele lugar era desconfortável, sem ter o meu novo irmão ao meu lado. O óculos de sol, ao menos, escondia um pouco do meu rosto, assim não precisei me preocupar se eu estava com cara de sono ou não. Não dormi muito bem essa noite.

Minha mãe havia me ligado minutos depois de chegar ao aeroporto, na Noruega. Disse que estava tudo bem e que qualquer mudança ou novidade me ligaria de novo.

Logan disse que os jogadores de futebol gostariam de mim já que chamo atenção, mas ele não se lembrou de todos acharem que sou cega e por isso me olharem. Observo que a cada instante me encaram e me avaliam. Até o professor me olha diferente por aqui.

Toca o sinal. Tenho quinze minutos antes do próximo tempo. O numero do meu armário é 10137. Pelo visto tem muitos alunos nessa escola. Cheguei perto do armários e olhei do cadeado prata, em que eu colocava a senha, ao corredor. E percebi que era perto da aula de espanhol, a qual era meu próximo tempo, com Logan.

— Ei, Su - Logan me chamou antes que eu desse um passo para dentro da sala. - Teremos essa aula juntos, quero te apresentar ao meu grupo. Todos são bem legais e divertidos, então tente ser também, Ok?

Entramos juntos, eu fui me segurando na mochila preta dele para que minha distração não me derrubasse no chão. Sentamos no fundão. Pelo menos aqui ninguém vai me notar.

— Pessoal, peço a atenção de vocês - Todos os alunos que estavam se ajeitando nas cadeiras olharam para Logan. Esse aqui seria o seu grupo?— Essa aqui ao meu lado é a mais nova membra dessa classe, sugiro que sejam legais com ela. - Ele olhou para mim e disse baixo - Levante-se. - Ouvi alguns sussurros, assovios em que eu identifiquei serem dos jogadores de futebol. Então, Logan continuou, agora se dirigindo aos outros disse - E antes que perguntem ou fofoquem, ela não é cega, nem nada. Nem precisa de ajuda para chegar a nenhum lugar - Eu senti todos os alunos olhando para mim - Ela apenas está acostumada com outro clima, sem muito sol como este - Neste momento, apontou para a janela, e pude ver o sol surgir.

Não havia nem sombra de sol, hoje no céu, quando saímos de casa. Após eu me sentar, Logan foi até a frente da sala, apontar seu lápis. Nesse momento, um dos jogadores veio se sentar ao meu lado.

— Nossa, você é linda sabia? – Um jogador me disse me olhando com cautela. E também com fome. - Qual é o seu nome?

— Quem quer saber? - Eu disse olhando na direção dele do mesmo jeito.

— O lançador do time de futebol. - Estufou o peito, como Logan havia feito quando se gabou, e depois apontou para os amigos dele. - E o time de futebol, também. - Disse dando de ombros, e voltando a olhar para mim.

— Me chamo Suzanna. – Comentei, depois de um momento em silêncio.

— Me chamo Kevin. - Sussurrou e se inclinou para falar no meu ouvido, como se aquilo fosse um segredo.

Segundos depois Kevin, pediu e implorou para Logan soltar sua orelha. Depois que Kevin se levantou e ficou na minha frente, agora olhando para o lutador. Não era ódio estampado em seu rosto, apenas desentendimento e talvez burrice.

— Qual é a sua, cara? - Ele tocou em sua orelha, que notei estar vermelha. - Estou apenas conhecendo a novata. Sendo legal.

— Não me interessa - Disse Logan - Se coloque no seu lugar e fique com o seu bando de subordinados primatas. - Cuspiu as palavras como se fossem queimar a garganta.

Kevin se retirou como se nunca tivesse visto um cão raivoso.

— Ei, porque puxou a orelha do Kevin? - Perguntei incrédula. – O que o garoto fez demais?

— Porque ele estava no meu lugar? - Logan quis saber, ignorando-me. - Não importa. O Kevin é má companhia, só isso, quanto mais for a distância, melhor.

— É só porque ele é jogador de futebol e vocês tem suas rixas?

— Não, é porque não gosto especificamente dele mesmo. - Logan deu de ombros, como se fosse indiferente, e se sentou. - Tem uma coisa que eu não te perguntei...

— Só uma? - Perguntei rindo e lembrando que o conheço desde ontem a noite.

— Tá, algumas. Contudo, uma não sai da minha cabeça. Porque você não tira esses óculos escuros? - Ele disse e eu me encolhi na cadeira

— Porque não quero. – Quase reclamei como um bebezinho, porém, consegui me conter.

— Responde direito. - Logan começou a escrever o que a professora estava ditando. Peguei meu lápis e também prestei atenção.

— Porque eles são diferentes. - Eu disse sem olha-lo

— Eles são lindos, se é isso que te incomoda. - Ele sorriu, mas eu não cheguei a ver isso acontecer, apenas notei pelo modo em que falou o fim da frase.

— Quando eu era menor, a maioria das crianças tinha medo de mim por causa deles serem... Hum, exóticos. E por outros motivos estranhos. - Sabia um ótimo jeito de mudar o assunto. - E você? O que foi aquilo?

— Aquilo? – Acredito que Logan fingiu duvida

— É! Aquilo! - Eu disse - Como fez o sol aparecer?

Ele riu e desconversou, focandosse no assunto “luta”. Começou contando sua primeira vez no ringue, depois passou para seus melhores golpes. E disse que a maior parte da luta é no chão então não tinha como mostrar os golpes na hora. Apesar de gostar do assunto e do espanhol que já dominava, ainda tinha algo de perturbador em Logan que eu ainda não tinha descoberto.

Depois de tantos momentos de estudo, era finalmente o almoço, Logan disse que depois teríamos artes e o professor autorizou que não participássemos da aula para que o garoto me mostrasse a escola. Por inteiro. Senti-me andando milhas e milhas pelo trajeto. Subi e desci tantas vezes na escada que meus músculos pareciam gelatinas. Será que precisava disso tudo? Ou é só para matar o tempo mesmo?

Eu precisava dar créditos ao meu "irmão", o qual estava se dando bem em me deixar a par das situações. Nem sei como sabia de tantas coisas que aconteciam na escola, mas tudo bem. Continuou a contar as fofocas da escola, apesar de eu não saber quem era cada um. Em nenhum momento ele citou Kevin, de novo. Mas comentou sobre um de seus rivais na luta.

Tocou o sinal de novo e fomos para o ginásio, aonde Logan ia treinar, falou com o seu mestre, Kisaro, e deixou que eu ficasse ali assistindo. Minutos depois Bernardo apareceu também, com uma tala no braço e foi falar com o mestre. Pude entender cada palavra que ele dizia. Entendi que queria lutar, não ia deixar seu adversário ganhar por causa de sua desistência.

Nesse momento ele me viu. Apesar de aparentar irritado não veio para cima de mim. Vi Logan junto dele alternando o olhar de mim para o Bernardo.

— O que está fazendo olhando com raiva para ela? – Meu amigo perguntou, com a voz carregada de superproteção.

— Isso não é da sua conta, Parafina , mas foi ela quem fez isso! – Bernardo, já irritado, apontou para seu machucado causado pela Remendo.

— Bem feito, Martes. - Logan veio em minha direção, após falar, mas não chegou tão perto. Sorriu e voltou para a luta.

Realmente, Logan era bom em Jiu-jitsu. Ele calculava cada movimento, isso era óbvio, mas seu tédio também era eminente. Depois de duas horas de treino o "Parafina" chegou perto de mim, tacou minha mochila dentro do carro e fomos para casa.

Logan não me fez perguntas sobre o Bernardo como também não comentou sobre o que as garotas andam dizendo. Ele disse que foi um bom dia para uma caipira desnorteada e que eu devia parar de usar óculos de sol, ao menos que eu realmente precise.

E com mais pensamentos fui dormir.


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Notas finais do capítulo

Este é meu primeiro capitulo, espero que tenham gostado!
Em no máximo duas semanas lançarei o próximo!



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