Heath Sparks escrita por ornitorrinca


Capítulo 3
Proposta




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/570820/chapter/3

Heath empalideceu. Sentiu o coração acelerar. Apenas fitava o chão, embasbacado, passando as mãos pelos cabelos desgrenhados. Após respirar fundo, voltou a olhar para o irmão. Entrelaçou os dedos das mãos, pousando-as em seu colo, e buscou as palavras.

— Morreu... de quê? - balbuciou, por fim.

— Overdose.

— Overdose?!

— De comprimidos para dormir. – concluiu Isaac, neutro.

— Então... Ele pode ter se suicidado?

— Ele não deixou nenhum bilhete, mas aconteceram coisas... ele andava estranho ultimamente. Tenso. Parecia ansioso com alguma coisa. Não posso sequer afirmar se estava em seu juízo perfeito. Cheguei a pensar que a depressão tinha voltado, mas já fazia tanto tempo... ele dizia que estava tudo bem, não me contava nada, então eu não tinha como saber o que se passava na cabeça dele.

— Sei – murmurou Heath, afundando o rosto nas mãos. Ninguém nunca sabia.

— O fato é que, excetuando o estado de espírito visivelmente perturbado dele, as coisas pareciam normais naquele dia. Mas na manhã seguinte ele não desceu para tomar café, e eu fui checar o que havia de errado. A porta do quarto dele estava trancada, eu o chamei várias vezes e nada. Então eu chamei o jardineiro, nós arrombamos a porta e o encontramos tendo convulsões, o pote aberto de comprimidos jogado em um canto. Então pedimos uma ambulância e, bem, o resto você já sabe. Quem deu a notícia foi o Dr. Mayhew. Acho que você se lembra dele.

Heath encarou o irmão, ainda perplexo. Não via o pai há muito tempo, mas, ao ouvir a notícia do óbito, teve de se controlar para não deixar as emoções aflorarem. Não conseguia imaginar Duncan, alguém tão comprometido com a vida e com todos que conviviam com ele, se suicidando sem mais nem menos. Sem avisos, sem despedidas.

Então, o aviador percebeu que Isaac, os cotovelos encostados na parede e as mãos unidas, sondava com os dedos uma pedra grande e verde encrustada em um anel de prata que adornava o anelar da mão esquerda.

O anel do patriarca.

—... Em seguida, fizeram a autópsia – continuava Isaac, suas palavras soando como ruídos abafados e distantes para Heath – E confirmaram que a causa foi, de fato, uma overdose – Ele olhou para o irmão. - Novamente, cortesia de Mayhew.
 
— Comprimidos para dormir – resmungou Heath, débil – Isso não faz o menor sentido... – Depois, lembrou-se de uma coisa. – E onde está a megera nessa história?

Isaac ergueu uma sobrancelha, praticamente lendo os pensamentos do irmão.

— Ela tinha ido ver o Ballet Ascendare, em Abella.

— Ah – disse Heath, frustrado. – Cheguei a pensar que ela o teria...

— ...matado, certo? Mas você foi direto ao ponto. É sobre a herança que eu quero falar.

— Oh. Tem um testamento envolvido?

— Sim, tem sim. Ele tinha feito um testamento há um tempo, e vamos marcar uma audiência para tomar posse oficial dos bens.

— No caso...

— Ele deixou tudo para ela. - ao ver a expressão estupefata de Heath, Isaac prosseguiu: - Bom... não tudo. Na verdade, eu cheguei a visitar o aconchegante imóvel que ele supostamente deixou para você e eu, na Alameda Sorumbática. É a casa assombrada de Moebius.
 
— "Supostamente". Eu estava pensando nessa palavra também.

Até compreendia o fato de que o pai não deixara nada para ele; afinal, ele o abandonara... Mas Isaac? Apesar de Heath considera-lo uma companhia não muito agradável, o irmão ficara ao lado do pai durante os últimos anos, certamente cuidando dele e lidando com as imposições da madrasta - das quais Heath havia escapado.

— Esse é o xis da questão. Junte-se a mim.

— ...espera, quê? – indagou o outro, franzindo a testa.

— Está claro que há alguma coisa errada. – declarou Isaac, conciso. - Por mais que estivesse louco de amor pela megera, nosso pai não nos deixaria à deriva enquanto ela vive uma vida de ostentação... É estranho demais. Talvez o documento tenha sido forjado. Talvez tenha alguma chantagem envolvida. Se pudermos coletar provas de que deveríamos ocupar o primeiro lugar no processo de transmissão de bens e exibí-las antes da audiênca, desbancaríamos a megera e a jogaríamos na sarjeta, como deveríamos ter feito há muito tempo. Por tudo que ela fez a nós. A nós e a... você sabe.

— Sei. – a voz de Heath tremeu. – Sei, sim. – Então, um pensamento o golpeou em cheio. – A propósito, o que Lizzie disse quando ficou sabendo?

Isaac suspirou.

— Eu não sei. Ela estava internada até então, e ainda não havia sido informada quando deixei Formosa. Sequer pôde comparecer ao funeral. 

Heath acenou com a cabeça e voltou ao tópico principal:

— Eu sempre achei que havia algo de esquisito nesse casamento, você sabe.

— Esse é um dos únicos pontos em que eu sempre concordei piamente com você. – falou Isaac. – Enfim, talvez eu não consiga muita coisa sozinho, mas caso você se junte à causa e me ajude a caçar evidências de um possível histórico comprometedor da megera que apontem para um embuste no testamento, há uma chance de isto funcionar.

Heath apoiou o queixo na mão esquerda e refletiu, absorvendo aos poucos todo o jorro de novas informações. Seu arquirrival número dois (o número um sendo a madrasta, é claro), o qual não via há um bom tempo, estava em seu quarto lhe oferecendo uma... trégua? Mais do que isso, uma aliança que objetivava a queda da criatura mais repugnante que já havia cruzado seu caminho... a a principal responsável por fazer Heath querer enterrar seu passado. A verdade era que não ligava tanto para a herança; levava uma vida confortável dentro de seus padrões. Mas deixar a megera levar a melhor também ia contra seus princípios.

Além disso, gostaria de esclarecimentos sobre o posicionamento do pai. Não só no que dizia respeito ao testamento, mas em diversos outros aspectos... Essa parte era a mais difícil, uma vez que ele já estava morto, mas poderia tentar.

No entanto, não sabia se podia confiar em Isaac ou não. Apesar de serem irmãos, ele já havia lhe passado a perna inúmeras vezes... Como saber se aquilo era seguro? Como saber se o irmão simplesmente não queria obter vantagem sobre ele e depois descarta-lo?

Não tinha como. Porém, a súbita descarga de adrenalina a que Heath foi submetido naquele momento o fazia perceber uma coisa: sair um pouco da calmaria oferecida a ele todos os dias parecia estranhamente empolgante, mesmo considerando a companhia em questão.

— Você tem alguma ideia de por onde começar? – arguiu, bruscamente.

— Pode-se dizer que sim. Eu descobri que, convenientemente, Hazel é a cidade natal dela. Pode ser que encontremos algo interessante por aqui.

Heath não sabia o que fazer com aquela informação.

— Quando vai ser? Digo, a audiência.

— Daqui a duas semanas.

— E só agora você vem me avisar?!

— Terra para goblin! – exclamou Isaac, e aquilo fez Heath se lembrar dos odiáveis velhos tempos - Eu estava procurando pistas de onde você pudesse estar. Por sorte, tenho meus contatos e um sexto sentido eficiente. De qualquer forma, eu acabaria aqui. E logo vi que você não poderia ir muito longe com aquela porcaria de madeira...

Típico, Heath pensou.

— Bem, e onde vai ser? - perguntou ele.

— Em Formosa. Onde mais?

— Muito bem. Vou aceitar sua oferta. - Mas ficarei de olho em você, pensou. - Se importa se eu ficar sem apertar sua mão?

— Eu agradeceria. Sabe-se lá por onde sua mão andou.

— Ah, acabo de me lembrar. Eu tenho que ir, você sabe... – Heath gesticulou para Isaac – Vestido de pingüim?

Isaac bufou, irritado.

— De terno. Sim.

— Triste – o aviador dirigiu um olhar penalizado ao irmão enquanto levantava da poltrona - mas farei o sacrifício.

— Estupendo. – Isaac fitou Heath por cima do ombro enquanto saía do quarto – Manteremos contato. Agora, guie-me até a saída. Se houver alguma tábua solta na escada, você tropeça e cai no meu lugar.

— Anda logo – Heath empurrou o mais alto com violência.



— Ah, o clone do mal já vai? – disse Bill, rindo, ao avistar os gêmeos saindo pela porta da frente. Ele estava jogando xadrez com Lauren na mesa de jantar. Rolf, esparramado no sofá, parecia completamente embriagado.

— Mas... mas são quadrigêmeos – balbuciou, apontando um dedo oscilante para Heath e Isaac.

— Vai dormir, Rolf – sugeriu Lauren educadamente.

— Ah, xadrez! – disse Isaac, se aproximando da mesa, parecendo ligeiramente animado pela primeira vez naquela noite – Meu jogo favorito.

— Ih, mais um daqueles pseudocultos... – murmurou Bill, exasperado.

No instante seguinte, Isaac estava sussurrando no ouvido de Lauren, propondo uma estratégia que a faria dar xeque-mate em Bill, que protestou entusiasticamente. Após a oferta recusada de uma xícara de chá verde, ele trocou mais algumas palavras com Lauren (o que fez Heath revirar os olhos) e se precipitou para o portão da pensão. Ao passo em que Isaac caminhava, o aviador percebeu uma forma alta e robusta, a aura imperturbável, esperando-o ao lado do portão. Este o acompanhou até a limusine e os dois entraram. Os moradores observaram o carro se afastar e se mesclar às sombras da noite.

— Já foi tarde – debochou Heath enquanto sentava-se à mesa de jantar e afundava uma bolacha de água e sal no doce de leite.

— Sempre gostei mais de damas - grunhiu Bill, chateado.

— Honestamente, seu irmão não me parece tão detestável assim, Heath – comentou Lauren descontraidamente. – Quer dizer, exceto pelo ataque súbito a sua integridade física, mas acredito que você deve ter merecido.

— Você não o conhece, Laurie. – o aviador enfiou a bolacha na boca. - Ele é uma naja, aguardando o momento propício para dar o bote. Mas eu sou mais esperto.

— Ele se veste melhor que você.

Heath ergueu os olhos para Lauren, a expressão dividida entre incredulidade e ojeriza. Ela não conseguia parar de rir.

O aviador teve uma péssima noite.

Sonhou que o irmão, usando um chapéu de cowboy, o perseguia com uma espingarda supersônica montado num velociraptor ao mesmo tempo em que a terra era destruída por meteoros. Um meteoro atingia Heath, o levando ao chão. Isaac parava ao seu lado e atirava nele repetidamente.

Acordou suando frio. Naquele momento, ele concluiu que só iria ter descanso quando se visse livre do irmão.

Bom, ele ainda não precisava lidar com tudo aquilo.

Ao menos, era o que achava.



Desceu as escadas e não encontrou Lauren na cozinha, tampouco na sala de estar. Passou por Bill e perguntou se ela já havia saído.

— Ela saiu junto com o Rolf. Acho que resolveu tomar café no Pierrô hoje.

— Mas ela odeia a comida do Pierrô.

— Talvez ela tenha ido comer lá pra ajudar o Rolf.

— Estou indo pra lá, então.



Com o receio percorrendo a espinha tal qual um inseto de muitas patas, Heath adentrou o Pierrô Apreensivo, um pub conhecido e apreciado pela decoração retrô: o piso xadrez, os pôsters vintage espalhados pelas paredes, os banquinhos de couro vermelho dispostos em frente ao balcão e a jukebox compunham a atmosfera anos 60.

O Pierrô também era conhecido pelo famigerado Titan Burger, um sanduíche ridiculamente grande pelo qual o cliente não pagava caso o comesse em menos de 30 minutos. O único habitante de Hazel de que se tinha registro a vencer o Titan Burger sem ter uma indigestão em seguida era Bill. Heath já tentara e não obteve sucesso.

Heath não viu Rolf – presumiu que tivesse ido fazer uma entrega. Avistou Lauren sentada numa mesa, com um prato de waffles à sua frente, tomando uma xícara de café e ostentando uma expressão singela. A visão de Lauren teria sido reconfortante se Isaac não estivesse sentado à frente dela, com uma xícara de, Heath tinha absoluta certeza, Earl Grey.

Os dois pareciam entretidos numa conversa supérflua e sorriam bastante.

Heath quase teve um colapso nervoso. Respirou fundo, passou a mão pelos cabelos e pigarreou alto o suficiente para que toda a clientela ouvisse (aproximadamente oito pessoas).

Lauren e Isaac se viraram para ele e as reações foram parecidas: Lauren bufou e revirou os olhos, já Isaac suspirou pesadamente e esfregou a têmpora esquerda enquanto formulava sua melhor expressão de desdém.

— Não consigo chegar a nenhuma conclusão plausível que não me faça querer esganar você. – Heath anunciou, cravando o olhar no irmão.

— Eu queria alguém para me orientar pela região. – disse Isaac, sem rodeios, pousando a xícara de chá na mesa. – Perguntei a Lauren e ela aceitou. Eu passei meu telefone e marcamos de tomar café aqui. Embora minha empolgação em conhecer a cidade fosse controlável, não tenho TV a cabo no quarto do hotel e a única leitura disponível por lá são revistas para meninas pré-pubescentes. Não tenho muitas opções de passatempo.

— Eu posso servir de guia também. – anunciou Heath, cruzando os braços.

— Não, você não pode. – disse Isaac, firme e lentamente, como se falasse com uma criança. – É um passeio restrito e você não foi convocado. Sinto muito, goblin.

— Eu tenho o direito de ir e vir. O espaço é público. E eu decidi que quero ir com vocês.

— Heath, cresça.– impacientou-se Lauren.

Heath olhou para ela, alarmado, assimilando a situação. Não, não podia aceitar essa ideia. Definitivamente não. Lauren gostava dele. Não seria muito difícil convencê-la a ser a progenitora de seus filhos. Porém, a interferência de um terceiro seria prejudicial aos planos de Heath. Ainda mais se o terceiro fosse Isaac. 

Não podia conceber o galanteio do irmão para com Lauren, então fez o que qualquer pessoa sensata faria.
Espetou um garfo no braço de Isaac e saiu correndo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Os maneirismos do Isaac foram inspirados pelo personagem Artemis Fowl, dos livros do Eoin Colfer, e o nome "Pierrô Apreensivo" é uma homenagem ao "Palhaço Ansioso" de Desventuras em Série, do Lemony Snicket. :)



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Heath Sparks" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.