Heath Sparks escrita por ornitorrinca


Capítulo 2
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Apesar de ter tido uma boa noite de sono, Heath estava com uma sensação ruim naquela manhã. Um aperto no peito que o fazia franzir o rosto. Passou por sua cabeça a possibilidade de haver suco de beterraba no café da manhã, e um arrepio percorreu sua espinha.
 
Após levantar da cama, começou a se vestir. Dormia usando apenas um camisetão cinza que roubara de um varal cerca de quatro anos antes. Era sua peça de roupa mais confortável.

Vasculhou o quarto com o olhar. Ao dar por falta de um item de extrema importância, começou a cutucar o ocupante da parte de baixo do beliche.

— Rolf. Rolf. Rolf. Acorda. - e foi atingido em cheio por um travesseiro no rosto.

— Cala essa boca – resmungou seu colega de quarto mecanicamente, em um estado de semiconsciência, virando para o outro lado e adormecendo de novo.

Rolf era alto de modo que quase não cabia na cama diminuta. Tinha cabelos ruivos arrepiados e olhos escuros. Possuía piercings na orelha esquerda e uma vez chegou a colocar um no septo, mas infeccionou, e ele parou por aí. Tinha uma tatuagem no pescoço: uma rosa vermelha mal traçada com uma faixa ao redor, na qual se lia “Charlotte”, nome de sua ex-namorada mais recente. Dizia que não tirava a tatuagem porque “devemos aprender com os nossos erros”, mas todos sabiam que ele tinha medo do laser. Apresentava problemas com bebida e um desvio na coluna que, em conjunto com a cama pouco ergonômica, resultava numa postura ruim. Ele não era uma pessoa muito feliz.

— Bárbaro – murmurou Heath, se espreguiçando. – Não acho minha echarpe, Rolf.

Desperto mais uma vez contra sua vontade, Rolf abriu os olhos e o encarou com ferocidade.

— Enfia a echarpe no rabo e me deixe em paz! - e se cobriu com o cobertor até o topo da cabeça, encerrando o assunto.

— Como vou poder enfiar se não sei onde está? – insistiu Heath, abrindo os braços.

Rolf apenas grunhiu por debaixo do cobertor. Heath, frustrado, começou a revirar o quarto inteiro.

Procurava na gaveta de cuecas de Rolf até a coisa ficar cada vez mais bizarra e ele acabar desistindo. Terminando de pôr as meias quadriculadas e as botas, começou a descer as escadas em direção à cozinha.

Lauren já havia acordado. Estava sentada à mesa, mexendo sua xícara de chá. Ergueu os olhos para Heath e sorriu para ele.

Ela tinha feições longas e uma expressão afável, ainda que travessa. Era difícil definir a cor de seus olhos (mudavam de acordo com seu humor - essa era a teoria de Heath). Seu cabelo curto era de um vermelho tão intenso que parecia rosa, e ela o penteava para o lado, prendendo a franja com fivelas.

Houve momentos na vida de Heath em que ele se considerava um completo misantropo, encarando a ideia de partilhar sua vida com outro ser humano nada menos que pavorosa. Mas conhecer Lauren foi um dos fatores que geraram uma mudança de mentalidade.

Ele constantemente pensava em ter filhos. Queria dar início a uma longa estirpe, um poderoso clã que herdaria seus prósperos genes – palavras de Heath. E acreditava que Lauren seria a melhor pessoa para acompanha-lo nessa jornada. Não porque nutrisse sentimentos profundos por ela além de genuína amizade, mas simplesmente por considera-la fantástica.

Quando Heath contou isso a ela, cerca de dois meses depois de tê-la conhecido, Lauren riu até chorar.

— Bom dia. – saudou ela enquanto ele puxava uma cadeira e sentava-se ao lado dela.

— Viu minha echarpe? E bom dia, Laurie.

— Você levou pra lavanderia ontem, lembra?

— Ah, sim. Claro. Que chá é esse?

— Um que eu achei no fundo do armário. Baunilha.

— Ah, sei.

— Vai querer?

— Não. – Heath pegou um pão e começou a cortá-lo.

— Você está cortando o pão de um jeito estranho hoje. Seu olhar está vago e suas sobrancelhas estão mais arqueadas do que o normal. Tem algo te incomodando.

— Sua avaliação da minha linguagem corporal é assustadora.

— Não quer mesmo o chá? Vai te fazer sentir melhor.

— Não mesmo. – ele passava mais geléia do que o necessário em seu pão, distraído. Um tempo depois, completou: - Passou da validade faz cinco meses.

Lauren cuspiu todo o líquido e Heath não segurou o riso.
— Eu te odeio, Heath. – falou ela, levantando-se e pegando a bolsa grande e volumosa que estava pendurada na cadeira. Checou o relógio de pêndulo em um canto da cozinha. – Pode lavar essa xícara pra mim? Não quero me atrasar pra reunião.

— Claro. – respondeu Heath, cordialmente. E não, ele não lavou a xícara. – E aí, vai fazer alguma coisa à noite?

Num contexto convencional, a frase soava como um convite para um encontro.

— Ah, coisa simples. Mais um daqueles frouxos que se creem traídos, mas não têm culhões pra fazer o serviço, e acabam contratando profissionais.

— E o método?

— O contratante sugeriu que eu esmagasse o cara com uma bola de ferro, mas eu não tenho orçamento pra isso, e como estou meio indisposta hoje, acho que vou usar a .38.

— Ah... – Heath ficou meio desapontado. - Que sem graça... Sufocamento seria mais legal, se aceitar sugestões.

— Já fiz isso semana passada, com aquele relojoeiro, lembra? E é cansativo.

— Entendo.

— Bem, vejo você mais tarde. Alimente Napoleão – Lauren acenou animadamente e saiu.

Apesar de ser uma assassina de aluguel, Lauren tinha uma boa índole.

Heath se esticou na cadeira, encarando um ponto fixo no teto por alguns segundos. A sensação incômoda entalada em sua garganta como um ossinho de frango se intensificava mais e mais.

O suco era de laranja, não de beterraba.

Enfiou o resto do pão com geléia (ou geléia com pão) na boca, levantou-se, andou até o armário e pegou um potinho de ração. Foi até a sala de estar, onde se encontrava o aquário de Napoleão, e salpicou a dose diária.

— Alguma coisa ruim vai acontecer. – sentenciou em uma voz fúnebre, inclinando-se para o peixe palhaço inexpressivo. – Não vai?

Um instante depois, Heath deu de ombros e saiu. De que adiantava se preocupar, certo?

...aconteceu por volta das 19:30.



Naquela noite, após o jantar, os moradores fixos da pensão haviam se reunido na varanda para jogar poker. Heath estava rapelando todos à mesa, causando a ira geral.

— Mas que droga! – resmungou Bill, o dono da pensão.

Bill é um nome que costuma nos remeter a homens gordos e carecas que gostam de manter os pêlos faciais e usam regatas brancas. Bem, Bill Sanders era gordo, careca e gostava de manter os pelos faciais. Mas adorava casacos de times de basquete e camisetas de bandas de Death Metal. Em um passado longínquo, tocava baixo numa banda de garagem chamada “Estrela da Morte do Monstro Legume do Espaço” e possuía uma juba vasta e sedosa.

— Heath, você tá trapaceando. – ia dizendo, frustrado. - Não sei como, mas está. 

O aviador sorriu alegremente, expondo seus dentes nada bonitos. - Minhas habilidades estão além da compreensão humana, só isso. 

— Foda-se – Rolf, com o usual temperamento irritadiço, jogou seu maço de cartas na mesa com violência, passou gingando pela sala (tropeçou no tapete no caminho) e foi até a cozinha. Logo estava entornando, irritado, uma garrafa de licor de chocolate que ganhara em seu último aniversário.

— Crianças – murmurou Heath, dando de ombros.

Na verdade, Rolf era alguns meses mais velho do que Heath. Saiu de casa para morar com a namorada, que na verdade era uma golpista que acabara roubado todo o dinheiro que ele havia guardado para a vida a dois. Pouco depois da desilusão, ele achou que tinha encontrado o verdadeiro amor, mas quebrou a cara de novo e a tatuagem no pescoço não o deixava esquecer-se disso. Estava quebrado e trabalhava na lanchonete em tempo integral, mas às vezes vadiava e acabava atrasando o aluguel. Além disso, recebia várias advertências no trabalho, como na vez em que virou uma bandeja na cara de um cliente que alegava que a carne do hambúrguer estava meio crua (quando, na verdade, estava mesmo). Além disso, a questão do álcool atrapalhava mais ainda seu desempenho.

— Charlotte fazia tão bem a ele. – comentou a Sra. McDowell de sua cadeira de balanço, uma idosa de ar sonhador, os cabelos presos em um coque do qual escapavam vários e vários fios. – Deveriam voltar, é o que eu acho.

— Charlotte fez Rolf tomar o primeiro porre – lembrou Bill. – E experimentar maconha também, mas por sorte ele descobriu que era alérgico.

— Se querem saber – opinou Heath. – acho que Rolf estava destinado a ser um alcoólatra mirim. Com essa desgraça de vida que ele...

— EU POSSO OUVIR TUDO! – berrou, da cozinha, o objeto da conversa. Logo depois, um Rolf bêbado e carente sentava à mesa novamente, mas optava por não jogar.

Os moradores da pensão olharam quando o portão enferrujado da entrada rangeu e Lauren entrou, parecendo exausta. Saudou os moradores, que a encararam com ar de interrogação. Heath, então, verbalizou o que todos estavam pensando:
 
— Laurie – ele chamou. – Tem uma mancha suspeita perto da sua pálpebra inferior.

— Ah! – exclamou ela, desconcertada, pegando um lenço do bolso e limpando a mancha vermelho-escura. Pouco depois, ela se juntava ao resto do pessoal no poker.

Foi aí que os moradores, até então absortos no jogo, foram surpreendidos por um ruído de carro. Não de um carro ordinário, mas de uma limusine. Preta e reluzente. A surpresa foi maior ainda quando perceberam que a limusine parara na fachada da pensão.

— Alguém aqui tem dívidas com a máfia? – perguntou Bill, temeroso, na esperança de que mais alguém tivesse dívidas com a máfia além dele.

Logo em seguida, a porta do carro se abriu e uma figura peculiar para os padrões de Hazel surgiu.

A sensação ruim que Heath estava ignorando veio à tona. A angústia atingiu-o em cheio e engolfou-o. Agora, era como se ele estivesse se afogando em terra firme. Principalmente quando o jovem que saiu do carro empurrou o portão da entrada da pensão e começou a se precipitar para a varanda.

— Ah, droga... - falou Heath, exasperado.

Expressões de perplexidade varriam a mesa do poker.
O rapaz que estava ali, enfiado num terno preto e engomado, era igual a Heath.



Bem, ele não era exatamente igual a Heath, é claro. Mas a semelhança era, de fato, assustadora: ele tinha a mesma pele morena (embora em um tom mais vivo e sem tantas marcas), os mesmos olhos azul-elétricos (embora sem olheiras profundas) e o mesmo cabelo negro (embora mais curto e bem cuidado). Por outro lado, ele era um pouco mais alto e um pouco mais atlético; suas feições eram mais rígidas, seu aspecto mais formal e seu olhar severo.

Avaliava a pensão com um ar de reprovação e até mesmo com certo asco. Focalizou cada um dos moradores até chegar ao aviador.

— Heath. – falou ele, franzindo o cenho, como se sentisse uma extrema repulsa ao pronunciar aquele nome.

— Isaac. - respondeu Heath, num tom de voz monótono, como se tivesse acabado de encontrar um chiclete preso à sola da bota.

Heath levantou-se e tentou ficar cara a cara com o outro rapaz, mas lhe faltaram alguns centímetros para tal.

O outro não disse nada, apenas deu um soco na cara do aviador. Um soco tão carregado de ira que fez Heath despencar por cima de uma velha cadeira, que caiu e quebrou as quatro velhas pernas.

Isaac respirou fundo. Parecia que ele esperava por aquele momento havia anos.

E esperava mesmo.

Andou até onde Heath, ainda atordoado com o soco, estava caído. O visitante limpou a garganta. - Seu idiota. Por quanto tempo você achou que ia conseguir se esconder? 

Os moradores da pensão apenas olhavam, pasmos. Rolf estava agarrado com sua garrafa de licor como se achasse que ela poderia protegê-lo.

— Er... – Foi Bill quem se manifestou primeiro – Com licença, mas... embora eu tenha uma suspeita... posso saber quem é o senhor e por que agrediu o Heath? – ele tentava manter a cordialidade, afinal, aquele cara poderia vir a ser um cliente (por mais que a hipótese parecesse improvável).

— Heath! – exclamou a Sra. McDowell, num tom de censura. – Não me diga que você voltou a roubar!

O tal Isaac ergueu os olhos de um Heath ainda caído e tomou a palavra, recuperando a compostura fria e falando do modo mais polido possível.
— Queiram perdoar meus modos rudimentares, mas o pequeno goblin postado à minha frente mereceu. Devo dizer ainda que fui condescendente – ele dirigiu um olhar sinistro para Heath, agora novamente em pé (embora cambaleasse) e devolvia o olhar com irritação.

— Não me chame de goblin. – murmurou, e voltando-se para os convivas: – Caros agregados – começou ele, claramente caçoando do modo de falar do irmão - Apresento-lhes meu ilustre consanguíneo, Isaac Sparks. Caso não tenham notado, ele é meu irmão gêmeo monozigótico.

— É um prazer conhecê-los – falou Isaac, braços cruzados, sem se preocupar em parecer sincero.

— Uau – falou Rolf, já meio alto – Heath tem um irmão gêmeo do mal.

Isaac pigarreou.

— Receio que eu seja o gêmeo do bem. E também receio que eu precise ter uma conversa com o gêmeo do mal. Em particular.

— Ah, não. Não, não precisa. – protestou Heath, colocando as mãos na cintura e balançando a cabeça. – Parafraseando Barney: eu te odeio, você me odeia. Somos uma família infeliz. E não temos nada pra conversar.

— Temos. Acredite.

— Tudo bem. Quer falar sobre o quê, então? Política? Futebol? Dicas gastronômicas? Só entendo do último.

— Já disse. É particular.

— Heath, leva esse maluco pro seu quarto de uma vez – disse Bill, guardando o baralho e olhando de soslaio para Isaac. - Vai que ele resolve bater na gente também.

Os gêmeos subiram as escadas em silêncio, exceto pelos resmungos de Isaac sobre como o aspecto da construção era "particularmente desagradável". Adentraram o quarto que Heath compartilhava com Rolf.

Isaac estalou a língua.

— Deus. – falou, a voz arrastada. - É o seu quarto?

— Parcialmente.

— Foi você quem decorou isso aqui?

— Te desagrada?

— Sim.

— Então, fui eu sim. – Heath sorriu alegremente e indicou uma poltrona empoeirada próxima à janela, mas Isaac preferiu ficar em pé, alegando que não queria levar nenhuma picada de escorpião. O aviador deu de ombros e sentou.

— Bem, agora pode me dizer o que diabos você quer comigo – proferiu.

O irmão mais alto soltou um longo suspiro. Heath reparou que suas feições estavam... Abaladas?

— Heath, você não mudou nada. – Vendo as sobrancelhas erguidas do irmão, Isaac acrescentou: - Não pense que carrego uma dose de saudosismo em minhas palavras, porque o fato de você não ter mudado nada é profundamente lamentável.

— Ai! – ironizou Heath, levando uma mão ao peito. - Na verdade, eu mudei sim. Tatuei um unicórnio multicolorido na minha nádega esquerda, semana passada. Agora, pode me dizer a que devo sua célebre presença em minha humilde moradia?

Isaac o encarou, furioso, e seu olhar chocou-se contra o do irmão como um relâmpago que corta o céu tempestuoso. Heath, instintivamente, se recostou mais na poltrona.

— Quando você partiu, nosso pai caiu em uma depressão profunda.

O aviador engoliu em seco. Não tinha e nem mandava notícias para casa há anos. Aquele assunto era delicado, muito delicado.

— Ele me confundia com você. Às vezes passava dias trancado no quarto, fazendo Deus sabe o que. 

— Mas ele superou, certo...?

— Parcialmente. Nós solicitamos a ajuda de um psicólogo, mas ele não gostou da experiência. Disse que não queria se abrir assim para um desconhecido, mesmo que para um profissional. Bom... nosso pai sempre foi forte, apesar de tudo. – Isaac parou um instante e, depois de limpar a garganta, continuou - Por sinal, julgo importante dizer que ele não ficou zangado com a sua... escapada. Só triste. Os amigos policiais dele sugeriram mandar um pessoal atrás de você, mas ele recusou. Disse que não queria interferir numa escolha sua. Ele chegou a dizer que “entendia”. Embora, na minha opinião, você merecesse a ira dele e muito mais. Como você sabe, eu nunca fui o preferido dele, mas não pude deixar de ficar abalado com o estado dele.
 
— Sei. - Heath, apesar de tenso, não desarmou as defesas. - Fico feliz que ainda tenha um pouco de humanidade.

— Não sou um porco frio e calculista como você pensa. Pelo menos, não com todos. Eu amo meu pai, quiçá mais do que você ama. Se é que ama de verdade, o que eu duvido muito, a julgar pelas suas ações... Posso dizer o mesmo em relação a Lisbeth.

Heath estremeceu ao som daquele nome.

— Você não sabe o que está dizendo – comentou ele, calmamente. – Posso concluir que você veio aqui só para me agredir física e verbalmente, caro consanguíneo?

— Não. – Isaac esfregou as têmporas. – Não acabou. Mas não irei prolongar ainda mais a premissa e irei direto ao ponto. Nosso pai, Heath... - e respirou fundo pela segunda vez na noite. 

— Nosso pai o quê? – indagou o outro, franzindo o cenho. – Anda.

— Morreu semana passada.


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Notas finais do capítulo

Ta-dah! Espero que relevem o clichê e não desistam da história. Beijos!