Heath Sparks escrita por ornitorrinca


Capítulo 1
Heath




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Heath Sparks entreabriu os olhos e a claridade daquela manhã de domingo atingiu-o em cheio. Remexeu-se na cama, grunhindo e chutando alguns travesseiros para fora no processo. Havia tido um pesadelo do qual não conseguia lembrar. Desistiu de tentar dormir novamente e saltou do beliche, mal-humorado.

Era um rapaz de estatura mediana. Pele morena, mas de tom pálido. Os cabelos eram negros e sujos, e tinha olheiras abaixo dos olhos azul-elétricos, vidrados.

Aos vinte anos de idade, Heath Sparks era uma figura peculiar do pequeno distrito de Hazel; notório, primariamente, por ser o piloto de teco-teco mais jovem que já pisara ali. Secundariamente, por ser um cara um pouco excêntrico.

Heath cresceu numa família rica e tradicional de Formosa, cidade da região sul que nunca fez jus ao nome. Sua mãe havia morrido quando ele tinha quatro anos; ele não tinha muitas lembranças dela e encontrava dificuldade até mesmo em lembrar-se de seu rosto. O pai se casara com uma mulher que parecia ter saído de uma novela das sete. Uma megera caricata e muito, muito mais perigosa do que parecia. 

Ele nunca entendera o motivo do casamento. A hipótese mais plausível era de que o pai, cego pelo empenho em arranjar uma “nova mãe” para os filhos, casara-se com a primeira mulher que brotara à sua frente, sem se preocupar com a índole duvidosa da moça em questão. Mas, ainda que plausível, parecia improvável.

Apesar de tudo, Heath alimentava uma admiração sem precedentes pelo pai. Aviador durante a Guerra do Figo, Duncan Sparks possuía um antigo teco-teco militar e mostrava ao filho todos as suas mirabolantes acrobacias aéreas, que ficava fascinado. Pouco depois, Heath passara a voar com ele. Desde então, a fissura do garoto por aviões fugiu de controle. Fazia inúmeras desenhos técnicos, colecionava quaisquer representações de aviões - de figuras recortadas de revistas até miniaturas - e passava a maior parte de seu tempo livre deitado no amplo gramado dos Sparks encarando a imensidão azul.

Voar era sua válvula de escape. Algo que lhe transmitia uma sensação de conforto equiparável a ser embalado pelos braços da mãe, coisa da qual, surpreendentemente, ele conseguia lembrar. Às vezes, seu pai o deixava assumir os comandos do Teco-Teco, mesmo que só por uns instantes. Para o garoto, aquilo significava tudo.

E foi o estopim.

Naquela mesma época, aos catorze anos de idade, completamente obcecado com qualquer coisa relacionada à ideia de voar, Heath iniciou um projeto que viria a ser um marco em sua breve história. Em plena puberdade, começou a construir seu próprio teco-teco.

Heath tinha uma inteligência acima da média e estudo nunca foi uma preocupação: passou a dormir durante as aulas e reservava as madrugadas para dar continuidade ao projeto. As advertências eram inevitáveis, mas suas notas continuavam boas. Havia achado um terreno abandonado a umas quadras do bairro onde morava, e só voltava quando amanhecia. Manteve isso em sigilo e, quando alguém suspeitava dele e ameaçava informar seu pai das saídas furtivas, simplesmente pagava para que o indivíduo calasse a boca. Passou cerca de dois anos trabalhando naquilo, pesquisando em todas as fontes possíveis sobre como construir um avião de pequeno porte e de estrutura mais simplória com poucos materiais à disposição.

Heath não tinha razões para ser um adolescente revoltado. Tinha boas condições de vida, um pai presente e uma piscina.
Entretanto, alguns fatores contribuíam para sua fuga.

Esses fatores, os quais ele já havia há muito enterrado em um canto obscuro da mente, eram assuntos que faziam seu estômago revirar.

Um deles, além da madrasta, era aquele intragável irmão...

Mas vamos deixar para falar disso depois.

A verdade é que, antes de qualquer coisa, Heath Sparks não era um garoto muito bem esclarecido. Além do egocentrismo por vezes napoleônico, tudo indicava de que não tinha uma mente convencionalmente estruturada. Às vezes cometia ações que não lhe justificavam a constatação de um juízo perfeito, mas (quase) nada que ameaçasse a saúde pública ou algo do gênero. Exceto quando ele resolvia bater em um colega de classe ou outro que fizesse piada com o ninho de rato em sua cabeça ou seu corpo mirrado - usando não os punhos, mas um livro de ciências particularmente grosso e, ocasionalmente, um lápis.

Terminado o projeto, Heath, dezesseis anos de idade, deixou um bilhete de desculpas para o pai colado na poltrona favorita dele, juntou todas as coisas de que ia precisar e, numa serena madrugada de sábado, foi embora. Houve dois contratempos antes de sua partida: o primeiro foi uma visita inesperada, e o segundo foram os controles. Dois pombos esmagados contra o para-brisa depois, o painel foi domesticado. 

Houve, ainda, aquela chuva torrencial que parecia estar lhe dando uma bronca: “Volte para casa, moleque irresponsável.”

Ao que ele respondera objetivamente, alto e claro:

— Não.

Andou sem rumo durante um tempo. Os primeiros meses foram atribulados. Muitas vezes pousava o teco-teco em um terreno qualquer e dormia dentro do próprio avião. Com o tempo, a situação se estabilizou. Seguiu fazendo bicos temporários e passou a dormir em estalagens.

Por fim, acabou se estabelecendo em Hazel, cidade conhecida pela ocupação em massa de artistas de rua e outros profissionais inusitados. Acabou virando um piloto realmente bom, e sobrevivia transportando cargas (geralmente suspeitas) de uma região para outra. De vez em quando ajudava com os serviços domésticos da pensão onde vivia a fim de ganhar um desconto no pagamento mensal.

Era sempre visto por aí ostentando o característico sorriso afetado, os dentes tortos à mostra, os grandes olhos insones avaliando cada indivíduo da cabeça aos pés.

Podia-se dizer que era popular na região, mas seu comportamento insolente lhe rendia olhares tortos e ameaças. Era visto constantemente com uma colunista do jornal local (O Diário Aveludado) outra figura peculiar da região.

Heath levava a vida com a qual sempre sonhou: despreocupada, independente e numa cidadezinha de clima agradável. Sem madrasta. Sem irmão. Sentia-se livre e completo. E esperava resguardar a boemia pelo resto da vida.

No entanto, o resto de sua vida estava prestes a sofrer um abalo sísmico.


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