Liceu de Artes W.L escrita por Nandarazzi, RukeNoKokoro


Capítulo 3
1º TRIMESTRE - Capítulo 3: Sariel


Notas iniciais do capítulo

~ IMAGENS de REFERÊNCIA ~

— Planta arquitetônica do Liceu de Artes:
http://fc01.deviantart.net/fs70/f/2015/023/f/0/tzd14pa_by_nanaramos-d8f30yl.jpg

— Planta arquitetônica dos quartos: http://th04.deviantart.net/fs71/PRE/i/2015/023/4/7/quarto_liceu_by_nanaramos-d8f318n.jpg




~ GALERIA de PERSONAGENS ~

http://nanaramos.deviantart.com/gallery/52775462/Liceu-de-Artes-W-L



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Quando deixou o banheiro, já sentindo um bem estar emocional e físico apesar da exaustão, Daniel deu uma rápida olhada ao redor do seu novo quarto. Ao sentar-se na beira da cama que escolhera como sua (a de baixo do beliche do canto esquerdo), reparou nos inusitados itens posicionados sobre o criado-mudo: latas de tinta spray vazias, e uma máscara de gás.

Era verdade... Quando entrou no quarto, a porta já estava aberta. Pensando bem, percebera um vulto parado diante da janela, antes de trancar-se no banheiro. Aproximou-se, pegando a máscara e a analisando de perto, fascinado pelo objeto em mãos. Escuta passos no corredor que vinham em direção ao quarto, e então, duas pessoas adentraram o recinto: Zezinho, acompanhado de um estranho.

– Daniel, o que aconteceu? Você está bem? – Zezinho parecia preocupado.

– Agora me sinto um pouco melhor... Mas, quanto ao que aconteceu, eu não sei bem explicar... – temendo parecer intrometido, Daniel pousa a máscara de gás de volta no criado-mudo – Mas não precisa se preocupar, não foi nada demais.

– Você causou a maior bagunça lá embaixo, não foi?... – perguntou o rapaz estranho, buscando algo em seus bolsos e caminhando na direção de Daniel.

– Bom, não foi nenhuma bagunça, mas... Eu chamei alguma atenção, mesmo.

– Que pena. Às vezes é necessário um pouco de caos, para que se aprenda a apreciar a ordem e a disciplina – o rapaz deitou-se em seu beliche, que era a cama de baixo do canto direito – Acho que, pra alguns, as palavras do reitor ficaram mais interessantes depois que você chacoalhou a porra toda...

Quem era aquele sujeito, que parecia apreciar tanto a arruaça quanto o respeito às normas? Suas falas deixaram Daniel confuso, mas instigado. Zezinho revirou um pouco os olhos: Sariel gostava de impressionar os calouros com sua dialética progressista.

– Bom, contanto que esteja se sentindo bem... – Zezinho deu de ombros – Preciso voltar para a sala comum. Cuidem-se!

– Vai na paz... – Sariel respondeu. Tirando o smartphone do bolso, revirou-se de barriga para cima na cama e começou a entreter-se com o celular.

Daniel observou-o analiticamente... E sua primeira impressão era a de estar diante de um membro do movimento anarquista. Usava uma blusa preta de mangas rasgadas que lhe davam alguma atenção para os braços magros, porém fortes. Com as pernas dobradas sobre a cama, usava botas que não se preocupara em tirar antes de deitar-se. Seu rosto era um tanto triangular, seus olhos gateados e seus cabelos curtos (porém rebeldes) eram pretos como jabuticabas – ele poderia até ser considerado “bonito”, mas as orelhas um pouco abanadas contrastavam com o nosso padrão de beleza. Não se pode ser perfeito... Mas no caso de Sariel, isso era para melhor. Era um admirador da imperfeição e da assimetria.

Criando coragem, Daniel decidiu perguntar:

– Você que estava fazendo o grafite no rapel, lá fora?

– Aham – Sariel foi monossilábico, deixando um curto silêncio constrangedor no ar. Então, fechou o aplicativo que estava usando e continuou a conversa – Você gostou?

– Achei muito foda! – Daniel expressou-se de maneira mais entusiasmada do que pretendia, mas o palavrão saiu um tanto forçado – Quero dizer... – puxou suas estribeiras, organizando melhor seus pensamentos para não parecer desesperado.

Sariel deitou o celular no peito e, com a outra mão erguida entre a nuca e o travesseiro, virou seu rosto na direção do de Daniel. Ele era só ouvidos.

– De onde eu venho, não vemos grafites nas paredes ou coisas assim. Fui criado numa fazenda, e como pode ver, não sou muito cosmopolita...

– Eu não vejo nada demais.

Daniel entendeu que não seria julgado pela sua aparência ou forma de vestir, pelo menos por Sariel. Aquilo o fez rir um pouco, já mais aliviado, pois temia que o jeito “rebelde urbano” do colega de quarto refletisse alguns pensamentos exclusivistas do mesmo. Achava que ele seria intolerante e que, talvez, só gostasse de andar e falar com pessoas com pensamentos e estilo iguais ao seu.

Quando deu por si, o próprio Daniel era quem o julgava pela sua aparência despojada. Que grande ironia.

– Eu gostei das cores que você usou – Daniel continuou – O contraste do azul com o verde quase fluorescente, aliado ao contorno de traço preto, realçou bem os efeitos do fundo – Sariel estava feliz em receber uma crítica construtiva – Ainda mais daquele tamanho todo, com você pendurado num rapel! Fiquei totalmente abasbacado. E todos que passavam por ali também, aposto...

– Heh, heh... Nem todos. Mas valeu – colocava a ponta do carregador na base do celular.

– Como assim? Um painel daquele tamanho, com certeza chamou bastante atenção...

– Você também – e pousou o smartphone sobre o criado-mudo, colocando as duas mãos atrás na cabeça e lançando o olhar na direção de Daniel. Ele era o analisado agora – Me diz, o que foi que aconteceu lá embaixo, pra você chegar aqui correndo que nem um maluco?

Daniel nem esboçara uma desculpa, ou uma real explicação para o que havia acontecido. Pego de surpresa, mordeu os lábios com certa apreensão, erguendo-se da cama e procurando parecer ocupado com alguma coisa. Não queria ficar encarando o colega de quarto recém conhecido, enquanto respondia uma questão para qual não havia uma resposta definitiva.

– Se não quiser, não precisa falar sobre isso – explanou Sariel.

– Tudo bem, não há problema nisso. É só que... – quando Daniel virou-se de lado, coçando um pouco a nuca, Sariel viu como tinha um bumbum redondo e atraente – Eu tive uma reação inesperada. Sabia que iria encontrar tipos de pessoas com as quais não estou acostumado, mas não podia imaginar que chegaria a esse nível...

– Aqueles playboys são de revirar o estômago, mesmo. Só não esperava que isso fosse, algum dia, acontecer literalmente...

– É verdade, não é? – Daniel concordou com afinco, empolgado em ver que alguém compartilhava os mesmos sentimentos que os seus – Que bando de mauricinhos... Quem eles pensam que são, afinal?!

A raiva quase infantil, porém legítima de Daniel, fez Sariel sorrir gostosamente com seus comentários. Se soubesse o quanto aquilo era raro, Daniel sentiria orgulho de si mesmo... Em poucas palavras trocadas, os dois logo perceberam que vibravam na mesma intensidade: dois completo estranhos, com estilos e visão de vida totalmente diferentes, uniram-se pelo desgosto em comum. Mas enquanto Daniel não tinha consciência de Sariel, Sariel tinha plena consciência de Daniel.

O choque que Daniel sofreu foi causado pelo seu desmame abrupto num ambiente que lhe fora muito hostil. E apesar de seu vasto conhecimento, não possuía a sabedoria de Sariel ou a experiência para lidar com outros jovens de visões diferentes (ou adversas) às suas – e no Liceu de Artes WL, isso lhe traria muitos problemas. Não bastasse isso, ainda por cima era um calouro, e criado numa cenário bucólico privado dos conflitos urbanos.... Os atritos seriam inevitáveis.

Enquanto Daniel falava e gesticulava, arrumando suas roupas de dentro da mala para o armário do quarto, Sariel notava cada vez mais semelhanças entre os dois.

– Seria muito melhor que o liceu fosse um internato misto, e não apenas masculino – dizia o jovem do campo – Para um liceu de artes com muitos cursos contemporâneos, é estranho que sejam tão apegados a tradições...

– Apegados ao retrocesso – complementou o jovem da cidade – Você viu como são a maioria dos caras que estudam aqui? A gente que sustenta esse lugar são empresários e políticos influentes, conservadores, com certeza está rolando algum jogo de interesses que impedem que medidas como essa sejam tomadas. Só nos últimos anos o Liceu começou a oferecer bolsas de estudos, e ainda assim, há poucas vagas.

– Que absurdo! Ter acesso à estudos da arte e a pluralização cultural é um direito de todos, não é justo capitalizar isso de tal maneira que apenas a elite possa usufruir da melhor infraestrutura pra esse aprendizado!

Sariel era um progressista, que se expressava através de suas palavras e atitudes, mas principalmente pela sua arte. Seu convívio com aqueles que eram contra suas ideias de liberdade e harmonia eram vistos como obstáculos, e não como inimigos, pois o jovem rapaz compreendia as limitações de um grupo de jovens ricos que sempre tiveram tudo na vida, e o que mais temem é perder este conforto... Mas não desistiria até que ele e seus aliados fossem ouvidos dentre aquelas paredes, e estudar no Liceu de Artes WL seria uma ótima oportunidade para atingir e influenciar os futuros artistas do país.

E estava chegando bem perto de cumprir seus objetivos: por intermédio do conteúdo crítico de suas mensagens, Sariel logo ganhou destaque. Ascendeu-se socialmente, conseguiu o respeito de uns, o desprezo de outros, e cativou alguns alunos que agora se uniam por interesses em comum. Na teia social do Liceu de Artes WL, Sariel poderia ser facilmente considerado um “macho alfa”, visto que sua palavra tinha peso e sua opinião, grande influência. Mesmo sob o véu do preconceito, nem sua bissexualidade era razão para ser mal visto. Na verdade, seu coração polígamo lhe garantiu diversos parceiros. Temido e respeitado, poucos se atreviam a peitá-lo, e muitos procuravam proteção sob suas asas... Temporariamente, ou não.

No entanto... Daniel, que toda a vida estudara sobre os conflitos do homem contemporâneo, só agora os via e vivia. Era um rapaz efusivo e genioso, e em breve, enfrentaria uma fase de rebeldia tardia causada pelo ambiente caótico que o cercava, tão diferente da paz e tranquilidade da fazenda. Isso provocaria uma reforma completa em seu caráter, um rearranjo emocional turbulento, e quaisquer eventos traumáticos poderiam podá-lo para sempre! E o pior de tudo: ele não tinha a menor ideia de que isto poderia vir a lhe acontecer.

Mas Sariel tinha. E algo naquele calouro... Seu fogo, seu charme, o que quer que fosse, o cativou profundamente. Ele não permitiria que aquela chama em seu coração, a vontade de transformar o mundo para melhor, fosse apagada ou oprimida pelas más companhias. Só ele sabia até onde a necessidade de ser aceito em um meio hostil pode fazer com um homem... Então, no ápice daquele diálogo enriquecedor, Sariel decidiu: procuraria trazer Daniel para perto de si, custe o que custasse. E, quem sabe, não conseguiria algo mais que uma simples amizade?

– Do que vocês estão falando? – Zezinho chega acompanhado de Davi. A reunião da sala comum havia terminado, e todos os alunos estavam sendo levados de volta aos seus quartos.

– É sobre animes? – Davi quis ser engraçado.

– Estamos falando da Monsanto. É uma empresa americana que se instalou na África, sabe? – Daniel se explicava – Pois é, essa empresa acabou com as poucas reservas de água na África do Sul, e meio que...

– Tá, eu já entendi! – Zezinho pareceu impaciente. Baixinho do jeito que era, sua reação foi engraçada para quem viu “de cima” – Já vi que se deram muito bem! – os dois riram – Só não pensem que podem passar a noite conversando sobre essas coisas, senão eu e o Davi vamos ficar boiando a conversa inteira...

– E sobre o que a gente vai falar? Animes? – Sariel sorriu de canto, sarcástico.

– Eu preferiria! – Davi respondeu com empolgação.

Conversaram um pouco antes de dormir, e Zezinho e Sariel procuraram explanar algumas normas e informações importantes aos calouros, antes de prepararem-se para dormir. Falaram, principalmente, da organizada hierarquia de alunos e administradores, e em uma delas estava Zezinho, que era monitor de corredores: ele e outro aluno supervisionavam o corredor durante a noite, realizando uma troca de turnos às duas da manhã.

– Oito horas... Vou indo, pessoal. Boa noite pra vocês – Zezinho despediu-se do grupo – Daniel, e Davi: é melhor que vocês estejam no quarto às oito horas. Enquanto eu estiver de patrulha, posso deixar vocês chegarem um pouco atrasados, mas o outro monitor pode não ser tão generoso assim... Se sentirem fome, no criado-mudo tem um frigobar com suco de caixa e algumas maçãs.

– Tá, mãe. Tchau – respondeu Sariel.

Zezinho ergueu os olhos e saiu, contrariado. Os calouros deram algumas risadinhas disfarçadas, pois já haviam notado que Zezinho e Sariel trocavam suas farpas vez ou outra. No entanto, não parecia um relacionamento abusivo, eram apenas brincadeiras camaradas que nunca pareciam ir longe demais.

Esperavam apenas que pudessem desenvolver amizades assim com o decorrer do tempo... Davi não era um rapaz ambicioso, apesar de sonhador. Mas Daniel sonhava em fazer história: criar amizades como a dos antigos universitários e cientistas do passado, que juntos, descobriram novas teorias e técnicas que colocariam seus nomes em livros que seriam citados na posteridade, e mudariam a maneira com que a humanidade enxerga a si mesma ou o mundo à sua volta. E graças a Sariel, poderia se permitir a ter essa expectativa novamente...

Daniel quis saber mais sobre aquele rapaz misterioso dormindo bem ali, do outro lado do quarto. Sariel instigava sua curiosidade, acendendo não apenas um facho de esperança nos alunos do Liceu, mas também o desejo de aventura, de adrenalina, a rebeldia que por muito tempo adormecia em seu espírito impetuoso. Em seu íntimo, temia estar se sentindo atraído por alguém que ia muito além da sua zona de conforto... Mas talvez ainda fosse muito cedo para se dizer isso.

– Boa noite, pessoal – Daniel disse aos colegas de quarto. Sariel estava na cama de baixo, privado do seu espaço invadido pelo colchão afundado sobre ele, onde Davi já estava pregando os olhos.

– Boa noite – eles responderam. Davi mal se mexeu, e Sariel não tirava os olhos do smartphone.

Não faz mal. Comparado ao que passou naquela manhã, Daniel já se sentia muito melhor, praticamente recuperado depois da conversa com Sariel e ao saber que não estava sozinho.

Quando já levemente adormecido, e as únicas luzes do quarto eram as névoas da janela e a do seu smartphone, Sariel decidiu dar uma última olhada para Daniel antes de recolher-se. Admirou como dormia, com uma expressão cansada, porém serena, exausto após os eventos difíceis daquele dia... Suas dúvidas se esclareceram: achava-o mesmo bonito. Desejava a melhor sorte para que Daniel conseguisse se virar nos primeiros dias, e como havia prometido a si mesmo, ajudaria como fosse possível.


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