Liceu de Artes W.L escrita por Nandarazzi, RukeNoKokoro


Capítulo 2
1º TRIMESTRE - Capítulo 2: Ânsia de Vômito


Notas iniciais do capítulo

~ IMAGENS de REFERÊNCIA ~

— Planta arquitetônica do Liceu de Artes:
http://fc01.deviantart.net/fs70/f/2015/023/f/0/tzd14pa_by_nanaramos-d8f30yl.jpg

— Planta arquitetônica dos quartos: http://th04.deviantart.net/fs71/PRE/i/2015/023/4/7/quarto_liceu_by_nanaramos-d8f318n.jpg




~ GALERIA de PERSONAGENS ~

http://nanaramos.deviantart.com/gallery/52775462/Liceu-de-Artes-W-L



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Os dormitórios eram confortáveis e espaçosos, com dois beliches imensos em cada canto do quarto e um banheiro razoavelmente grande – pode-se dizer que as únicas coisas que incomodaram o jovem Daniel foram a janela alta entre os beliches, e o fato que o banheiro tinha dois chuveiros com apenas uma divisória de vidro fosco entre eles. Na estante, colocaria seus livros – e no grande armário de mogno, seus pertences e vestes. Num criado-mudo bem grande logo abaixo da tal janela, havia uma penca de panfletos e três chaves do quarto. E não bastasse o ar-condicionado refrescando sua nuca suada, seu smartphone também detectara um sinal wi-fi vindo do roteador preso ao teto... No final das contas, nem um hotel cinco estrelas seria assim, tão completo.

– Somos quatro, não somos? – Daniel perguntou, examinando as chaves sobre o criado-mudo.

– Sim – Zezinho respondeu prontamente.

– Então por que só três chaves?

– Eu precisei usar a minha para abrir o quarto! – e ergueu a sua num sorriso triunfante.

Que grande coincidência.

– Por enquanto, fique aqui e descanse um pouco, tudo bem? – Zezinho falava como se fosse uma vovozinha – A viagem foi longa, e logo virei buscá-lo para a reunião na sala comum.

– Obrigado! Até mais.

Deixado na solidão daquele aposento, Daniel apreciou o silêncio que formou-se ao bater da porta em suas costas. Um tanto quanto mecanicamente, o jovem rapaz foi despindo-se sem pressa alguma, dirigindo-se ao banheiro e preparando uma ducha quente. Enquanto mergulhava a mão na água para sentir sua temperatura, olhou com o canto dos olhos para o chuveiro fechado ao lado, imaginando mil coisas. Cerrou um pouco o cenho, e percebeu que aquilo não só o incomodava um pouco, mas sim bastante.

Criou coragem e enfrentou a água do chuveiro... O alívio foi quase instantâneo. Banhou-se com esmero, até espantar a má disposição do corpo, logo após cobrindo a cintura com uma toalha própria. Limpou o espelho embaçado e admirou-se um pouco, arrumando os cabelos castanho-claros ainda molhados para esconder algumas espinhas que havia surgindo no canto da testa: vestígios de sua pós-adolescência.

Por onde passava, Daniel atraía olhares para si. Sua beleza não era arrasa-quarteirão, na verdade, era simples e rural – mas a malícia em seu olhar marrom-esverdeado contrastava com a ingenuidade das diminutas sardas, salpicadas sobre suas bochechas e dorso do nariz. Acima de tudo, não tinha feições imaturas de garoto, mas o rosto firme de um jovem adulto, distanciando-se do padrão de beleza brejeira do campo e carregando quase sempre uma expressão de desafio a quem o encarasse.

Eis que, quando deixa o silêncio do aposento forrado de azulejos brancos, um gordinho estranho surge bem quando Daniel abria a porta do banheiro!

– Aaah! – gritou Daniel, encolhendo-se e rapidamente fechando um pouco a porta. Não esperava ver aquilo!

– Me desculpa, me desculpa! – o gordinho corou até suas orelhas ficarem vermelhas – Não sabia que tinha gente aí!

Após respirar fundo algumas vezes, Daniel recobrara o fôlego e deixara o banheiro com compostura – e um pouco mais vestido. Encontrou o gordinho sentado num beliche de baixo, com um olhar tão culpado que fizera Daniel lembrar-se de seu cachorro Cuscuz. Seu rosto oval era adornado com o resquício de uma barba louro-escura, e tinha óculos grossos de aro quadrado. Além da mochila e carteiro e o incômodo que sentia com a blusa social que apertava alguns pontos dos braços gordinhos, Daniel não pôde absorver muitas informações no primeiro contato com o estranho – mas muito mais quando ele abrira a boca para falar.

– Perdoe-me, não quis te assustar! – Daniel achou-o um pouco adorável, como acharia fofa uma criança pedindo desculpas.

– Tudo bem, não tem problema – respondeu com um sorriso sem graça – Não foi nada demais. Vamos ter que nos acostumar com isso, já que seremos colegas de quarto...

– Meu nome é Davi! – ele cumprimentou, segurando a alça da mochila de carteiro – E o seu?

– Daniel.

– Prazer, Daniel! Olha, se arrume rápido, que daqui a dez minutos a gente precisa estar na sala comum pro anúncio do reitor.

– Claro. Se quiser usar o banheiro, fique à vontade.

Momentos depois, uma multidão de alunos encontrava-se na sala comum, uma imensa sala semicircular com assentos de estádio circundando um palco central, onde se reuniam professores e coordenadores importantes, além de supervisores e do reitor. Daniel e Davi pairaram pela sala a procura de assentos em que ambos pudessem ficar confortáveis, mas pensando no tamanho do colega, Daniel percebeu a lotação dos primeiros lugares e decidiu que a melhor coisa seria se eles se sentassem nos assentos do fundo.

Subindo o corredor acima e esbarrando em alguns alunos, Daniel percebeu alguns narizes empinados naquela parte da sala. Mas só incomodou-se verdadeiramente quando ouvira o comentário que um rapaz quando passaram por perto dele e seu amigo:

– Bla, bla, bla, suspensórios... – e riram maliciosamente.

Qual o problema com seus suspensórios? Eram diferentes, claro, mas eram práticos. Estava acostumado a usá-los por toda a vida, e agora seria julgado por isso? Quem eram aquelas pessoas, afinal?

Mesmo após terem se sentado, Daniel não conseguia concentrar-se nas palavras até sinceras do reitor. Seus olhos sobrevoaram seus arredores, sentindo-se incomodado com as presenças que o cercavam. Rostos austeros demais para a pouca idade, atitudes de nada contidas de desdém, excessos com a aparência... Olhares tortos, cheios de julgamento, alguns com tamanho desprezo que era como se tivessem acabado de tirar Daniel dos seus narizes. Em contraste às boas vindas de Zezinho, muito preocupava o jovem pintor ter que conviver com calouros como aqueles. Nem quis pensar como seriam os veteranos...

Nas cadeiras abaixo, viu salpicados na multidão diversos tipos de pessoa – e mais se destacavam aqueles com cabelos esquisitos, roupas estranhas e atitudes atípicas... Bom, pelo menos, no ponto de vista do humilde camponês. Daniel não entendia a necessidade de autoafirmação que as pessoas da cidade tinham, especialmente os jovens. Mas a sensação que tinha, e cada vez mais forte, era a de que ele era o alienígena estranho do Liceu.

As palavras do reitor ficaram vazias, e uma apreensão começou a tomar conta do seu ser. Apertava os dedos nervosamente em suas mãos, com a sensação de estar sendo afligido por uma força invisível, o peso de dezenas de setas apontadas em sua direção. Encolhia-se em seu assento como se estivesse derretendo, querendo sumir pelo ralo como a água dos esgotos...

Acostumado com o conforto da vida pacata e solitária do campo, Daniel não tinha interagido com muitos jovens de sua idade. Estudara muito, aprimorara seus talentos: tinha muito conhecimento dessa criatura chamada “ser humano”. Ou ao menos, pensava ter. Inconscientemente, sempre se viu como o cientista que analisa o formigueiro artificial – agora que era uma formiga, não tinha ideia do que fazer. Agora que havia caído de paraquedas naquele circo de horrores, todos os seus estudos de história, de filosofia, de dialética... Tudo voou pelos ares.

Viu-se como a criança inapta, que não conseguia lidar com as frustrações. Ao menos se tivesse crescido com outros jovens, frequentado a escola e saído para se divertir como um rapaz comum! Um rapaz da sua idade! Mas sempre cresceu cercado de adultos, com acesso à boa educação mas sem direito a muitas brincadeiras. Eram adultos inteligentes, mas não era o bastante... Percebeu-se passando pela crise do desmame. Era o filhote desgarrado do leito e conforto materno, que não estava preparado para encarar o mundo selvagem e entrar na fase adulta. Pensava ser muito esperto e muito maduro... Mas nada mais poderia ter sido feito no passado para reverter essa situação. Já era tarde demais.

Em determinado momento, a tortura emocional de Daniel tornou-se também física. Foi afligido por uma vertigem, acompanhada de um suor frio gotejando pelos poros de sua testa.

– Daniel? Você tá bem? – a voz de Davi pareceu distante, apesar dele estar bem ali ao seu lado.

– Estou sim. Eu só...

No momento que disse aquilo, Daniel engasgou-se um arroto pesado lhe subindo o esôfago. Seu estômago estava instável, fervilhando como consequência de sua instabilidade emocional. Sua cabeça ressoou como um gongo e, tomado por uma força instintiva, Daniel saiu em disparada pelas cadeiras com grande incauto. Esbarrando e tropeçando em joelhos e pés de reflexo lento, abaixou os olhos para evitar encarar aqueles de quem procurava fugir antes que um acidente acontecesse.

– Temos, pelo menos, dois eventos... Anuais de feiras de empreendedorismo, onde seus talentos podem ser apreciados, e reconhecidos por diversos... – Daniel chamou tanta atenção que até o reitor o vira correndo daquela distância, a ponto de fazê-lo pausar suas sentenças.

Quando todos os olhares da sala, inclusive o dos administradores, caíram sobre Daniel, era como se um peso imenso fosse colocado em suas costas. Já na saída da sala, atravessando as portas duplas, esbarrou em alguns alunos e fora propriamente xingado. Tentou não se importar. Estava perdendo o controle de si mesmo, apoiando os braços no joelho e arfando incessantemente.

A cabeça pulsava, pulsava sem parar... Quando ergueu-se, sentiu o refluxo subindo sua garganta. Era agora, estava vindo. Cobriu a boca com a mão, ainda sentindo o esôfago ardendo com a acidez do suco gástrico, e foi correndo à toda velocidade em direção do seu quarto – pois Zezinho não mostrara-lhe, ou ele simplesmente não lembrava-se de onde ficavam os banheiros. Apenas de onde ficava seu quarto, e esperava chegar a tempo de evitar uma catástrofe...

A cada olhar atraído para si, partindo de reles transeuntes em seu caminho, Daniel sentia intensificar-se as pontadas em sua barriga. Trotando à toda velocidade, visão embaçada e a outra mão sobre a barriga, já encurvava-se pronto para expelir seus demônios. Para sua surpresa, a porta do quarto estava aberta, e como um trovão, Daniel adentrara o recinto e disparara em direção ao banheiro, onde teve apenas tempo de colocar-se de joelhos diante do vaso sanitário e ejetar para fora do corpo todas as toxinas, ansiedades e incertezas acumuladas em seu corpo.

O ato de vomitar, de colocar tudo de ruim e podre de dentro para fora, tinha um significado... De tal maneira que Daniel já se sentia mais leve ao erguer-se novamente. Era como se tivesse perdido o controle do próprio corpo, mas agora, estava de volta em si.

– Aaah... Aaahhrrg! – ele cerrava os olhos, procurando limpar-se com o papel higiênico enquanto recobrava o fôlego, apertando a descarga do vaso e dando um adeus àqueles dejetos indesejáveis.

Por um tempo ficou ali, sentando no vaso, refletindo pela maneira com que agira naquela tarde. Estava rezando internamente para que, dentre dezenas de calouros, ninguém se lembrasse de sua aparência – especialmente os administradores –, e o que acontecera não passasse de um fato “curioso” que sequer merecesse ser lembrado no futuro...

Procurou racionalizar seus sentimentos, assim tendo controle sobre eles (ou ao menos, parcialmente), e ao erguer-se novamente, sairia do banheiro como um novo homem, agora já mais disposto a enfrentar a realidade com dignidade, e segurança das próprias capacidades.

E, se nada desse certo, haviam sempre muitos banheiros acessíveis em todo o perímetro do Liceu.


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