Liceu de Artes W.L escrita por Nandarazzi, RukeNoKokoro


Capítulo 1
1º TRIMESTRE - Capítulo 1: Protocolo Escolar


Notas iniciais do capítulo

~ IMAGENS de REFERÊNCIA ~

— Planta arquitetônica do Liceu de Artes:
http://fc01.deviantart.net/fs70/f/2015/023/f/0/tzd14pa_by_nanaramos-d8f30yl.jpg

— Planta arquitetônica dos quartos: http://th04.deviantart.net/fs71/PRE/i/2015/023/4/7/quarto_liceu_by_nanaramos-d8f318n.jpg




~ GALERIA de PERSONAGENS ~

http://nanaramos.deviantart.com/gallery/52775462/Liceu-de-Artes-W-L



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Daniel deu graças pela ansiedade que sentia, pois as ideias loucas e expectativas exorbitantes tornaram sua de viagem de ônibus bem mais curta do que imaginara. Mordia a ponta dos dedos, olhando vagamente para a paisagem correndo através da sua janela. Desde que visitara o Liceu de Artes com sua tia, não pensava em outra coisa... Mas por fim, o grande momento havia finalmente chegado – e se dias antes a espera lhe pareceu uma eternidade, agora tinha a distinta sensação de que o tempo parecia correr duas vezes mais depressa.

Nos últimos dias, Daniel sempre andava sonhando acordando... Era como se a ficha ainda não houvesse caído. Mas agora, sentia o estômago revirar e já questionava se estava preparado para aquilo ou não. Sempre vivera com a tia, e de repente, passaria a estudar num internato com pessoas da cidade, teria uma rotina totalmente diferente da qual estava acostumado e inúmeros desafios pela frente. Deixaria para sempre o conforto da fazenda e dias tranquilos de sol, e perguntava-se se esta experiência não seria chocante demais para seu corpo suportar.

A silhueta do imenso prédio de arquitetura art-noveau ergueu-se no horizonte. Cercado de árvores de copas podadas em formato redondo, a construção tão ampla quanto um campus universitário destacava-se na paisagem campestre. O ônibus diminuía a velocidade, enfileirando-se atrás de alguns outros comboios carregados de alunos, à espera da sua vez de despeja-los e seguir seu caminho de volta a cidade. E como partículas agitando-se no ferver gradual da água ao fogo, os inquietos calouros preparavam-se para desembarcar quando lhes fosse dado o comando. Daniel agarrou firmemente a alça de sua bagagem de mão, tão leve se comparada às dos demais, como que procurando descontar naquele objeto toda a sua inquietação.

O cercado de ferro pauteado de pilares quadrados chegava ao fim. Ao lado do ônibus, os suntuosos portões soldados em delicados arabescos jaziam abertos para todos os alunos, representando as de boas-vindas ao Liceu de Artes Wallace Limeira, tão bem quanto a passagem para um novo período na vida daqueles jovens. Para alguns, tanto fazia estar ali ou não... Havia quem preferisse estar bem longe. Mas para muitos, especialmente Daniel, era difícil até manter-se de pé diante do grandioso momento!

“Que Deus me proteja... Que Deus me proteja!” – rezava intimamente, apertando os olhos, cerrando os dedos na alça do bagageiro sobre seu assento e retirando as malas pesadas. Pouco a pouco, os alunos se organizavam numa fila indiana e deixavam um a um o conforto do ônibus, sendo logo guiados por veteranos voluntariados a orientar os calouros quanto ao funcionamento e aposentos da escola.

A ansiedade e a espera fizeram Daniel refletir um pouco: talvez nunca estivera tão nervoso em toda a vida. Como que diante da morte iminente, o jovem colocou na balança os principais momentos de sua vida... Nem o beijo que lhe fora roubado pelo vizinho lhe deixara tão nervoso. Lembrou-se de ter ficado imensamente confuso na época, mas dada a simplicidade de seu espírito rural, procurou não pensar muito no assunto. Levaria anos para descobrir que gostava daquele rapaz, mesmo ele tendo sumido de sua vida poucos dias após o tal beijo furtado.

“Francisco”, era isso? Sim, era esse mesmo o nome... Sua aparência era bem comum. Na verdade, se o visse agora, quase quatro anos depois, não saberia dizer se o reconheceria: a puberdade é, muitas vezes, impiedosa. De qualquer forma, sua contribuição fora dada, e mais do que nunca, Daniel podia ter certeza das coisas que o agradavam mais... E enquanto mantivesse suas preferências sexuais bem preservadas, sabia que poderia sobreviver num internato masculino como o Liceu de Artes.

– Nada de alvoroço! Fila única, ouviram bem? Fila única! – a voz grave do motorista fez Daniel sair de seu transe temporário. Ainda bem: já estava na hora de recobrar o seu foco.

Deixou cuidadosamente o ônibus num pulo, arrastando as rodinhas de sua mala naquele chão tão almejado. Ao erguer os olhos, sentiu-se pequeno diante da opulência do Liceu, inaugurado há muitos anos atrás pelos maiores mestres das artes do país. O que começou com uma academia de letras e belas artes, hoje abrangia não apenas as sete artes tradicionais (música, dança, pintura, escultura, teatro, literatura e cinema), mas também ampliando seus horizontes para as novas tecnologias e agregando culinária, fotografia, quadrinhos, animação, modelagem em 3D e programação de jogos ao currículo de seus alunos.

O reconhecimento do Liceu de Artes W.L era tamanho que atingira nível internacional, tornando-se um dos maiores e mais influentes da América Latina. O diploma em um curso de artes do Liceu pesava mais do que o curso mais caro da faculdade (pública ou particular) mais renomada – e chegar até ali não foi fácil. Não bastasse um vestibular árduo, era necessário apresentar um trabalho artístico para a área de interesse que quisesse ingressar: Daniel teve dificuldades na prova, mas sua habilidade com os pincéis era inquestionável. “Seria um desperdício de talento não aceita-lo”, dissera o coordenador à sua tia.

Daniel riu baixinho ao lembrar-se disso. Apesar de tentar esconder, não era um rapaz muito modesto.

– Olá, tudo bem? – disse um rapazinho de feições honestas, bem diligente, apesar de um tanto baixinho e atarracado. Suas roupas um tanto quanto casuais indicavam que ele estava ali para ajudar – Seja bem-vindo ao Liceu de Artes Wallace Limeira!

– Oi. Tudo bem sim, e com você? – Daniel o cumprimentou de volta, educadamente – Parece que vocês vão ter um dia cheio hoje.

– Pode ter certeza – o rapaz lhe sorriu de forma agradável – Chamo-me José, mas todos me chamam de Zezinho, prazer em conhece-lo.

– Tem razão, Zezinho lhe cai melhor – seu comentário fez o rapaz corar levemente – Me chamo Daniel Cunha. Quer me ajudar a conhecer melhor a escola nova?

– Estou aqui para isso! Vamos? – Zezinho respondeu com entusiasmo.

O campus central era um lugar imenso e bem cuidado, com postes bem posicionados e um jardim verdejante, e arborizado apenas o bastante para oferecer diversas sombras gostosas nos dias de sol. As imensas avenidas que levavam aos prédios do colégio convergiam num monumento no centro do campus: um belo chafariz de águas dançantes. O lugar estava tão lindo como no dia que Daniel colocara os pés ali pela primeira vez...

... Exceto que, naquele dia, as avenidas não estavam lotadas de veteranos arrumando seus estandes.

– Não bastasse o vai e vem da chegada dos novos alunos, os organizadores dos clubes do Liceu estão preparando seus estandes para a feira de amanhã – disse Zezinho, enquanto eles atravessavam a avenida principal – Além das aulas, você pode participar das atividades dos clubes para ganhar horas complementares, além de interagir com alunos de interesses em comum!

– Eu vi um panfleto sobre isso quando vim fazer minha matrícula – Daniel lhe disse, olhando os seus arredores maravilhado – Soube também que esses clubes fazem eventos semanais, é isso mesmo?

– Sim, sim, você verá! – eles pararam diante de uma das mesas de identificação ao fim daquela avenida.

Eram quatro mesas, cada uma com uma placa diante de si com duas letras em destaque: A-F, G-L, M-R, S-Z. Zezinho pediu que Daniel assinasse numa folha de ponto, enquanto tratava de procurar o seu ID de estudante guardado numa gaveta, que só podia ser aberta com chaves oferecidas pelos veteranos voluntários. Daniel desconfiou que houvessem poucos funcionários capacitados para receber seus calouros, e mais tarde descobriria que todo evento no Liceu de Artes é uma oportunidade para se adquirir horas complementares. E a quem queriam enganar? Isso é bom para os alunos e é especialmente bom para o Liceu, que certamente economiza bastante com salários no final do dia.

– Aqui está seu ID de estudante – Zezinho lhe entregou um cartão de PVC, com as cores e tema do Liceu e informações de Daniel na frente e no verso, acompanhadas de uma foto 3x4. Daniel odiou ter que se ver nada fotogênico: como estava feio com aquela expressão vazia!

– Quando que eu vou precisar usar esse cartão? Apenas como identificação mesmo, ou eu teria alguma outra vantagem?

– Repare que, no verso, existe um código de barras – Zezinho apontou para a parte em que se localizavam as listras do código – Seu ID serve como sua assinatura digital! Sempre que comparecer às aulas ou às reuniões do clube, realizar uma tarefa no pátio de máquinas ou adquirir horas, todas essas informações ficarão cadastradas no seu ID de estudante. Portanto, cuide bem dele, hein!

Daniel guardou o cartão em sua carteira e prosseguiu ouvindo as instruções de Zezinho, que o levaria até seu dormitório para que descansasse um pouco. Porém, em certo momento, nada que o baixinho dissesse o faria ouvir – pois sua atenção havia sido completamente tomada pelo que acontecia diante de seus olhos.

Um imenso painel branco havia sido erguido na lateral esquerda da entrada do saguão principal do Liceu. O prédio principal tinha o formato da letra “H” (visto de cima) e pelo menos três andares, onde se localizavam tanto os departamentos administrativos, quanto os dormitórios e cozinhas comuns. O dito painel havia reunido uma pequena multidão, e estava sendo grafitado por um homem vestido de preto amarrado ao prédio por equipamentos de rapel. Aquela imagem por si só, um tanto quanto surreal para Daniel, deixou-o embasbacado.

O rapaz era ovacionado pelos companheiros. Seu rosto estava coberto com uma máscara de gás que o protegia dos tóxicos das tintas spray. Apoiava as latas na cintura e pintava com duas ao mesmo tempo, uma em cada mão, como uma espécie de “pistoleiro dos muros” – conforme Daniel o definira, mentalmente. Com grande habilidade, pintava um grafite gigante um homem estilizado do peito para cima, usando uma máscara de gás como a sua e com um dos braços em perspectiva segurando uma lata de tinta spray. Seria um autorretrato?

Fora os elementos e arabescos de grafite evocados ao redor do homem pintado, a impressão que se tinha era que um estava grafitando o outro. Apesar das gritantes diferenças de escala, já não se distinguia mais o criador da criatura... Era estupendo. O grafite separou opiniões: para alguns não passava de uma pichação e garranchos de mau gosto que em nada contribuíam para a sociedade – mas para outros, tratava-se de um trabalho de arte e não era menos importante que nenhuma outra manifestação cultural. E um trabalho muito bem executado.

Enquanto Daniel era guiado naquela direção, como que num transe hipnótico, Zezinho teve uma pequena comichão: sendo monitor de corredores, não podia deixar de sentir-se incomodado com multidões ou algazarras. Já havia se tornado instintivo. Num reflexo um tanto quanto egoísta, inventou uma desculpa para que Daniel não se aproximasse e eles fossem direto para seu quarto, e disse que era porquê logo chegaria a comissão de boas vindas e eles não podiam fazer desfeita.

Daniel acreditou, mas até sumirem dentro do prédio principal, não tirara os olhos daquela cena. Em seu íntimo, aquilo simbolizava o lado feroz e urbano que nunca tivera, a rebeldia que nunca desenvolvera em sua vida campestre e familiar. O grafite o impactou sobremaneira: tomara aquilo como o marco zero de sua nova vida.

Será que haviam muitos alunos assim por ali?


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