O estranho eremita escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 5
Ato 5 - Dissecação




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“Conforme o dia envelhecia, a ventania ganhava aspecto de vendaval, não pude esperar, na brasa quente que queimava dentro de casa, fiz-me de uma lembrança um jantar.”

Acordei no meu quarto, com roupas secas, sem saber se tudo não se passou de um sonho, cabe a você determinar, será mesmo que tudo que descrevo nessa (longa) carta, está ocorrendo comigo, ou são transformações e transcendências do meu próprio ser, invadindo o espaço-tempo e quebrando memórias, que estão sendo adicionadas em quadros inverídicos do que pode nunca ter se passado? Estou tão confuso como você, escritores tem esse dom, ler sem saber o que.
Levantei da cama, vesti o casaco, abri a porta, e logo senti a ventania estridente. Sai naquela tarde fria para buscar comida, no sentido mais primitivo dos homens, no sentido de caça e caçador.
A carapuça do inconformado é justa, com a sua ambiguidade pérfida, a ponto de te levar a crer que tudo poderia ter sido diferente, quem sabe essa praga nem começaria e invadiria meu sonhos se certas pressões nunca fossem sentidas. Mas não viveremos no mundo do “talvez”, o agora é tarde, devemos resgatar o que resta. Sou o puro hipócrita, ensina o certo, todavia se questiona se o correto deve ser feito por todos, inclusive por ele mesmo.
Deixei encostado na minha moradia o machado que usei na última caça, sai em busca de algum coelho que serviria de jantar.
Minha contemplação sempre foi livros e ilusões, meus devaneios levavam-me ao mundo perfeito criável aos meus dedos.
Não fira a ética de um homem levando-o para caçar, meu pai fez isso uma vez, a única pelo menos.
Acredito que naquele dia, mesmo que na sua forma esdrúxula de sentir, tinha se arrependido de tudo que me fez nos últimos anos, e quis ter um momento só meu e dele, mas não perdia o orgulho e as palavras truculentas, seu olhar era alto e só abaixava para avistar a presa, tentou me ensinar esse ideal, porém ensinar um surdo a ouvir é uma fórmula bestial de sentir amor, ou tripudiar, cada ensinamento com o seu tom.
Deu-me uma espingardinha, e um olhar penetrante que dizia inviavelmente a minha alma: “Atire para matar”. Entre as árvores, um coelho obviamente saltitante e na sua felicidade irracional esperava para ser atingido, estava-o na mira do meu pai, todavia invés de atirar, esperou que eu fizesse a ação. Hesitei, hesitei, o tiro atingiu a árvore, com uma rasante visão cortou meus olhos e sem fixar muito o olhar, atingiu o animal, que esburacado no chão dava seus últimos suspiros.
Arregalei os olhos, meus lábios se desidrataram repentinamente, quando meu criador se virou a mim, segurando a carabina, juraria a você, que esperava que um tiro rasgasse meu coração. Enquanto dos meus olhos uma centelha de lágrima, demonstrando tristeza e compaixão pela carcaça entre galhos e matos, o tilintar quebradiço dos outros olhos que me fixavam, era de decepção, li seus pensamentos: “Como criei um covarde como esse?”, preferi esse rótulo, digo-te, melhor que assassino. Entretanto, em certas situações terrenas, é necessário abandonar certos ideais, melhor eles morrerem de fome do que o seu corpo, o instinto de sobrevivência, infelizmente, sempre fala mais alto.
A brisa fazia meu sangue gelar, cristais de dor e quentura se formavam entre os meus nervos, parecia que o antigo menino, do passado doentio de uma juventude menos vivida, tentava salvar o que restava de sanidade, contorcia-se dentro de meu corpo, tentando reter atos desesperados por comida, condenava atos primitivos, não entendia que para viver tirar vidas é necessário, mesmo que não seja de corpos andantes ou saltitantes, deixar certas concepções serem obliteradas salvará muito do que ainda há.
Não queria adentrar a mata para ver um animal ser dissecado, mas seu andar incisivo, massacrando as plantas, trazia-me uma certa angústia e um medo de ficar sozinho, por mais que a solitude me apetecia, a velha opinião que sorrateiros monstros obscuros percorriam meu ponto cego prevalecia. Segui-o. Dotado de uma hipócrita astúcia.
O pesadelo havia apenas começado, mandou-me ajoelhar, com os olhos absurdecidos percebendo que o sangue que ali escorria era de uma criatura que minutos atrás saltava com uma felicidade pura.
Certos momentos soldam vilmente os nossos interiores, nossas personalidades se confundem muitas vezes com a poluição atmosférica e moral da sociedade, nosso dedo está no gatilho, um susto e... Foi isso que aconteceu, meu pai me deu a faca e disse com naturalidade exacerbada: “Comece do pescoço”.
Naquele tempo eu era vegetariano, minha família comprava verduras para o almoço apenas por minha causa.
Depois de um intenso pranto dilacerando, os mais sábios diriam que ao comer uma carne eu lembraria da cena e estagnaria o ato, todavia o orgulho e a birra tomou forma, não sei te explicar o que ao certo aconteceu. Em um aprofundamento banal, diria que me apeguei a essa lembrança por ser a única que consigo rebobinar com tanta clareza, e por isso tentei retirar alguma lição de moral, mesmo que beirasse o caos corriqueiro de mentes inquietas, almejando assassinar o que ainda vive por saber que morte não tarda a si.
Afirmo-te que mesmo após de relatar esses contratempos em um passado onde seis bilhões ainda viviam, não senti-me engrandecido arrancando pelas mãos a vida de mais um coelho. Pode parecer muita dramatização, todavia um dia saberá que ter concepções feridas podem doer muito mais que perder um ser querido.
Guarde essas palavras, anote-a em um papel toalha, quem sabe ele voe com a ventania e por ventura esteja errado.
Após pouco andar, encontrei a presa. Um coelho filhote, ainda cabaço de toda vida, não sentiu-me minha presença, ou talvez em sua ingenuidade deixou-me aproximar, invés de contemplar a beleza, arremeti um golpe mortal em seu minúsculo corpo.
Conforme o dia envelhecia, a ventania ganhava aspecto de vendaval, não pude esperar, na brasa quente que queimava dentro de casa, fiz-me de uma lembrança um jantar.


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