Parola escrita por


Capítulo 24
Cólera


Notas iniciais do capítulo

Sei que eu fiquei muito tempo sem postar, mil desculpas!



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O sal do mar em calmaria fúnebre ardia os seus olhos. As correntes submarinas que se alternavam entre quentes e frias relaxavam o seu corpo, mas por mais que tentasse, não conseguia afogar os seus pensamentos. Bolhas subiam em uma dança ritmada em direção à luz tremeluzente do sol a pino. O oxigênio começava a lhe faltar. Embora quisesse silenciar a sua voz interior, que tramava planos de vingança, balbuciava sobre justiça e gritava sua dor, só conseguia pensar nas perguntas fundamentais que sempre envolviam o simples ato de mergulhar para ele. Os seus pulmões começavam a arder, pedindo por um sopro de vida, mas a sua mente buscava inutilmente respostas que poderiam acalmar ou exaltar o seu coração. Como ela havia reagido? Teria se debatido furiosamente, buscado o elemento essencial da vida, tentado gritar em vão, enchendo os seus frágeis pulmões com água salgada? Teria aceitado pacificamente a sina atraída para si, observando a turbidez da luz da lua ao longe, gradativamente se esvanecendo junto com sua vida? Teria perdoado o seu traidor, a quem um dia chamou de irmão? Teria perdoado a impotência de Benjamin?

Ben emergiu de olhos fechados, respirando pesadamente, tentando recuperar o fôlego, sentido seu peito subir e descer em movimentos ritmados. Como era difícil se adaptar à luz do sol, que banhava seu corpo em calor. Calor que Maya jamais sentiria novamente. Passou a mão pelos longos cabelos escuros, afastando-os do rosto. Naquele momento ele queria gritar, descarregar através do som todas as suas frustrações. Queria ser ouvido por ela. Queria acordá-la do sono profundo da morte. Trazê-la de volta do outro plano.

E assim o fez. Benjamin esbravejou um grito rouco até as barreiras do que sua garganta poderia aguentar e até mesmo depois disso. A imensidão do oceano não respondeu. Ninguém apareceu para tirá-lo do torpor. Caminhou em direção à faixa de areia branca que se estendia à sua frente, coberta por raízes, algas, conchas e outros despojos que o mar trazia. A princípio achara que seu exílio seria uma maldição. Mesmo que sobrevivesse aos ferimentos, estaria condenado a morrer afogado quando ela se inundasse, pensou. Mas sua memória foi sua companheira, seu pai o havia guiado desde o amanhecer da sua infância e, pelo acaso ou pelo destino, seus ensinamentos lhe foram úteis. Bem encontrou um dos depósitos secretos dos tesouros da extinta companhia de navegantes à qual seu pai pertencia. Ali, no subsolo da ilha, jaziam tesouros de encher as vistas, mapas com rotas secretas para escapar dos diversos perigos escondidos no traiçoeiro horizonte marítimo, barris de pólvora, roupas ricamente ornamentadas com fios de ouro e prata, armas mortais, perfumes e óleos raros. E a riqueza mais impressionante escondida ali era a percepção de que nada daquilo tinha valor.

Além disso tudo, havia também uma espécie fantástica de criatura que habitava a caverna. Seu corpo mole e coberto por uma gosma entorpecente emitia um brilho azulado pálido. Seus movimentos eram lentos, como se estivesse sempre dormindo. Se alimentava do musgo que se formava nas paredes e bebia de uma água doce e turva que escorria sem parar entre as paredes, não parecia notar a presença de Benjamin no ambiente.

O isolamento e a solidão trouxeram para Benjamin um conhecimento próprio fenomenal, embora também o tivessem feito beirar a loucura. Por diversas vezes ele pensou em pôr fim a sua vida, sendo detido apenas pela noção de que tinha uma missão a completar. Ele daria a Maya um último presente. A vingança.

Pescava próximo à praia quando viu o primeiro navio aparecer numa tarde cinza que anunciava a tempestade que viria. Mas, ainda que tenha gesticulado, gritado e acenado, nada aconteceu. Naquela noite não conseguiu dormir. Estava dividido, por um lado sentia-se pequeno diante do imenso desafio da sobrevivência. Por outro, tinha esperança de que um dia seria resgatado dos braços do seu cativeiro invisível. O seu maior temor era nunca conseguir se libertar da prisão interna no seu peito.

O segundo navio veio muito tempo depois, embora não soubesse quanto tempo havia se passado. Teriam sido anos? Meses? Dias? Ele não sabia. A ansiedade por aquele momento o consumia de tal forma que, somada à dieta pobre e às condições às quais estava exposto, haviam reduzido o belo rapaz de olhos misteriosos e sorriso caloroso a um flagelo. Estava extremamente magro, seu tronco coberto por cicatrizes, o belo rosto tomado pela barba espessa e os longos cabelos emaranhados em uma mistura de sujeira, areia e sal. Sua pele jamais se adaptaria à exposição solar intensa, se renovando em um ciclo de descamação e vermelhidão constantes. Os lábios rachados em desuso sentiam falta da pronúncia de palavras oferecidas pelo diálogo e nos momentos de maior tédio ele se pegava balbuciando frases, nomes, sons. Nada quebrava mais o seu espírito do que o som rápido e avassalador da sua palavra favorita: “Maya... May-a... Ma-y-a... Maya."

Inicialmente não acreditou nos seus olhos, pensou se tratar de uma miragem mas, a medida que forçava a vista e inclinava o pescoço ele teve de reconhecer. Um navio se aproximava. Finalmente. Deveria se fazer notar, era sua única chance de salvação. Escalou a árvore maciça cravada no centro de sua ilha. Acenou, gritou, balançou seus galhos mas não viu sequer um sinal de resposta. Em um clarão de ideias tirou sua faca que trazia presa à cintura. Levantou-a, buscando o ângulo correto. Não conseguia, porém, criar o efeito esperado. Precisava encontrar um galho mais alto.

Com a faca entre os dentes escalou mais um pouco até chegar ao ponto perfeito na copa da árvore. Posicionou sua faca para refletir os raios solares em direção ao navio, movendo sua mão para criar uma alternação no sinal. Tinha esperança de ter finalmente encontrado seus salvadores. A alegria exultante tomou conta do seu coração, sentimento que não sentia a muito tempo. Um sorriso inesperado rasgou o seu rosto tenso, uma gota de suor escorreu por sua têmpora, gritava sem parar, ávido por ser ouvido. Respirava pesadamente entre lágrimas de esperança e felicidade, os ombros ardendo, a garganta arranhando, a alegria inabalável tomando conta do seu corpo e fazendo-o ignorar o princípio de dor no seu braço. Aves levantaram voo da árvore, um som quebrou o seu transe de felicidade. O galho em que se pendurava caiu.

O rapaz despertou com uma mão em seu rosto, as cócegas das ondas lambiam os seus dedos dos pés e um corpo robusto bloqueava o sol, projetando uma sombra sobre seu rosto. Mal havia recuperado os sentidos quando se assustou com o grito do estranho que o analisava: - Ele acordou!

Os anos que se seguiram ao resgate se passaram rápidos como o cair de um raio. Ben ofereceu riquezas ao capitão do navio mercante “La Estrella”, que o encontrara na ilha, em troca de um transporte seguro até o porto mais próximo. Lá, adquiriu seu próprio navio, simples e pequeno, dotado de uma modesta tripulação, voltando à ilha para buscar os tesouros que lá havia deixado. Começava a sentir-se como o homem que havia sido um dia. Suas mãos por reflexo ainda tateavam os bolsos em busca da flauta companheira nos pores-do-sol mais quietos em que sua mente vagava sem destino pelas lembranças do passado e aspirações do futuro. Continuou o homem de poucas palavras que sempre foi, mas agora sua voz trazia marcas do sofrimento que nunca deixaria para trás. Seus olhos de escuridão eram frios, duros, focados no seu maior objetivo.  Sua postura era tensa, de defesa, fechada, como se nunca mais fosse ser capaz de confiar em alguém.

O navio rasgava o oceano rumo a Tortuga, o vai e vem das ondas no casco pareciam entoar canções de coragem e dor. A espuma do mar se dissolvia em pequenos sussurros, os cheiros trazidos pelo vento pareciam desconhecidos e misteriosos. As velas brancas da embarcação pareciam tão incoerentes frente ao nome com que esta foi batizada. O “Cólera” perseguia a revanche noite a dentro.


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