Dezenove escrita por Drama Queen


Capítulo 5
Cuco


Notas iniciais do capítulo

Classificação: +16.
Avisos: Violência, Heterossexualidade, Ecchi.



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Eu adorava a chuva. Infelizmente, não quando ela vinha em uma terça-feira, dia útil, com trabalho no banco. Ah, isso eu odiava. Odiava como no quinto dia útil do mês as pessoas se espremiam dentro dos bancos da cidade, e odiava mais ainda como o relógio cuco cantava vezes demais antes que eu fosse atendida. Não que eu fosse muito impaciente, mas, no meu serviço, tempo são vidas.

Se você é daqueles que assistem a séries criminais com perfiladores e acha isso o máximo, então você não entende nada da profissão. Não faz ideia de como é cansativo passar horas e mais horas acordada, debruçada sobre livros de psicologia e psiquiatria, muitas vezes tendo que aprender por conta o que a Academia não ensinou, para receber um salário enxuto no começo do mês, e passar horas numa fila de banco para recebê-lo.

Por quê? Porque, nessa profissão, você aprende que quanto menos cartões, cheques e contas-corrente usar, menor a chance de ser vítima de falsificação. Chamem-me neurótica, não me importo. Quando for passar seu cartão de crédito em alguma máquina grampeada e ficar devendo horrores a todo mundo, você verá que minha neura não é à toa.

Prossigamos, então. Creio que o leitor não está interessado, nem ao menos acredita que aquela terça-feira chuvosa, dia sete de um mês qualquer, tenha sido apenas mais um quinto e comum dia útil. É bem óbvio que não.

Lá estava eu na fila, exibindo minhas lindas olheiras para toda a humanidade — ou quase toda ela. Já falei como bancos são lotados no começo do mês? —, quando o cuco soou insistentemente pela terceira vez. Uma hora e meia de fila não é fácil para ninguém. Troquei o peso de perna, esticando os braços lateralmente ao máximo. Não ao meu máximo, mas ao máximo que o aglomerado de escravos do capitalismo me permitia.

— Começo de mês é uma coisa bem chata, hm? — uma voz atrás de mim, tentando parecer amigável, perguntou. Pensei em não responder, estava muito rabugenta. Contudo, ser mal-educada não era do meu feitio.

— E mesmo sabendo disso, continuamos a repetir o mesmo processo toda vez — suspirei. — Somos criaturas deprimentes.

Ele apenas concordou com a cabeça, colocando as mãos nos bolsos da calça. Impaciente, talvez. Entediado, mais provavelmente. Seus olhos escuros vagaram pelo salão, e o homem, pouco mais velho que eu, também suspirou. Olhou no relógio, e então voltou a puxar assunto.

— Essa fila ainda vai me atrasar para o trabalho — bufou. — Creio que o mesmo deva acontecer com você.

— Hm, na realidade, não — dei de ombros. — Vantagens de se trabalhar à noite. Sabe como é, criminosos dificilmente agem de dia.

Ele arqueou uma das sobrancelhas, intrigado. Provavelmente fez a pergunta mental, no entanto, esperei até que as palavras saíssem de sua boca. Era um tanto quanto sádico, mas eu me divertia adivinhando o pensamento das pessoas e aguardando, apenas para provar a mim mesma que eu estava sempre certa — ou quase sempre. Na realidade, às vezes. Meu Deus, que péssima profiladora eu sou.

— Então... — olhou no relógio mais uma vez, voltando a me encarar — A senhorita é dos bonzinhos? Abençoados sejam os policiais excelentes que nos protegem de todo o mal — ironizou.

— Não sou exatamente uma policial. Só trabalho com eles — dei de ombros.

— Disserte sobre — pediu-me, deixando de encarar o relógio. Estava ficando interessado.

— Hm, será? — brinquei mais um pouco, sorrindo com o canto dos lábios. Adorava jogos mentais — Por que não tenta adivinhar?

— Aprendiz?

— Não.

— Guarda?

— Negativo.

— Legista?

— Deus, não! — exclamei, um pouco alto demais. Definitivamente, trabalhar com os vivos era complicado, mas preferia mil vezes a trabalhar com os mortos — Vamos lá, faça perguntas de sim ou não e eu respondo para lhe dar dicas.

— Tudo bem. Vejamos... — pensou por alguns segundos.

— Você carrega uma arma?

— Sim.

— Tem um distintivo?

— Tenho.

— É paga pelo município?

— Não.

— Pelos federais?

— Hm, sim.

— Está me analisando enquanto temos essa conversa?

Touché.

— Talvez.

Ele então sorriu, como se tivesse ganhado um jogo que ele mesmo inventara. Na realidade, um jogo que eu inventara. Era detestável que alguém tivesse ganhado de mim num jogo mental. Deprimente, para não dizer mais. Fechei um pouco a cara, mas isso não pareceu afastá-lo.

— E então, o que me diz?

— Sobre o quê? — questionei, confusa.

— Meu perfil, oras.

Revirei os olhos, impacientemente. Por que diabos toda vez que alguém descobre minha profissão, pede-me para analisá-lo? Eu não era capaz de entender. Suspirei e voltei a me virar para o jovem homem de cabelos e olhos escuros, todo engravatado e bem-vestido demais para a ocasião.

— Você tem uma profissão estressante, e que lhe exige muita pontualidade. É impaciente, não sei se devido ao serviço ou humor explosivo, mas provavelmente o primeiro, já que não surtou ao ser desafiado. É bem organizado, posso ver pelos laços do sapato e nó da gravata impecáveis, e parece agir bem diante de multidões, já que estas não parecem alterar seu humor. Provavelmente tem problemas de relacionamento amoroso, nenhuma aliança ou nada que indique um relacionamento afetivo. Além disso, o perfume que usa é forte demais, o que indica que procura atrair atenção, mas ao mesmo tempo adota um estilo visual extremamente comum, o que me leva a crer que não quer atrair pela aparência, e sim pelas ideias. Estranhamente, sinto que está sozinho em função do excesso de serviço, já pensou em tirar férias?

— Interessante — ele trocou a pasta de mãos —, prossiga.

— Estou certa, não estou? — sorri, vitoriosa — A mandíbula tensa o entrega. De qualquer forma, prossigamos: você tem grande polidez, provavelmente veio de família bem estruturada. Parece cansado do que faz, mas, ao mesmo tempo, não parece estressado, o que indica que gosta do serviço, ainda que exaustivo. Tem mania de limpeza, posso ver pelas unhas curtas, sapatos polidos, e óculos extremamente translúcidos. Eu poderia apostar que é muito metódico, somente isso justifica o fato de estar numa fila dessa, tendo possibilidade de cair fora.

— Uh... — ele franziu o cenho — Você estava indo bem, Ana — o cuco assobiou novamente, e o homem retirou um revólver na pasta, apontando-o para mim. Fiquei em choque por alguns segundos, sem entender o que estava acontecendo —, mas, infelizmente, errou o motivo. Agora, discretamente, vai me acompanhar até a sala dos fundos, sem tocar em nenhuma das duas pistolas que carrega, certo, anjo?

Ele me abraçou lateralmente, encostando o cano da arma em minhas costas, por baixo da jaqueta que eu usava. Guiou-me até a sala que aparentemente era onde os funcionários tiravam um descanso, acenando para dois guardas do banco. As pessoas pareciam não notar nenhum comportamento anormal. Ajeitei a jaqueta, apertando discretamente o botão da caneta em meu bolso. Era um localizador, enviava um pedido de socorro para a Central. Infelizmente, eu duvidava que a polícia fosse chegar a tempo de fazer qualquer coisa. Eu sabia como era aquilo, por dentro.

— Você tem me observado — concluí, só então notando que ele sabia meu primeiro nome. — Por quê?

— Que pergunta óbvia, não acha? — arqueou uma sobrancelha, tirando-me a arma do cós, e, em seguida, a do tornozelo. Guardou-as consigo, e pediu ajuda dos dois guardas para que me pusessem sentada numa cadeira. Amarrou-me, feliz que eu não tivesse reagido, mas não surpreso. Ele já esperava por aquilo. Dispensou os capangas, que saíram da sala, trancando a porta atrás de si. Então o tiroteio começou — Preciso amordaçá-la, ou pretende colaborar?

— Como se eu tivesse pra quem gritar — revirei os olhos, analisando o local à minha volta. Nada que pudesse usar para fugir. Ninguém por quem implorar ajuda.

— Esperta você. Não me admira que tenha subido na carreira tão rápido. Na realidade, achei por um momento que fosse teste do sofá, mas até que você tem potencial, sabia?

Ignorei as provocações.

— Como consegue dormir com as mãos cheias de sangue? — questionei. — Não é a primeira vez que faz isso.

— Minhas mãos estão limpas, Ana — sorriu. — Minha cabeça repousa tranquila à noite, e não tenho problemas para dormir. Na realidade, acho bem divertido que pessoas como você passem a noite procurando pessoas como eu. É para isso que a chamam, não é? Para encontrar pessoas que não deixam rastros.

— Não há crimes perfeitos. Todos vacilam. Normalmente acontece quando o ego infla demais, e eles passam a se achar intocáveis. Ou ainda, quando chegamos perto demais, e se sentem encurralados.

Ele riu, puxando uma cadeira e se sentando à minha frente. Retirou os óculos, colocando-o no bolso do terno, e apoiou seus antebraços sobre as pernas, curvando-se levemente até seus olhos estarem na mesma altura que os meus.

— Mais perto do que isso? — ele encarou o relógio no momento em que a gritaria parou, como se estivesse cronometrando o tempo do assalto — Eu não deixo pistas. Não conseguirá meu DNA na corda porque usei luvas. Não vai achar minhas digitais em nada. Não comi ou bebi, não sangrei, e sequer deixei que algum fio de cabelo caísse. O mais divertido é que posso passar o tempo que quiser aqui, porque fiquei próximo de você tempo o suficiente com um imã no bolso para desmagnetizar seu localizador. Não achou mesmo que eu havia errado, não é?

Fiquei muda por alguns segundos. Em choque, definitivamente.

Quem é você? — sussurrei, engolindo em seco.

— Seu pior pesadelo — sorriu. — Pode me chamar de Thomas.

— Não é seu nome de verdade — deduzi, corretamente. — Por que Thomas?

— Ah, anjo — ele passou o cano do revolver sobre minha clavícula, subindo pelo pescoço e parando sob minha cabeça, apontando a arma para cima —, porque eu quero.

Narcisita. Egocêntrico. Passível de falhas.

— Você me intriga — comecei a jogar. Eu só precisava de tempo — É mais organizado que criminosos comuns, mas, ao mesmo tempo, corre mais riscos. Parece até que quer brincar comigo. O tempo todo. Gastou um belo tempo pesquisando sobre mim, não?

— Não faça esses jogos mentais, é perda de tempo. Não vai ganhar nada com isso — ele deu de ombros, mantendo os olhos fixos no relógio. O caos retornara, mas não em forma de gritaria. As pessoas apenas pareciam ir embora, em prantos. O alarme cessou. — Pegue-me se puder.

E no mesmo instante a porta se abriu num estrondo, policiais invadiram o local, armas apontadas para o homem à minha frente. Ele sorriu, levando as mãos para trás da cabeça e ajoelhando-se perante a mim, com um sorriso cínico na cara.

— Você desmagnetizou meu localizador, não a rede toda. Foi fácil para eles descobrirem qual faltava. E minha rotina não é das mais variáveis, mas isso você já sabia, não é?

— Tudo bem — ele deu de ombros —, você ainda não venceu. Ou vai me dizer que não quer saber o motivo? Não quer saber por quê?

E levaram-no. Coletaram depoimentos, caçaram evidências, mas nada encontraram. Thomas tinha tudo para sair impune, não fosse meu depoimento. Mesmo assim, entregou-se. Entregou-se e, com isso, prendeu-me também. Ele era esperto, sabia que eu não descansaria enquanto não soubesse.

Mas eu sequer sabia quem era ele. Seu DNA não estava no banco de dados, e todas suas digitais haviam sido deterioradas por ácidos. Catalogaram-no assim: Thomas. E só. Foi fichado e preso, mas sua pena de trinta anos caiu para dois. Réu primário, até porque não tinham como comprovarem que não era. Fez acordo, delatou todos os parceiros, tinha bom comportamento, trabalhou na prisão. A arma que havia usado era de brinquedo, e ninguém fora morto ou ferido durante o assalto. Atenuantes, atenuantes.

Dois anos. E eu estava lá, no dia de sua soltura.

Com meus olhos péssimos, com olheiras muito mais profundas do que no dia em que nos vimos pela primeira vez. Muito mais cansada. E o motivo estava bem ali, diante de meus olhos, com o mesmo sorriso sacana que não saíra de sua cara durante a meia hora que me mantivera sob custódia. Parou a um metro de distância, mãos nos bolsos, esperando algum movimento meu.

— Que tal um café? — soltei o ar na forma de risada, vendo-o se aproximar. Entramos no carro e lhe ofereci a bebida que tinha comprado para a viagem, abrindo minha pasta e retirando os arquivos de lá de dentro. Thomas me observava, quieto — Sabe, eu me mantive bem ocupada esses dois anos.

— Ah, Ana — ele riu, passando os dedos pelo cabelo. — Poderia ter me visitado, você sabe.

Revirei os olhos. Eu havia ido lá algumas dezenas de vezes, mas ele sempre recusara visitas. Ali, em meu carro, provocava-me. Ligou o rádio, mas abaixei completamente o volume. Precisava falar.

— Eu dei uma olhada em assaltos a bancos nos últimos cinco anos. O que me chamou a atenção era que, em vários deles, aparentemente sem evidências, os criminosos foram todos pegos após denúncias anônimas, com grande parte do dinheiro roubado. O pouco que faltava em cada uma das vezes, veja que curioso, corresponde sempre a uma doação, também anônima, feita a alguma instituição beneficente, dois dias após o assalto. E, incrivelmente, o valor é o mais alto possível sem que haja prejuízo para os funcionários do banco. Os únicos que perdem são os banqueiros. Sempre.

— Extremamente interessante — ele sorriu. — Temos alguém que faz denúncias anônimas, entregando à justiça vários assaltantes, e que usa apenas dinheiro dos extremamente ricos para ajudar os carentes. O que isso lhe parece, Ana?

— Diga-me você. O que isso lhe parece, Thomas? — provoquei-o.

— Eu diria que temos um Robin Hood do século XXI — terminou seu café, livrando-se do copo plástico. — Já descobriu por que você? — neguei com a cabeça, e ele riu. Colocou uma mão sob meu queixo, fazendo-me virar e encará-lo nos olhos — Lutem e lutem novamente, até que cordeiros se transformem em leões.

Choque.

— Como você... — levei a mão às costelas, instintivamente.

— Quando fiz a minha, ele me disse que uma garota havia feito igual, meses antes. Bateu a curiosidade — ele deu de ombros, retirando a camiseta e mostrando a frase tatuada em suas costelas. As mesmas palavras, no mesmo lugar.

— Não acredito... — cobri a boca, pasma — Você me perseguiu, roubou uma dezena de bancos e ficou dois anos preso só para conhecer uma mulher que tem a mesma tatuagem que você? Isso é loucura, Thomas!

— Também ajudei hospitais, instituições de caridade e alguns sem-teto. Eu sei, sou incrível — vestiu-se novamente, dando risada e voltando a aumentar o som do rádio. — E aí, na sua casa, ou na minha?


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Notas finais do capítulo

Hey, folks! Muito obrigada pelas recomendações e comentários :D
E, Cam, demorou, mas "Cuco" saiu (;