Nothing Left to Lose (HIATUS) escrita por The Stolen Girl


Capítulo 6
Podemos ser consertados




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Chas e eu fomos ao shopping. Depois de trabalhar (ou melhor, sentar na recepção e esperar a hora de ir embora), ele me buscou em casa. Como dito, consegui minhas maquiagens de volta e ainda ganhei outra, que por sinal demorei quase uma hora para escolher. Tive que pagar um novo jeans para Chas. Há muito tempo eu nem passava perto de um shopping, mas conseguimos ficar a noite toda lá. Entramos em várias lojas, incluindo uma livraria, onde comprei coisas novas pra desenhar e livros que queria há tempos.

–Acho que o shopping vai fechar daqui a pouco. – ele disse, olhando o relógio no pulso.

–Então vamos...

No entanto, no cruzamento que levava a minha casa, ele pegou outra entrada.

–Onde estamos indo?

–Vai ver. – ele respondeu, com um olhar travesso.

Eu estava cansada. Meus pés doíam e eu ansiava por um banho. Porém, diante da visão de Chas relativamente contente, até feliz, eu não pude pedir que ele me levasse pra casa. Atrás do sorriso e da animação, eu sabia, ainda estava a dor e o medo de perder sua mãe. Tudo o que eu podia fazer naquele momento era o acompanhar até onde quer que estejamos indo e tentar fazer com que ele se esqueça das dificuldades de sua vida por um tempo.

Quando percebi, o trailer de Chas estava estacionado em frente ao karaokê que eu tinha visitado essa semana. Estava cheio. Alguém cantava e, quando parou, foi aplaudido.

–Eu estive aqui essa semana. – Chas me olhou, surpreso. – Bem, eu só fiquei sentada, mas estava aí.

Entramos e nos sentamos. Estávamos fazendo nosso pedido quando outro corajoso se aventurou no karaokê. A garçonete deixou conosco a lista das músicas disponíveis. Nem me dei o trabalho de olhá-la. Chas pegou e analisou minuciosamente a lista.

Levantou-se e falou algo para o rapaz que comandava as músicas. Quando voltou, perguntei:

–Vai cantar?

–Não. – então, antes que eu pudesse dizer algo, nosso lanche chegou.

Enquanto comia, o carinha pegou o microfone e disse:

–O palco está reservado agora, gente! Com a música “Friday I’m in Love”, do The Cure, Charlie!

–Eu adoro essa música! – exclamei, esperando que minha xará subisse ao palco.

–Então fique à vontade. É você que ele está chamando. – disse Chas.

Olhei espantada em volta, notando que todos me encaravam, esperando que eu me levantasse. Eu não queria. Eu não quero fazer isso. Vou matar o Chas. Cruel e vagarosamente.

–Ande logo Charlie, ou vai deixar todos esperando? – ele provocou.

Andei devagar até o palco e disse ao microfone:

–Me desculpem, eu não costumo cantar. – justificando antecipadamente o fiasco que seria aquilo.

Friday I’m In Love começou a tocar. Por sorte, ou talvez porque Chas já sabia disso, eu conheço essa música. Não só conhecia como gostava muito.

–“ I don't care if Monday's blue
Tuesday's grey and Wednesday too
Thursday I don't care about you
It's Friday I'm in love”

Aos poucos, fui me soltando, mas ainda me sentia desconfortável. Até que minha parte preferida chegou e eu soltei a minha voz (que eu achava até razoável).

–“ Dressed up to the eyes
It's a wonderful surprise
To see your shoes and your spirits rise
Throwing out your frown
And just smiling at the sound
And as sleek as a shriek
Spinning round and round
Always take a big bite
It's such a gorgeous sight
To see you eat in the middle of the night
You can never get enough
Enough of this stuff
It's Friday I'm in love”

A música acabou e eu voltei tímida para meu lugar, ao som de aplausos.

–Eu te odeio com todas as minhas forças, Chas.

–Ei, você foi bem. Por favor, não me mate. Eu só queria que você se divertisse. – e me lançou um olhar que pareceu realmente arrependido.

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Fomos pro meu apartamento. Perdoei Chas, até porque não poderia realizar meu desejo de matá-lo dolorosamente sem sofrer com as consequências.

–Me deixa ver seus desenhos direito? –ele me perguntou enquanto tomávamos café.

–Não tem nada demais neles. – ele me encarou – Sério, não gosto de mostrá-los pra ninguém.

–Por favor. Juro que não faço nenhum comentário. Nada.

–Cara, você é muito insistente. – reclamei, já de pé pra buscar os desenhos. Entreguei-os na mão dele, que passou a folheá-los. Ele parou um instante e me indicou um desenho bem antigo que eu havia feito quando ainda era uma pessoa mais sociável. Uma garota se balançando num balanço pendurado numa grande árvore. – Esse é especialmente lindo.

–Obrigada.

Depois de ver cada um deles, ele tirou algo do bolso e o juntou com meus desenhos. Quando os peguei, percebi que era o par de olhos que eu havia tentado jogar fora, mas que ele levou. Mas estava diferente. O azul fora substituído da melhor maneira possível por preto. Sorri ao ver aquilo.

–Agora não são mais os olhos dele. – Chas disse, um pouco envergonhado.

–É. Acho que agora posso conviver com esse desenho.

“Os olhos dele”. Droga. E aquela mensagem?

–Eu devo responder?

–Han? – ele não sabe do que estou falando, óbvio. Peguei o celular e deixei que ele mesmo visse a mensagem. – É dele?

Apenas assenti com a cabeça.

–Você quer? – ele me respondeu com outra pergunta. Ótimo.

–Eu não sei. – disse baixinho. Mas na verdade, lá no fundo, eu sabia. Uma parte de mim sabe que eu quero responder essa maldita mensagem, que eu quero profundamente fazer isso.

–Faça o que não vai magoar você. – E o que não vai me magoar? Eu já sou uma pessoa magoada.

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Eu acho que não segui o conselho de Chas e fiz aquilo que eu mais queria, mas que também mais irá me magoar. Não é uma previsão de futuro nem nada do tipo. Sou só eu e minha vida. Pra mim, a mágoa é inevitável. E desde que Nicolas entrou na minha vida, ela veio junto. E eu já não tenho mais salvação. Está no meu destino ser usada e iludida. É como se eu gostasse disso. Mas acredite, é a pior coisa que existe não conseguir não gostar do que te machuca e te ilude. É a pior coisa que existe ser a Charlie. E, infelizmente, ser a Charlie é meu eterno fardo.

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Acabamos esquecendo do assunto “herança do Chas” por um tempo. Toda a história com a mãe dele meio que o fez achar que havia coisa mais importante que aquilo. Realmente há. Mas se eu resolvi ajudá-lo, é porque vi que ele merecia. Então, eu vou correr atrás disso, mesmo que Chas não queira mais. Vou convencê-lo de que é preciso continuar com isso. Mas não agora.

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Minha mãe veio me visitar. No momento em que ela chegou, Chas saia. Dessa vez, eu quase o empurrei porta a fora. Não queria outra confraternização do meu único amigo (acho que posso considerá-lo assim) e minha mãe. Ela trouxe pizza.

Enquanto comíamos, ela perguntou:

–Está bem minha filha?

–Sim, e a senhora? – nesse momento ela me olhou com a cara fechada. – Ah. Esqueci. Nada de senhora.

–Isso mesmo. – ela suspirou – Estamos bem, Charlie.

Não gostei do plural. Eu perguntei sobre ela, não sobre ele.

–Você sabe que não pode simplesmente fingir que seu irmão não existe. – ela acusou.

–Então quer que eu finja que nada aconteceu? Pouco me importa se ele está bem ou não, mãe.

–Por que guardar tanto rancor? Seu pai teria morrido de qualquer forma.

–Como você tem tanta certeza? Cameron é um insensível. Ele nunca se preocupou comigo então por que devo me preocupar com ele?

–Esqueça isso, toda essa mágoa só te faz mal. – seu tom não era de acusação.

–Você realmente acha que, se ele não tivesse feito o que fez, papai teria morrido? Ele ao menos teria aguentado um pouco mais.

–Eu não pretendo discutir isso com você de novo.

Esse assunto sempre esgota qualquer atmosfera leve entre mim e minha mãe. Como sempre, depois de tentar introduzir sua opinião em minha cabeça, ela vai embora.

Eu e papai sempre fomos próximos. Eu sabia que depois de 10 anos de casamento ele e mamãe não se toleravam mais. Eu havia deixado claro que, se fosse pro bem deles, não me importaria em ter pais separados. Mas Cameron não aceitou quando eles disseram que pretendiam se divorciar, e começou a se drogar. Poucos meses depois ele já estava irreconhecível. Toda a beleza de seus traços havia sumido aos meus olhos, porque eu passei a odiá-lo. Quando ele começou a usar drogas, papai descobriu que estava doente. Problemas cardíacos. Nada que doses diárias de remédios não resolvessem. Ele tinha muito fé e acreditava que Cameron sairia dessa, mas depois percebeu que não era assim tão simples. Um vício como o do meu irmão exigia força de vontade pra ser superado. Porém, a raiva que ele alimentava de nossos pais não o permitia tentar se livrar da realidade em que se enfiou. Ele piorava a cada dia, e papai também. Toda vez que Cameron roubava coisas de casa ou surtava sem motivos, papai sucumbia um pouco mais. Qualquer problema virava motivo de grande desgaste emocional pro meu pai, que tinha seu coração mais fraco a cada minuto. Cameron nem sequer morava com nenhum dos nossos pais depois da separação, mas ia a suas casas atrás de dinheiro e em busca de mais tempo para torturar ambos com palavras cruéis. Eu não conseguia mais encarar meu irmão e me afastei. Visitava meus pais, principalmente papai. E um dia estávamos os dois a caminho de casa, quando ouvimos gritos de súplica vindos de dentro da casa dele. Eu entrei primeiro, somente para encontrar meu irmão agredindo outra infeliz como ele. A moça chorava e me pedia socorro. Papai entrou e viu aquilo, a decepção estampada em seus olhos. Algo que ele nos ensinou foi não atacar alguém mais fraco. Não há glória em vencer ou agredir alguém que não pode ao menos se defender. E Cameron estava agredindo uma mulher na nossa frente. Ele nos notou ali, mas não parou. Estava drogado. Levou a mão ao bolso e tirou de lá uma faca. Ele queria matar a garota. E teria feito isso se o vizinho não tivesse chamado a polícia, ou se meu pai não tivesse se enfiado entre os dois. A polícia chegou no exato momento em que Cameron pulava em cima da mulher e que meu pai caia no chão, morto. Ele não suportou ver o filho fazendo algo tão desprezível. Ele não quis mais lutar contra o problema de coração que tinha. Deve ter pensado que, se ia morrer, porque não ali, salvando alguém. Por que não ali, antes que tivesse que conviver com o fato de que seu próprio filho matou alguém.

Cameron foi preso, mas saiu cerca de um ano depois. Nós éramos novos, isso é verdade. Mas nada justifica o que ele fez. Desde então, eu nunca mais consegui olhar a cara do meu próprio irmão sem ter vontade de matá-lo, exatamente como ele fez com meu pai.

No fundo, eu sei que Nicolas e o que ele me fez não é nada se comparado ao que aconteceu entre mim e meu irmão, mas ter tido aquele relacionamento com Nick só me levou pro fundo do poço ainda mais. Eu queria consolo. E ele apareceu na forma de um homem lindo de olhos azuis. E eu cedi.

Como mamãe ainda pode pensar que eu vou, que eu consigo, perdoá-lo? Nem sei como ela mesma fez isso. Ela é mãe, deve ser por isso. Mas eu não tenho obrigação nenhuma com o idiota que, infelizmente, tem meu sangue.

Depois que ele se livrou das drogas, parece que o problema passou a ser eu com minhas cicatrizes e cortes e idas ao hospital. Mas eu não ligo. Pelo menos assim minha mãe não insiste em me fazer mudar de ideia. Pelo menos assim eu tenho algo a que culpar por ser como sou. Mas no fundo, sei que é só o rancor, a mágoa e o ódio que ainda me corroem.

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A mãe de Chas morreu. Uma semana se passou e ele teve que voltar pra cuidar dela. Mas o inevitável aconteceu, e ela faleceu. Ele sabia que isso ia acontecer, mas a dor que ele está sentindo agora é irrefreável. Digo isso porque a conheço muito bem. Ele me avisou e pediu que eu fosse ao enterro. Eu detesto cemitérios e hospitais e tudo ligado a morte, mas como negaria? Acabei indo.

Como achei que seria, Chas está péssimo. Olheiras profundas preenchem seu belo rosto. Seus olhos estão inchados e vermelhos. Pela primeira vez desde muito tempo, eu abraço alguém sem nem hesitar.

–Sinto muito. – sussurro. Ele não me responde, e eu sei que qualquer resposta nesse momento é totalmente desnecessária.

A cerimônia foi rápida, e os únicos presentes eram Chas, eu e tios e tias dele. Depois de terminada, eu estava prestes a ir embora, quando ele pegou minha mão e me levou até seu trailer. Partimos em silêncio.

No carro, ele chorou e parou no acostamento. O cemitério era bastante afastado, sendo necessário passar pela rodovia para voltar para cidade. Ele chorou tanto que podia até sentir sua dor, sua frustração no ar. E chorei também. Silenciosamente. Lá fora uma chuva torrencial começou a cair. Eu o fiz sair do volante e se sentar em sua cama.

–Por que, Charlie? – e repetiu essa frase muitas e muitas vezes.

–A vida é injusta, Chas. Eu sei.

–Não! – ele começou a gritar – Você não sabe de nada! Acha injusto ter sido abandonada por um idiota qualquer? Experimente perder seus pais e verá a injustiça!

Suas palavras me feriram. Mas eu não disse nada. Ele não sabe das minhas perdas. Eu não posso julgá-lo. Voltei para meu lugar no banco do passageiro enquanto a tempestade fluía lá fora.

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Chas acabou dormindo por cerca de meia hora e quando acordou a tempestade só havia piorado. Ele sentou-se ao volante, mas não fez menção de ligar o carro.

–Desculpe. – ele não precisou dizer porquê.

–Ao menos podia ter me deixado ir embora, não? Ou só queria descontar sua perda em alguém? Não sou uma boa pessoa pra isso. Minhas perdas podem estar escondidas dentro de mim, mas elas existem, Chas. – tirei do bolso o colar que peguei antes de ir ao cemitério. Abri o pingente. – É meu pai. Ele morreu há alguns anos.

–Eu... eu não sabia.

–Tudo bem. – e então guardei o objeto.

O silencio permaneceu até que ele resolveu dizer novamente:

–Desculpe.

Eu levantei e fui até a cama. Sentei-me. Chas veio logo atrás e se sentou ao meu lado, abraçando-me de lado. Eu o encarei. Ambos estamos marcados agora. Ambos temos nossas feridas, nossas perdas. Ambos precisamos ser consertados.

Ele acaricia minha bochecha com uma das mãos e afasta meu cabelo. Centímetro por centímetro, o espaço entre nós vai diminuindo, até nossas bocas estarem coladas e ele não existir mais. Um beijo de dor. Um beijo de compaixão. Sem que percebamos, já estamos deitados, e ele ainda me beija. Quando finalmente nos afastamos um pouco, eu digo:

–Talvez você seja quem vai me consertar. – digo isso, mesmo sabendo que ele possa não entender o significado dessas palavras. E nesse momento, nem Nicolas nem sua mensagem ou minha resposta a ela importam. Cameron e seus atos inconsequentes não importam. Minha mãe e seus argumentos não importam. “Você pode se consertar”, diz uma voz em minha cabeça.

Com isso, me aconchego em seu peito e adormecemos.

Afinal, talvez possamos consertar um ao outro. Talvez.


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