CAPÍTULO II

Eu já não controlava mais o corpo de Allen. Estávamos agora nos campos do Paraíso, espaçoso, coberto de grama verde e muitas almas de pessoas já falecidas sentadas abaixo de árvores conversando, mas totalmente sem emoções. A alma levada ao Paraíso, diferentemente de como as pessoas acreditam, não tem a vida após a morte feliz eternamente, é uma vida parada e vazia. Avistei alguns anjos menores voando calmamente em nossa direção. Eu não o controlava, somente enxergava e escutava o mesmo que ele, mas Allen morrera na explosão, ele não tinha mais emoções, eu quem sentia as coisas por ele.

Os anjos agarraram os braços do espírito de Allen e voaram para o Templo de Machiel, o anjo lutador, responsável por proteger a entrada do Éden e liderar o exército de Postestades, os anjos guerreiros. Allen foi solto com cuidado ao chão, aos pés do trono de Machiel. O anjo de longos cabelos castanhos e asas vermelhas levantou-se de seu trono prateado e caminhou até o corpo imóvel de Allen, eu apenas podia observar. Senti dois dedos de Machiel tocarem a testa de Allen e então eu pude controlá-lo, agora eu podia me mover livremente como um humano, meu superior reconstruiu o corpo de Allen Cross, conseguia sentir seu coração pulsando e até o sangue correndo em suas veias. Fiz minhas asas se abrirem, espantei-me ao notar que elas haviam mudado de cor, não eram mais brancas como as de um anjo comum, eram negras, escuras como uma noite sem luar. Olhei confuso para Machiel, o mesmo sorria com desdém.

– Está tudo bem, jovem arcanjo. – disse-me Machiel voltando para próximo de seu trono.

– Mas minhas asas… – protestei. – Estão negras!

Por um momento achei estranho, não estava com minha voz habitual, minha voz que sempre fora calma, agora estava rouca e mais grave. Eu falava com a voz de Allen Cross, precisaria me acostumar com isso.

– Não se incomode com isso. – respondeu ele. – É natural. Você aceitou descer à Terra para encontrar seu hospedeiro, essa é a condição. Suas asas brancas de um anjo puro, trocadas por asas negras de um anjo caído.

Tive que aceitar tal condição. Não me incomodava nem um pouco, até achei que combinavam mais com meu novo corpo. Allen possuía aspectos obscuros, asas negras são perfeitas para ele.

– Pois bem… – eu disse. – Diga-me, senhor. Diga-me o motivo de eu precisar ir à Terra buscar Allen.

– Guerra, Kael. Guerra. – Machiel agora me olhava apreensivo, incomodado com a situação.

– Contra quem, senhor? – perguntei.

– Três mil anos atrás, – Machiel começou sua história, tinha uma expressão pensativa em seu rosto, pensativa e entristecida, lembrava-se de algo ruim do passado. – Lúcifer liderou uma guerra contra os anjos, com seu exército de anjos caídos, após ser exilado para as profundezas do Inferno, ele queria se vingar… Tomar o lugar de Deus. Seus aliados se dirigiam em direção ao templo de Deus, espadas em punho, arcos a postos com flechas flamejantes, machados gigantes, qualquer tipo de arma medieval que você possa imaginar. Armas encantadas, brilhando em todas as cores existentes, enfeitiçadas com rituais de todas as religiões do mundo, capazes de derrotar anjos, capazes de derrotar Deus.

Armas que eram capazes de derrotar até Deus? Pensei. Isso é mesmo possível?

– É possível sim. – Ele respondeu sorrindo, lera minha mente várias vezes antes. Aquilo não me deixara impressionado ou assustado. Seus olhos, vermelhos como sangue, mostravam ódio e tristeza ao mesmo tempo. – Continuando… Eu liderei um contra-ataque contra as forças de Lúcifer. Arcanjos que lutaram com bravura, pelo bem e pela justiça, anjos guerreiros, feiticeiros e atiradores, nossas armas forjadas pelos melhores artesãos do universo, assim como as deles, enfeitiçadas, mas não por todas as religiões, enfeitiçadas com benção do nosso Deus. Foi uma luta intensa, durou anos, até mesmo décadas. Vários de nossos aliados morreram durante o combate, mas conseguimos, também, derrotar muitos de nossos inimigos. Flechas voavam por nossas cabeças acertando demônios diretamente em seus corações, anjos e demônios com espadas e grandes montantes se digladiavam, cortando cabeças e corpos ao meio. Feiticeiros de magia pura lutavam contra necromantes, que usavam almas malignas e esqueletos para duelarem por eles.

– Como conseguiram derrotá-lo, senhor? – perguntei interrompendo-o. Eu deveria ser o único anjo no céu que não sabia dessa história, mas mesmo que eu não saiba minha idade, não sou tão velho como Machiel, e bom… Eu não me interessava pelo passado.

– Nossos melhores feiticeiros, Kael. – disse ele. – A batalha foi conduzida por vários pontos dos Estados Unidos, na Terra. Quatro rituais foram feitos durante a batalha, quatro selos criados para aprisionar Lúcifer, quatro grandes religiões dos humanos. O primeiro selo: Júpiter, deus romano dos Céus, no alto do Mount McKinley, no Alasca; o segundo selo: Geb, deus egípcio da Terra, no fundo do Grand Canyon National Park, no Arizona; o terceiro selo: Apolo, deus grego do Sol, no centro do vulcão de Yellowstone, em Wyoming; o último e mais importante, o quarto selo: Máni, deus nórdico da Lua, exatamente a meia-noite este selo foi criado, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos, onde a luz da lua no centro do céu bate perfeitamente, no maior túmulo do Arlington National Cemetery, na Virgínia.

– Mas senhor… Nós seguimos apenas um único Deus. – eu disse. – Os antigos mortais eram todos politeístas, criavam deuses para tudo. Existe até mesmo um deus das portas.

– Sim, meu jovem. – disse ele movimentando a cabeça positivamente. – Porém esses rituais feitos por nossos feiticeiros não influenciam na religião, nosso Deus é único existente, você sabe, mas não podemos mudar a mente de certas pessoas. Essa história foi passada por diversos povos durante séculos, diferentes versões criadas, diferentes nomes dados aos personagens, mas eu estava lá, a versão que lhe contei é a verdadeira, e você, jovem arcanjo, você precisa impedir que os quatro selos sejam quebrados, impedir que Lúcifer seja liberto.