Danger escrita por Els


Capítulo 5
"V" de Vingança




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“Infeliz é aquele cuja fama enobrece suas desgraças” – Télefo.

Tal citação nunca teve tamanho significado para mim até agora. A partir disso, deduzo que, às vezes, se faz necessário passarmos por infortúnios tenebrosos da vida no propósito de alcançarmos a complexidade dos pensamentos e atitudes humanos e, dessa forma, aprendermos a lidar com seus imprevistos. Em adendo, poderia reforçar a mesma colocação ao referir Ácio: “Realmente, infeliz é o homem cuja fama torna suas desgraças famosas.”

Eu não tenho nada contra o sucesso ou o adjacente poder oriundo dele, longe disso, principalmente o merecido, resultante de árduo trabalho. Na realidade, o sucesso nunca foi, e jamais será o problema. O problema real consta no que fazemos com ele e o modo como o utilizamos a fim de obter apenas benefícios próprios, sem nos incomodarmos com os efeitos colaterais causados às outras pessoas.

Mas é neste momento que você deve estar se perguntando “o que a Gin quer dizer com tudo isso?”. Bom, eu esclarecerei suas dúvidas, até porque não tenho outra ocupação de maior relevância enquanto aguardo o veredito do delegado da polícia de Londres, que proclamará a minha soltura ou permanência nesta cela inóspita por mais algum tempo.


Dez horas antes...

PLIC. PLIC. PLIC.

BIP. BIP. BIP.

De pálpebras firmemente trancadas, eu acompanhava mentalmente cada som ambiental, diferenciando a agradável sinfonia de pássaros remontando a alvorada diária, dos ruídos irritantemente sincronizados nos aparelhos ao entorno e do pinga-pinga à direita. Alguns passos ligeiros e uma multiplicidade de vozes aparentemente distantes me despertaram por completo. Ou talvez eu já estivesse acordando por mim mesma. Sei lá, era difícil raciocinar acerca do pensamento com aquela puta dor martelando na minha cabeça.

Abri os olhos devagar, sentindo-os pesados, relutantes em corroborar com as tentativas de me manter alerta. Imediatamente, deparei com uma enorme janela, dando-me a visão panorâmica do céu cinzento, como se sucede em mais de 70% dos dias londrinos. Tentei virar a cabeça o mais lentamente possível, contudo a minha intencionalidade foi a cabo quando uma dor lancinante convergiu minha atenção para os pulsos. Hesitantemente, conduzi-os até o nível da vista, notando ambos marcados por uma espessa auréola avermelhada, tendo as bordas roxas e, em alguns pontos, uma coloração amarelada começando a se formar, como se os machucados fossem antigos.

O que aconteceu comigo?

Submersa em meu estudo, levei um tremendo susto com o ranger das dobradiças mal lubrificadas da porta. Uma mulher de meia idade, trajando um uniforme inteiramente azul, adentrou a enfermaria, dando-me um sorriso gentil ao passo que se aproximava do leito.

— Oh, fico contente que esteja acordada depois de tudo o que você passou, minha jovem.

Tudo o que eu passei? O que eu passei? Por que não lembro de nada?

Eu desejava desesperadamente partilhar essas e outras perguntas, jorrá-las de uma vez sobre a enfermeira, porém minha garganta arenosa me impediu de pronunciar as palavras. Era como se meu organismo rejeitasse a intenção, como se eu não bebesse água ou não falasse há dias.

— Você deve estar com fome e sede, mas não posso te oferecer nada até que o médico a examine, tudo bem?

Concordei com um gesto de cabeça mecânico, nem um pouco preocupada com água ou comida, já que, além de tudo, me sentia um pouco enjoada. O silêncio se apresentou de novo ao que ela concentrou-se nos procedimentos de cuidados, trocando a bolsa de soro no suporte e analisando as agulhas fixadas nos meus braços. Ao se dar por satisfeita, despediu-se de mim, prometendo chamar o médico e informar aos meus amigos a respeito da minha situação. Amigos? Ela só poderia estar redondamente equivocada ou, então, Pietra se encontrava na sala de espera aguardando por notícias. Será que ela sabia do que havia acontecido comigo e largara suas obrigações para me ver? Dificilmente. Sobretudo, considerando que nem mesmo no enterro de papai minha irmã esteve presente.

Alguns minutos depois, houve três batidas leves na porta e, logo em seguida, o rosto bonito de Gabe apareceu pela fresta. Ele ficou ali parado, com as mãos nos bolsos laterais da calça social e mirando-me com um olhar cuidadoso, cheio de pesar.

Em uma rápida inspeção da cabeça aos pés, percebi seu cabelo meio arrumado, meio despenteado, como de costume. A barba por fazer lhe conferia um ar de homem sério de negócios, e o terno cinza de linho, que lhe adornava muito bem o corpo esculpido pelos deuses olimpianos, reforçava ainda mais essa ideia. A camisa branca com as duas primeiras casas abertas, deixava os escassos pelos do peito à mostra. O par de sapatos de cor preta e bem lustrados servia como um perfeito complemento ao visual. E, como cereja do bolo, o cordão com pingente de crucifixo prata, pelo qual eu era apaixonada, reluzia ao entrar em contato com os reflexos da luz.

Oh, céus! Como desejei pular da cama, correr até ele e envolver seu pescoço em um abraço saudoso antes de enchê-lo de beijos a fim de espantar todos os meus fantasmas. Acredite em mim quando digo que um homem desse tipo é a causa e a solução para muitos problemas femininos, capaz de fundir o psicológico de qualquer mulher, desde as mais vulneráveis ao encanto masculino até as mais resistentes ao mesmo.

— Posso entrar? — ele perguntou timidamente, uma vez que eu, estando embasbacada diante da sua presença, não esbocei nenhuma reação propriamente dita.

— Gabe! — a exclamação soou enrouquecida e em um tom estranho ao proferir seu nome, no entanto eu não me importava. Era muito bom vê-lo, mal dava para acreditar. — Claro que pode. Entre.

Ele sorriu. Todavia, não era o seu sorriso espontâneo, o qual marca as laterais externas dos olhos com algumas ruguinhas charmosas. Nem era o seu sorriso implícito, do tipo que contém segredos com os quais eu fantasio poder desvendar os motivos. Tampouco, era o seu sorriso irônico, que ele divide comigo quando temos a obrigatoriedade de enfrentar as baboseiras de seu irmão.

Aquele sorriso era desconhecido a mim, não atribuía viço aos seus olhos de profunda intensidade, apenas impunha certa distância entre nós. Apesar de amar os sorrisos de Gabe, não sei se gostava especificamente daquele.

— Fiquei muito preocupado — ele disse. — Nossa, naquela noite eu quase tive um treco quando você desmaiou nos meus braços! Há muito tempo não levava um susto desses.

— Me desculpe por isso. Prometo compensar fazendo hora extra e até puxarei as orelhas do Danger, se você quiser — disse de um modo bem-humorado, buscando abrandar a seriedade da ocasião e expulsar a sensação ruim que se formava em meu peito sem qualquer razão aparente. Entretanto, ele não foi contagiado pelo meu tom divertido. Em vez de sorrir, lançou-me um olhar estranho e indecifrável, parecia até... decepcionado?! — Gabe, por que está me olhando assim? Aconteceu alguma coisa mais grave?

Gabe abriu a boca, mas não emitiu nenhum som, visto que uma segunda voz sobrepôs a dele. Concentramo-nos no senhor recém-chegado carregando um semblante exausto, cujo jaleco branquíssimo o qual trajava, fazia um interessante contraste com a barba majoritariamente grisalha e meio amarelada.

— Espero que ninguém esteja sem roupas por aqui — ele brincou, me forçando a dar-lhe um sorriso educado, mas nada sincero. Em seguida, o médico verificou o prontuário em mãos. — Genevieve Martins, estou certo?

— Me chame apenas de Gin, por favor.

— Ok, Gin. Muito prazer, sou o Dr. Edward Eastwood — estendi a mão a fim de receber seu cumprimento, mas a dor em meu pulso não permitiu um aperto forte. Ele percebeu minha carranca e logo desfez o contato, acomodando-se na ponta da cama. — Em primeiro lugar, preciso te dizer que entendo a sua posição. Tenho um filho da sua idade e, pelas minhas próprias experiências, lembro muito bem de como foi a minha juventude, principalmente os tempos de universidade. Muitas festas, bebidas, a possibilidade de conhecer novas pessoas, mas também a pressão de nos sentirmos enturmados. Por isso, antes de qualquer coisa, eu gostaria de te entregar este folheto e convidá-la a participar das reuniões desse grupo.

Franzi o cenho, dividida entre um Gabe empalidecido e o clínico, cauteloso quanto a maneira que eu iria reagir à sua fala. Mas reagir a quê? Se ao menos eu entendesse o que se passava ali... Por Deus! Nunca estive tão confusa. Será que havia batido a cabeça com força quando desmaiei? Não, não podia ser. Recordava nitidamente e, com certo esforço, ainda conseguia sentir o toque dos braços musculosos de Gabe ao meu redor, sustentando-me ao passo que meus músculos cediam, incapazes de obedecer aos comandos neurais.

Logo ao bater os olhos na capa do panfleto, li o slogan em enfáticas letras garrafais: “DIGA SIM À VIDA, NÃO ÀS DROGAS”. Abaixo, um subtítulo de impacto: “Pensei que eu amava os efeitos causados pelas drogas, mas, na verdade, eu descobri que amo muito mais viver.” – depoente anônimo do grupo antidrogas.

— O que é isso? Programa antidrogas? Para que eu precisaria participar de uma reunião dessas? — indaguei, confusa. No entanto, nenhum dos dois parecia ser o voluntário a esclarecer-me aquela insanidade. — Quanto tempo eu fiquei desacordada? O que encontraram no meu corpo? Por que eu passei mal daquele jeito? Eu pensei que era apenas uma intoxicação alimentar, mas quando acordei, vi todas essas marcas nos meus pulsos. Minha cabeça está explodindo de dor e minha boca, ressecada. — fiz uma pausa repentina para recuperar o fôlego e, concomitantemente, levei as mãos ao cabelo, embrenhando os dedos entre os fios ao me lembrar da minha mãe. Ela deveria estar surtando de preocupação. — Meu Deus, eu preciso ver a minha mãe!

Descobri as pernas, jogando as cobertas para o lado, e tentando não pensar na precariedade das vestes do hospital: fina, transparente e curta. Eu estava a ponto de me livrar de todas aquelas parafernálias conectadas ao meu tórax e braços, e descer da cama num pulo, porém tanto o médico quanto Gabe foram mais ágeis, impedindo a conclusão do ato.

— Acalme-se, querida, por favor — o Dr. Eastwood pediu com placidez, segurando-me pelos ombros. — Sua mãe sabe que você está aqui.

— Não, doutor, o senhor não entende...

Gabe postou-se ao meu lado, ocupando o lugar no colchão imediatamente oposto ao Dr. Eastwood e tomou minhas mãos dentre as suas a fim de me confortar.

— Gin, eu mandei duas das minhas empregadas pessoais para cuidar da sua mãe. Ela está sendo assistida 24 horas, não se preocupe. Agora, tente voltar ao controle, tudo bem?

Com isso, eu fiquei atônita. A propósito não só atônita como também agradecida, assustada, envergonhada, tudo ao mesmo tempo. Desde a morte do meu pai, éramos somente mamãe e eu enfrentando as adversidades por causa da sua doença, da falta de dinheiro e de todo o resto; uma dava apoio à outra, não existia a participação de uma terceira pessoa neste convívio. Portanto, eu estava ali, apática, não sabendo muito bem como deveria reagir a um favor tão grande, ainda mais vindo de uma pessoa que eu conheci há poucos meses. Optei por mandar o orgulho goela abaixo e agradeci.

Em resposta, Gabe fez um singelo movimento de cabeça, aceitando o agradecimento, e sorriu, encabulado, algo que maximizou substancialmente meu fascínio por ele. O médico, reparando que havia sobrado àquela altura, pigarreou alto para ter nossas atenções outra vez. Assim, sem perder mais tempo, iniciou as explicações:

— Por três dias, você esteve em estado oscilante de consciência. — Três dias! Uau, isso explica muita coisa... — Desenvolveu vários quadros psicossomáticos, incluindo sucessivos episódios de alucinação, euforia e agitação psicomotora. Teve febre, convulsões, por isso as enfermeiras te amarraram com bandagens à cama para impedir que você se machucasse enquanto se debatia. Logo que contornamos a situação, te soltamos e cuidamos dos ferimentos, mas prevejo que eles ficarão roxos em breve.

Ele suspendeu seu discurso, me concedendo um tempo na finalidade de digerir as informações. A sensação era de ter sido atingida na cabeça por uma bigorna. E, mesmo depois daquela explicação – que não esclarecia nada, na verdade –, eu continuava perdida. De acordo com meus instintos, ele tinha mais a me contar, porém estava relutante em fazê-lo. Eu, por minha conta, sentia curiosidade, mas também receio quanto a descobrir o resto.

— Não precisa ter medo ou vergonha de admitir o consumo de drogas, Gin. Eu atendo todos os dias muitos adolescentes e jovens com o mesmo problema que o seu. Através de um simples exame de sangue, minha equipe encontrou uma considerável quantidade muito mais potente de um composto sintético semelhante à epinefrina, um hormônio, que em sua forma natural, é secretado pelas glândulas adrenais e comumente chamado de adrenalina. Não sabia que já haviam produzido algo assim em laboratório. Infelizmente, tivemos de realizar uma lavagem digestiva no intuito de eliminarmos qualquer vestígio, uma vez que a rápida absorção estava afetando seriamente seu sistema nervoso.

Eu entrei em pânico. Drogas? Como acharam drogas no meu corpo? Pelo que me lembrava, engoli apenas dois ou três comprimidos para enjoo ao longo do dia e nada além disso.

Reconstruindo a sexta-feira, lembro-me de acordar no horário costumeiro, cuidar da minha mãe, depois tomar banho, me arrumar para o trabalho e antes de sair, beber uma caneca de café. Até aí, nada de excepcional. Passei a manhã atendendo às exigências de Danger, saí algumas vezes do estádio onde ocorreria o show, indo e voltando frequentemente.

Em torno do meio-dia, almocei no refeitório junto aos membros da equipe e da banda. Comi a mesma comida que os outros, já que as refeições principais eram preparadas por cozinheiros exclusivos. Devido a sentir-me mal logo após o almoço, não ingeri mais nada a não ser água e alguns comprimidos. No decorrer da tarde, mantive-me ocupada da mesma forma como se sucedeu a manhã e só à noite que...

Claro! A comida tailandesa! Só podia ter sido aquela porcaria! Sabe-se lá o que aqueles asiáticos malucos colocaram na minha porção!

Mais alguns minutos gastos pensando em tal hipótese, percebi que nada disso fazia sentido. Por que um restaurante famoso se prestaria a uma ação dessas, que possivelmente lhes acarretaria uma enorme dor de cabeça?

Eu pensava, pensava e pensava, e não chegava a nenhuma conclusão. Parei de tentar ao sentir uma pontada na cabeça, como se pequenas agulhas espetassem meus miolos. Concomitantemente, apercebi-me dos dois pares de olhos analisando meu rosto. Eu olhei um e outro, dando conta de que tanto Gabe quanto o Dr. Eastwood me encaravam com pena.

Oh, não! Isso não!

— Gabe... Gabe, por favor, acredite em mim. Eu não fiz... não usei essa tal droga sintética, só pode ter ocorrido um erro nos exames. Doutor, eu nunca usei drogas na minha vida! — clamei em urgência, as lágrimas picando o canto dos meus olhos. Eles trocaram um rápido olhar e, por conseguinte, tornaram a me fitar com a mesma expressão impassível. — Vocês não acreditam em mim, não é?

— Gin... — Gabe começou.

— Não, Gabe, não me venha com esse tom — cortei-o rudemente. — Eu consigo ver em seus olhos o quanto você parece decepcionado. Estou sendo dispensada do emprego por causa deste suposto delito, não estou? — vi-o arregalar os olhos com a minha dedução repentina. Seus lábios entreabriram a fim de tomar uma profunda inspiração, mas em seguida se fecharam, contraindo-se em uma linha dura. — Não precisa responder, eu já entendi.

— Por favor, Gin, me escuta — Gabe sussurrou em sofrimento, levando as mãos ao cabelo já desgrenhado. — Essa decisão não cabe somente a mim. Tentei manter a notícia em segredo, mas a informação vazou de alguma forma e todos souberam o que aconteceu — meu estômago despencou. Todos?! É muito pior do que imaginei! — No dia seguinte à sua internação, recebi uma chamada telefônica dos patrocinadores, temerosos que isso virasse um escândalo midiático. Juro que fiz de tudo para contornar a situação, sei o quanto você precisa desse emprego, ainda mais depois que tomei a liberdade de ir à sua casa e conhecer a sua mãe. Ela realmente é um doce de pessoa. Agora entendo a quem você se espelhou. — ele concluiu, dando-me um sorriso meio triste.

Retribuí da mesma maneira. Sim, minha mãe é maravilhosa. E, provavelmente, estava decepcionada pelas notícias que recebera a respeito da sua filha primogênita. Suspirei profundamente. Qual foi o momento em que a minha vida pacata transformou-se neste inferno de Dante?

O silêncio desconfortável se apossou da enfermaria, deixando-me consciente outra vez dos sons oriundos da aparelhagem ligada ao meu corpo bem como o pinga-pinga irritante do soro. Àquela conjuntura, podia sentir até mesmo a sonda urinária instalada em meu interior. Pelo fato de ninguém dizer nada, preferi dar atenção às minhas mãos repousadas sobre o colo, cujos polegares descreviam círculos contínuos.

Segundos, talvez minutos, se arrastaram e então, eu tive uma luz de pensamento de procedência desconhecida, possivelmente emergente das profundezas da subconsciência.

— Doutor, por acaso essa droga poderia ser misturada à comida ou bebida?

O médico franziu sua testa naturalmente enrugada.

— Muito provavelmente. Em geral, drogas sintéticas são produzidas sob as formas de comprimido, injeção ou pó. Portanto, são solúveis. Por quê? O que tem em mente?

Bingo!

Ignorei a pergunta do Dr. Eastwood, voltando-me para um Gabe comportando a fisionomia igualmente intrigada.

— Faça-me um favor, sim? Vá até meu carro e procure uma garrafa d’água no porta-luvas. Tenha cuidado, porque eu precisarei dessa amostra para os testes de laboratório. Acho que compreendi exatamente o que está acontecendo aqui...

...eu só não imaginava que ele pudesse se rebaixar a este nível, completei em pensamento.



Em poucas horas, as devidas providências foram tomadas, e o Dr. Eastwood viera ao meu encontro para entregar os resultados laboratoriais de análise da amostra. Passei os olhos pela papelada com termos técnicos, não compreendendo muito bem o que estava escrito, mas ao chegar ao rodapé da última folha, li o que realmente interessava. Não existia mais qualquer dúvida, a amostra do conteúdo da garrafa, que Danger, de forma tão inusitadamente gentil me ofereceu naquela sexta-feira, deu positivo para o composto de epinefrina manipulado.

Fechei os olhos com demasiada força, tomando uma inspiração profunda e sentindo a raiva começando a emergir. Eu me sentia tão... tão... Idiota! Como não desconfiei de nada? Como não suspeitei das intenções ocultas na atitude dele? Crápula! Ele era verdadeiramente um! Pôs a minha saúde em risco com o único propósito de plantar uma prova a fim de causar a minha dispensa do emprego, já que todos os seus planos anteriores fracassaram.

Que miserável! O pior de tudo é que funcionou. Afinal, como eu iria provar a minha inocência? Eu não consumi a droga por conta própria, mas quem acreditaria na possibilidade de alguém ser capaz de confabular um plano tão mesquinho, quando eu mal conseguia acreditar nisso? Certamente, eu seria tachada como uma louca ou mentirosa, que na tentativa desesperada de se livrar da culpa, arranjou subterfúgios para jogá-la sobre os ombros de outra pessoa.

Ciente do destino à minha espera caso eu cometesse tamanho erro, preferi não compartilhar das descobertas com ninguém, tampouco com Gabe, cujo instinto natural era defender e acobertar as mazelas do irmão, independentemente da gravidade de seu erro. De todo modo, eu não podia culpá-lo, uma vez que cometia a mesma falha quando se tratava da minha irmã mais nova. Talvez este fosse o fardo dos primogênitos, os quais assumem a posição de guardiões dos caçulas.

Todavia, isso não era tudo. Segundo Gabe, o irmão esteve em busca de notícias minhas ao longo dos três dias em que estive inconsciente. Inclusive, enquanto nós, o Dr. Eastwood, Gabe e eu, debatíamos sobre o ocorrido, Danger estava o tempo todo na sala de espera. Provavelmente, ele tinha medo de que descobrissem a sua façanha ou pior, queria assistir de perto aos frutos do seu engenhoso trabalho psicopata. Eu juro que, se ele resolvesse adentrar aquela enfermaria, eu iria descontar todo o ódio que fluía-me no interior das veias, arrancando seus olhos com as minhas próprias unhas.

Eu queria... Não, não. Eu necessitava urgentemente de vingança. Não podia deixar o momento passar ou a razão sobrepujaria todos os sentimentos malignos, me levando a declinar da decisão. Dessa vez, não dava para ignorar o que meu chefe, ou melhor, meu ex-chefe fizera. Ele não havia mexido com meu ego ou com a minha tolerância, sua falta de escrúpulos chegou ao nível de atentar contra a minha saúde. E isso não ficaria impune, decerto receberia paga à altura.

Três meses. Três malditos meses trabalhando para aquele infeliz, aguentando suas piadinhas sádicas, suas reclamações constantes, seus pedidos absurdos e aturando seu humor bipolar para, no fim, tê-lo armando contra mim de forma tão vil. Eu não engoliria esse sapo. Se eu seria demitida, então que a minha saída do emprego ficasse marcada na memória dele de uma forma épica, com direito a processo e toda a sorte de consequências que Danger, com toda a sua influência e dinheiro, armaria em seguida.

Eu não me importava com nada naquela hora. O sangue latejava em minhas veias, a respiração rasa inflamava meus pulmões; eu sentia a pressão nos ouvidos e formigamentos nos membros. Mas, como eu disse, nada importava. Eu tinha um plano e não sossegaria até pô-lo em prática.

O Dr. Eastwood retornou a seus afazeres, Gabe deixara a enfermaria pouco depois, então eu me achava sozinha no quarto. Desconectei as agulhas e ventosas espalhadas pelo meu corpo. Vasculhei a cômoda ao lado do leito, encontrando o que almejava: minhas roupas, sapatos, relógio de pulso, as poucas bijuterias e a bolsa. Nesta, guardei os papéis contendo a prova do crime de Danger. Não estava disposta a ficar esperando, enclausurada no hospital enquanto ele caminhava por aí, impune. Ali mesmo troquei o avental semitransparente pelo terninho que eu havia usado na sexta-feira, jogando meu casaco por cima.

Cuidadosamente, averiguei os dois extremos do corredor, assegurando-me de que a minha saída clandestina da enfermaria não seria barrada por um médico ou enfermeira de plantão. Empertiguei o tronco, simulando uma pose de quem apenas circulava despreocupadamente, sem nenhuma relação com o fato de estar às vias de fugir.

Somente quando entrei no elevador, notando estar no décimo terceiro piso, que consegui me sentir menos apreensiva, embora confinamentos em geral ainda me causassem pânico. No primeiro andar, apressei os passos, galgando a saída. Entretanto, estanquei na metade do percurso ao ver, através das portas de vidro da cantina, Gabe e Danger sentados defronte um ao outro, envoltos numa conversa descontraída e alheios às pessoas ao redor se indagando sobre a presença do cantor famoso. Duas adolescentes sussurravam entre risinhos e, logo depois, dirigiam seus olhares curiosos para Danger. Enquanto elas o idolatravam, eu sentia a bile subindo pelo esôfago, movida pelo repúdio à presença daquele homem.

Eu estava prestes a adentrar o local, contudo a luz de uma ideia me induziu a mudar meu rumo ao que avistei, escorados na parede da sala de espera imediatamente à frente da cantina, dois geeks conversando distraidamente, nem um pouco atentos a seus skates apoiados em um enorme vaso de planta. Sorri, satisfeita com o fato de que o plano novo era muito melhor que o anterior. Eu não sei por que pensei no skate, talvez por sua aparência resistente, que serviria muito bem ao meu propósito. Apesar de saber que era errado, me aproximei sorrateiramente e, com bastante discrição, peguei um deles. Rapidamente adiantei-me na direção oposta.

A adrenalina circulava à toda velocidade no meu organismo, pulsando forte e me tornando consciente de cada víscera. Ela me movimentava adiante, justificava o ato insano que eu estava à margem de cometer, sem pensar nas consequências.

Perdida em meio à loucura, recordei-me de uma matéria que eu cursei no primeiro período da faculdade: Ética e Psicologia do trabalho. Nas aulas, aprendi sobre os seguintes conceitos psicanalíticos: ego, superego e ID. Em termos ilustrativos, o ID é como o diabinho que te impulsiona a fazer o que dá na telha. "Quer pular de uma ponte? Opa! Por que não?". No extremo oposto, o superego é o anjinho medroso, que amarra firmemente a corda de bungee jumping na sua cintura, mas te aconselha até o último segundo a desistir de algo tão estúpido. O ego serve de equilíbrio entre estes polos.

Na presente ocasião, meu ego desequilibrado nocauteou o pobre querubim com um pouco da droga sintética e, depois de ele ter perdido a consciência, só ouvi conselhos do tipo “vá em frente”, “coloque sua raiva pra fora, você merece”, “nada do que você fizer será tão grave quanto o que Danger te fez”.

Saí do hospital para enfrentar a garoa fina da tarde. Apertei o casaco contra o corpo enquanto andava à procura de um BMW conversível de cor preta no parque de estacionamentos. Não era uma tarefa tão difícil, ainda mais tendo em vista que os demais veículos eram de modelos populares. Um sorriso mortífero estampou meu rosto quando o encontrei milimetricamente alinhado numa das vagas. O energúmeno podia não tratar bem as pessoas, mas sua estima por aquela máquina era inegável. Contornando o conversível, deslizei a ponta dos dedos na lataria encerada sem nenhum arranhão.

Uma pena...

Meu sorriso se ampliou no momento seguinte quando, após largar a bolsa no chão e posicionar o skate acima da minha cabeça, deixei a revolta, fúria, ódio, mágoa e desprezo pelo Danger serem descarregados na primeira skateada – ou seria skatada? Bom, na primeira porrada de skate – contra o vidro do painel traseiro e, dessa forma, acionando o alarme. Reunindo mais força, respirei fundo e acertei outro golpe, agora na lataria. Uma das rodinhas do skate voou, mas o corpo de madeira ainda estava intacto. Ergui minha ferramenta de ataque outra vez e, a partir desse instante, perdi o restante de autocontrole, desferindo golpes repetitivos em todos os lugares ao meu alcance.

— Isto... é pelo meu emprego! — gritei, descontrolada, parcialmente cônscia da aglomeração se formando ao redor — Isto... é pela minha saúde! E isto... por todas as mentiras!

Eu já estava perdendo as forças ao que uma voz horrorizada soou dentre a multidão. Suspendi a cabeça a fim de presenciar Danger e Gabe a poucos metros de mim, nenhum dos dois se atrevendo a aproximar.

— Que merda...? Caralho, meu carro! — o timbre de desespero misturou-se à raiva e perplexidade na voz de Danger. Mas eu não parei de atacar o veículo. Agora, investia com muito mais vontade que antes. — Sai de perto do meu bebê! Eu vou te processar, sua louca! Você está demitida!

— Louca? Me chama de louca outra vez.

— Lou... — não sei se ele concluiu o xingamento, porque nesse preciso instante, o skate acertou mais uma vez a lataria, produzindo um estrondo. — Cacete! Faz alguma coisa, Gabe! Seguranças!

Um breve período depois, dois brutamontes conseguiram frear meu surto. Um deles, segurando-me firmemente pela cintura e o outro, aproveitando para me desarmar do que sobrou do skate. No entanto, eu continuava me debatendo, embora não houvesse progresso quanto à minha libertação. Captei o semblante descrente de Gabe e o ódio injetado nos olhos do seu irmão. Se não estivéssemos em público, certamente ele voaria no meu pescoço.

— Diz pra eles me soltarem, Danger — ordenei corajosamente. Por sua vez, ele semicerrou as pálpebras e trancou a mandíbula. Em seguida, deu-me as costas na intenção de retornar ao hospital. — Manda eles me soltarem agora ou eu vou te denunciar por ter colocado drogas na minha garrafa d’água, seu crápula!

Minha acusação deixou a plateia estarrecida. O burburinho dos espectadores se alastrou em um pestanejar, todos pedindo por maiores esclarecimentos. E, sinceramente, eu estava disposta a lhes dar um espetáculo caso Danger não atendesse à minha reivindicação. Ao seu lado, Gabe permanecia em silêncio, mas havia uma certa compreensão ondulando em sua fisionomia. Ele encarava o irmão, ansiando por uma resposta, que não tardou.

— Larguem a garota.

À medida que me recompunha, resgatando a minha bolsa e o que restava da dignidade, mal me apercebi da aproximação dele. No segundo posterior, era arrastava pelo estacionamento, para longe dos olhos das testemunhas. Foi aí que meu sangue congelou. O que Danger pretendia fazer? Até onde eu havia experimentado com a nossa convivência diária, sabia que ele era capaz de loucuras, sobretudo quando tomado pela raiva.

— Agora nós vamos ter uma conversinha... — ele sussurrou entredentes, aumentando o aperto no meu braço.

Senhor, caso esteja me ouvindo agora, juro que se eu sair viva dessa, começarei a frequentar as missas de domingo. Amém.

— Ai, me solta, troglodita! Me solta, Danger! — finalmente paramos e eu fui liberada — Você machucou meu braço!

— Isso não é nada comparado ao que você fez ao meu carro — ele gritou de volta, fazendo-me recuar alguns passos.

— E quanto à minha saúde? Hein? — estalei. Ele não respondeu, apenas ficou ali parado, igual a um dois de paus. Nervosa, eu engatei os dedos no cabelo, começando a caminhar de um lado a outro. — Quando o médico me disse que tinha drogas no meu organismo e que por isso eu passei tão mal, não pude acreditar. Mas logo depois me lembrei que a única pessoa capaz de fazer isso comigo era você. E nem tente negar, porque eu tenho isto — tirei o papel da bolsa, lançando-o no peito dele. — Eu nunca pensei que você se rebaixaria a tanto.

— Eu disse que faria qualquer coisa para me livrar de você — deu de ombros, desinteressado. Abri e fechei a boca, impressionada com o valor leviano que ele atribuiu à situação. Realmente Samuel Danger era inacreditável! Acabara de confessar seu crime perante a vítima e tinha a cara lavada de nem ao menos fingir remorso. Balancei a cabeça em gesto negativo, depois resolvi me afastar dele, ciente de que qualquer tentativa de conversa sensata seria em vão. — Aonde está indo?

— À delegacia, não é óbvio? — joguei as palavras sobre o ombro.

— Tudo bem, eu não vou te demitir, satisfeita? — parei, me voltando para trás. — O quê?

— Peça desculpas — mandei.

— Quê? Não acha que está exagerando? — eu revirei os olhos e fiz menção de retomar o percurso, mas parei quando ele se precipitou ao meu encontro. — Ok, desculpa. Podemos voltar a ser amiguinhos? — montou uma careta de deboche antes de continuar: — Ah, não, não vai dar... Sabe por quê? Acabei de me lembrar que você detonou a minha máquina!

Mesmo em virtude de seus berros, não me intimidei. Em vez de retroceder, como o instinto de autopreservação me impulsionava a agir, avancei dois passos, sustentando o dedo em riste e chegando ao ponto de ter a sua respiração raivosa batendo no meu rosto.

— Eu não aceito suas merdas de desculpas. Não pense que vai se safar assim. Você queria guerra, não é? Então, guerra haverá. Prepare-se porque eu nem comecei ainda. Quando eu começar, você vai sair correndo daqui como se seu rabo estivesse em brasa — repeti as mesmas palavras que ele me dissera a alguns meses antecedentes. — E antes que eu me esqueça... — meu joelho foi de encontro aos seus países baixos.

Agora sim, serviço completo.

Enquanto Danger caía, encolhendo-se semelhantemente a um tatu-bola, dividido entre gemer de dor e me xingar deliberadamente, eu me desloquei, traçando o destino para o ponto de táxi a poucos metros. No entanto, não obtive êxito em meu intento. As portas principais do hospital se abriram de rompante, dando passagem a dois jovens de estilo alternativo e três policiais. Um dos garotos cravou os olhos ferinos diretamente no meu rosto. Engoli em seco.

— Foi aquela garota! — ele apontou para mim enquanto se dirigia a um dos oficiais. — Ela quem roubou o meu skate.

E, assim, eu fui detida, algemada e encaminhada à delegacia. Não por ter surtado em local público, não por ter agredido fisicamente uma celebridade, não por ter depredado um veículo de milhares de libras ou por supostamente ter ingerido entorpecentes por vontade própria. Eu fui presa por causa daquela maldita ideia de ter roubado e detonado a porra de um skate!


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