Danger escrita por Els


Capítulo 6
Colhendo os frutos




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Permaneci detida na delegacia umas boas horas. Não saberia precisar por quanto tempo, entretanto asseguro que foi o suficiente para eu fazer uma considerável reflexão a respeito dos meus atos e, consequentemente, nunca mais pensar em ceder a instintos estúpidos e sequer cogitar cometer outro delito, não importando se fosse por uma boa causa.

Para mim, uma claustrofóbica assumida, ficar confinada naquela cela minúscula estava me levando à beira da loucura.

Apesar de tudo, para a minha sorte, a fiança foi paga. Eu só precisei arcar com as despesas de um novo skate para seu dono enfurecido, que de acordo com a fisionomia do próprio, estava claro que ele nunca iria me perdoar. E quem deveria estar insatisfeita era eu, ora essa! Principalmente em vista do preço do novo equipamento. Quem diria que um pedaço de tábua com algumas rodinhas acopladas pudesse ocasionar um rombo na minha conta bancária já comprometida em decorrência da minha recente demissão?!

E, se isso por si só não bastasse, eu ainda tinha certeza de que Gabe estivera envolvido nos trâmites relacionados à minha soltura, o que só aumentava a minha vergonha. Eu deveria agradecê-lo por isso, ainda que não soubesse como, uma vez que não estaria mais no emprego.

Fui transferida a uma saleta de aparência terrível, sem janelas e maculada com um acentuado cheiro de bolor. Enquanto eu reunia meus pertences devolvidos pelo policial de semblante carrancudo, cujo olhar atento monitorava minuciosamente o menor dos meus gestos, só pensava na minha mãe e em como ela reagiria a toda essa história.

Por que estou me transformando em uma delinquente?, conjecturei comigo mesma, Quando isso começou a acontecer?

A resposta para tais indagações poderia ser resumida em uma única frase: “Por causa de, e desde que, comecei a trabalhar para um popstarzinho de merda chamado Samuel Danger”. Mesmo assim, não era justificativa. A verdade é que depois do abrandamento da adrenalina, me senti péssima por tudo o que aconteceu. Definitivamente, aquela pessoa que se portou como uma desvairada, não era eu. Nunca agi com tanta fúria, jamais fui do tipo vingativa. Mas, devo admitir que na hora em que vi a cara patética do meu ex-chefe demonstrando profunda dor a cada pancada que o BMW sofria pelo falecido skate, senti um surto repentino de satisfação me dominar.

Ao pisar na calçada do lado de fora da delegacia, permiti-me um momento de êxtase, inalando profundamente o ar fresco, contente por poder sentir em minha pele a atmosfera fria da madrugada. Em sequência, apertei os passos, galgando o máximo de distância daquele lugar sombrio e repugnante. Peguei o celular na bolsa, vasculhando a agenda de contatos e ponderando se era viável marcar um encontro com Gabe para, pelo menos, me despedir. Desisti da ligação logo após constatar a hora bem avançada no visor e o aviso de baixa carga de bateria, optando por largar o aparelho de volta ao seu lugar de origem.

Ah, a quem estou tentando enganar? Essas eram desculpas, desculpas e mais desculpas. Eu me sentia em pânico apenas pela possibilidade de Gabe atender a chamada telefônica. Embora, no fundo, ansiasse vê-lo pela última vez, ter a possibilidade de gravar a sua imagem na minha memória, presenciar seu sorriso fascinante que me deixava com as pernas bambas e, quem sabe, com muita sorte, ganhar o primeiro e último abraço. Bom, isso se ele não estivesse com tanta raiva de mim quanto seu irmão.

— Ei, Vodca! Espera aí — uma voz masculina conhecida cortou o ar da rua majoritariamente silenciosa.

Automaticamente, meus pés brecaram, como se influenciados por uma força magnânima e sobrenatural, da mesma forma que meus olhos arregalaram de surpresa. Só me faltava essa! Agora dei para ouvir vozes imaginárias? E, acima de tudo, com o mesmo timbre do Danger?

Chacoalhei a cabeça de um lado para o outro, massageando as têmporas. Talvez fossem os efeitos tardios dos analgésicos. Por via das dúvidas, virei-me devagar, ficando ainda mais perturbada ao reconhecer a pessoa que eu menos queria ver naquele momento correndo na minha direção.

Danger se encontrava do mesmo modo como estivera no hospital, vestindo sua velha calça skinny preta e a camisa da mesma cor e com a estampa de uma banda de rock dos anos 70 ou 80. Nos pés, os surrados coturnos de combate desamarrados e, cobrindo seu cabelo negro, aquele maldito gorro que não deixava-lhe a cabeça de jeito nenhum.

Quando já bem próximo a mim, ele diminuiu o ritmo das passadas, andando despreocupado, praticamente arrastando as solas dos calçados no chão, na medida em que tinha ambas as mãos enterradas nos bolsos da calça e um meio sorriso idiota estampado na cara.

— O que está fazendo aqui? — perguntei um pouco impaciente, cruzando os braços. Espanto e raiva se misturaram na minha voz.

— Oi pra você também — ele retrucou, mas de um jeito calmo e até... amigável?!, uma atitude que certamente me pegou desprevenida. Inspecionei-o de cima a baixo, buscando encontrar um sinal de tensão em seu corpo ou algo que me desse uma dica de que ele estava de fingimento. Em contrapartida, ampliando o sorriso, Danger elevou as sobrancelhas em uma expressão desentendida à minha reação desconfiada e, casualmente, apontou um local às suas costas com um movimento de cabeça. — Não vai pegar sua sucata sobre rodas?

Mirei, acima de seu ombro, o sentido que ele havia indicado, dando conta de que meu calhambeque achava-se estacionado a alguns metros para além da delegacia, porém não muito distante. Como eu saí num furor apressado, não prestei atenção nele. O pior de tudo é que meu velho carango estava inteiro e sem nenhum arranhão, salvo o que já viera com ele do seu antigo dono descuidado. Voltei a olhar para Danger, incerta do que ele pretendia, até que finalmente a ficha caiu e eu fiquei completamente horrorizada com tal realização.

— Você veio dirigindo meu carro até aqui? — minha voz falhou em duas oitavas.

— Você deixou a chave cair no estacionamento do hospital — ele deu de ombros, tirando o chaveiro de um dos bolsos e balançando-o em frente ao meu rosto. — Gabe achou e me deu, mas só após a minha sublime promessa de que eu não iria me vingar — ele revirou os olhos, julgando um absurdo tal consideração. Eu, por outro lado, permaneci séria, fitando-o de modo impassível. — Ah, qual é?! Eu não tenho mais treze anos. Pense nisso como uma troca de favores. Já está tarde, você precisa do carro e como estou sem um no momento...

— Mas ainda não me respondeu porque está aqui — retomei a questão pontual.

Ele bufou, trocando o peso do corpo para a outra perna, consternado e, possivelmente, incomodado com o rumo da nossa interação e com a minha insistência no assunto de que, claramente, ele estava fugindo de propósito.

— “Obrigada, Danger, por ter pago a minha fiança depois de toda a merda que eu fiz” — ele disse com sarcasmo, afinando a voz.

— Você...? Eu não acredito que você pagou a fiança — estreitei os olhos, transferindo as mãos para a cintura.

— E de onde acha que saiu a grana, meu anjo? — Danger segurou meu queixo com a ponta dos dedos, mas eu logo tratei de me desvencilhar de seu toque, fazendo uma careta de nojo. Ele não recuou, contudo. Argh, sujeitinho irritante! — De nada. Apesar de que você não merecia nada disso, poderia te deixar apodrecendo por aí.

— Por que pagou, então? E não me venha com outra desculpa esfarrapada porque eu te conheço o suficiente para saber que Samuel Danger nunca dá ponto sem nó.

Em vista da minha afirmação, ele tombou a cabeça para trás, desatando a rir, batendo palmas repetidamente numa verdadeira crise histérica, dando a entender que eu era uma completa louca com mania de perseguição, quando, na realidade, era ele quem estava agindo de forma absolutamente divergente da sua maneira habitual. Esplêndido!

— Ah, Vodca, você é hilária, sabia? — ele limpou algumas lágrimas escorrendo pelas laterais dos olhos — Eu só quis me assegurar de que você não cometeria mais nenhuma insanidade, do tipo acertar uma pedra na cabeça de um pobre policial ou...

— Denunciar a sua barbárie, não é? — interpelei-o em seu discurso repleto de deboche, deixando-o inerte devido à acusação inesperada. É sério que ele achava que eu iria cair nesse papinho sem pé e sem cabeça? Sem dúvida, seu maior erro era subestimar minha inteligência. Portanto, ali estava Danger, diante de mim com três palmos de olhos saltando das órbitas e com o queixo pendurado, sem um argumento suficientemente bom em sua defesa. — Eu sabia! — alcei o dedo em riste em frente à sua cara inexpressiva, branca como um fantasma.

— Podemos fazer um acordo. Eu te mantenho empregada e você esquece essa história.

Propositalmente, deixei uma risada seca escapar, um sinal óbvio de quem tinha ciência do poder em suas mãos e do seu lugar de volta ao comando da situação. Ele podia escarnecer, fazer piadas, entretanto sabia que contra fatos, não haveriam argumentos, nem mesmo com sua vasta frota de advogados. Eu tinha a prova do crime, tinha a banda como testemunha e um resultado de laboratório em meu favor. Danger se encontrava numa encruzilhada, onde ele mesmo se pôs.

— Eu avisei que você iria pagar muito caro, crápula!

— Porra! — ele explodiu, jogando as mãos para o ar — Detonar meu carro, esmagar minhas bolas e me fazer morrer em cinco mil libras não é o bastante? Caralho! O que mais você quer, Tônica?

Rangi os dentes, furiosa. E antes que pudesse refrear minha ação, precipitei-me para ele de tal forma que nossos rostos ficaram quase colados (isso se Danger não fosse uns bons centímetros mais alto), então, mirando diretamente naqueles olhos traiçoeiros, gritei:

— Em primeiro lugar, eu quero que você pare de fazer essas piadinhas sem graça com o meu nome! — em resposta, ele piscou e franziu a testa, como se não compreendesse a minha irritação referente aos seus trocadilhos. Essa burrice simulada da parte dele estava me tirando do sério! — Ah, esquece! Cadê a minha chave? — resmunguei, sem paciência de continuar naquela conversa que não levaria a nada. Ou ao menos nada de bom. Já era notório para mim que nós dois ocasionaríamos uma combustão perante a delegacia dali a pouco e acabaríamos os dois presos.

Contudo, em vez de corroborar com meu acordo de paz e nos poupar de mais essa dor de cabeça, Danger achou que seria uma excelente ideia balançar o chaveiro diante do meu rosto mais uma vez, me provocando. Quando estendi a mão a fim de apanhá-lo, o energúmeno suspendeu o objeto no ar, rindo da minha incapacidade em alcançá-lo. E seu divertimento só aumentou ao que eu prossegui pulando no mesmo lugar, em tentativas repetidamente frustradas, na esperança de recuperar a chave à medida que ele a afastava do meu alcance uma e outra vez.

— Me dá isso, Danger! Cacete!

— Nem pensar, meu anjo — ele contrapôs com tranquilidade, ocultando a chave na palma da mão, em seguida, transferindo-a para trás de seu corpo ao passo que o ímpeto de um sorriso presunçoso brincava na borda de seus lábios finos. — Como eu disse, provisoriamente, estou sem carro, então até que eu possa encontrar o mesmo modelo do outro, você me deve algumas caronas.

— O quê? — ri sem humor algum, incrédula — Você só pode estar brincando!

Ele não respondeu dessa vez. Ao invés disso, deu-me as costas, seguindo para onde havia estacionado meu carro. Conforme ele se aproximava do veículo, em sua marcha cadenciada, e se afastava de mim, eu me tornava mais descrente em relação ao que se passava por ali. Danger não podia mesmo estar falando sério, não é? Dar carona a ele? Só podia ser piada. E das de muito mau gosto.

Quando chegou ao seu destino pretenso, parou ao lado da entrada do carona e abriu a porta, mas não entrou.

— Vai ficar aí parada?

Acordando do transe, me encaminhei em sua direção, empunhando meu dedo de modo enfático como sobreaviso.

— Nem pense nisso ou...

— Ou o quê? — ele perguntou displicentemente, girando a argola do chaveiro no dedo indicador — Ainda estou em tempo de entrar com uma queixa por danos de patrimônio pessoal. Quer tentar a sorte?

Traindo a minha própria convicção de não transparecer fragilidade ao interlocutor impertinente, meus músculos tencionaram ao mesmo tempo que senti os olhos esbugalharem. A ameaça inacabada evaporou na atmosfera, tendo o restante engasgado na altura do hioide. Em reação, Danger arqueou uma das sobrancelhas de maneira petulante, como era de seu costume ao alcançar os objetivos pretendidos.

— Foi o que pensei. As damas primeiro — ele indicou o banco do carona, fazendo uma cara de quem esperava por contestações.

Além de impor sua presença a mim, o imbecil ainda estava deixando explícito que dirigiria meu carro, mesmo que eu me recusasse a aceitar a sua imposição.

Abri a boca a fim de retrucar, porém voltei a fechá-la no mesmo instante em virtude da sensação de estar sendo observada por mais alguém. Girei a cabeça na direção da delegacia, notando que dois policiais em seus postos no topo da escada, um de cada lado da porta, olhavam deliberadamente para nós dois, Danger e eu. Seus semblantes enrugados e as testas vincadas demonstravam nítido interesse pelo que se desenrolava a poucos metros adiante deles. Um calafrio perpassou pela minha espinha ao me lembrar das horas que permaneci trancafiada na cela.

Merda!

Enfim, respirei profundamente, admitindo a derrota por ora. Aprumando o tronco no intuito de manter certa dignidade, ajeitei a alça da bolsa no ombro e, optando por não olhar para o pateta segurando a porta aberta para mim, adentrei meu carro sem emitir qualquer queixa.


Fiz questão de permanecer no pior dos humores ao longo do trajeto que nos conduziria à casa dele. Com a bolsa esmagada contra meu peito, eu tinha os olhos fixos na paisagem borrada do lado de fora, visto que, sobretudo, Danger dirigia em alta velocidade, assim legitimando seu lado animal selvagem correndo em plena savana africana. Cortava os sinais vermelhos e patinava ao contornar as esquinas, quase tombando meu pobre calhambeque, como se estivéssemos dentro de um globo da morte ou competindo um racha. Essa atitude inescrupulosa me renderia muitas multas, com certeza e, obviamente, o imbecil sabia muito bem disso.

Na verdade, não poderia escolher dentre as seguintes opções, o que mais me incomodava: a eminente premissa de não chegar em casa com vida ou ter de passar por essa ocasião outras vezes. Bom, pensando bem, a segunda alternativa era muito pior, sem dúvida. Ainda mais, depois de flagrar, através do meu olhar de esguelha, a expressão vitoriosa do condutor. Em razão disto, larguei a bolsa e migrei as mãos para o fundo do banco, engatando as unhas no estofado com o propósito de conter os pensamentos ácidos prestes a escapulir dos meus lábios. Não daria a ele mais este prazer de me ver descontrolada. Ah, não! Era isso que aquele bastardo queria.

Contudo, algo me intrigava demasiadamente. Danger, embora aparentemente satisfeito, encontrava-se quieto e emanava uma calma incomum. Calma até demais. Calmo para alguém que acabara de perder um bem de grande estima e valor monetário. Isso não se encaixava. Não para mim, que após conviver por meses, entendia como ele costumava proceder à menor contradição das suas vontades.

Devido a esta profusão de hipóteses, em determinado ponto, semicerrei as pálpebras, fitando seu perfil tranquilo em dissonância aos modos negligentes na direção. Testemunhei a comissura dos seus lábios se elevando ao formar um discreto sorriso, que rapidamente se extinguiu ao que ele recompôs a fisionomia de antes, não dando nada de graça, agindo da mesma forma indesvendável de sempre. Toda essa tensão estava me deixando maluca e, novamente, ele sabia disso. Sabia que eu o especulava, procurando intuir o verdadeiro propósito por detrás daquela pose de não-tô-nem-aí-por-perder-meu-precioso-BMW.

Minha única convicção era de que Danger não deixaria barato, assim como eu também estava disposta a testá-lo à minha maneira. Meu lado vingativo até então adormecido, resolveu aflorar em plena atividade desde que fui obrigada a ceder às ordens dele. Por que não entrar em seu jogo? Iríamos ver até onde cada um aguentaria nessa guerra de nervos.

Exibindo uma expressão de completo tédio, Danger ligou o rádio, cortando, dessa forma, o silêncio sepulcral presente no carro. Ele passava de estação em estação, e cada vez mais, sua careta se intensificava por causa das músicas chinfrins na programação da madrugada. De comum acordo, eu admitia que escutar uma consonância de violinos em desafinação, assemelhando-se a gatos escaldados, ou aquelas baladas decadentes dos anos 90, era o cúmulo do absurdo. De repente, porém, os acordes de “Falling Down”, a mais recente canção dos The Thunderstruck, preencheu o automóvel.

Revirei os olhos, largando a cabeça desajeitadamente de encontro ao vidro da janela ao que Danger aumentou o volume e começou a batucar no volante e a se balançar, animado como um garotinho que acaba de receber doces, praticamente berrando enquanto acompanhava sua própria voz oriunda dos alto-falantes.

... I’ll catch ya, baby. I’ll catch ur heart. Baby, you got me and straight in my heart. I’m freak. Yeah, I’m freak when ur eyes don’t look me. I feel weak on my knees. Oh, feel falling down. Down, down, down, down. OH!

Comprimi os lábios, suprimindo o ímpeto de uma risada. Não que ele cantasse mal ou que eu não apreciasse a música, mas a minha súbita vontade de rir provinha da ironia das circunstâncias. Pareceríamos, para qualquer espectador alheio, um casal de velhos amigos aproveitando um tempo juntos, quando, de fato, um esganaria o outro na primeira oportunidade.

Os primeiros raios solares emergiram por detrás e entre os altos edifícios, disseminando sua coloração meio amarelada, meio alaranjada e, dessa maneira, afugentando a penumbra no firmamento. Simultaneamente, os pássaros iniciavam a revoada, inundando o ambiente externo com seus coros harmônicos. Um sorriso espontâneo se moldou em meu rosto. Abaixei o vidro da janela até a metade, desfrutando da brisa matutina batendo no rosto e afastando os fios do meu cabelo.

Todavia, os vestígios do meu momentâneo bom humor logo se esvaíram quando eu percebi o lugar nobre no qual adentrávamos. Ajeitei minha postura a fim de obter uma melhor visão. Uau! Já haviam me dito que Chelsea era um dos bairros mais luxuosos de Londres, contudo ninguém me avisou do quão suntuoso ele era. Como não imaginei tal coisa? Claro que um popstar como o Danger não moraria num subúrbio como eu.

Imediatamente, minhas bochechas avermelharam, não apenas de vergonha, mas por me sentir intimidada, atravessando aquelas ruas repletas de carros top de linha com meu humilde carango de lataria enferrujada e caindo aos pedaços. Encolhi-me no banco, sendo acometida por uma terrível sensação de impotência. No entanto, em uma rápida olhadela, notei que Danger não fazia a mesma avaliação que eu. Ele, ao contrário, parecia bem despreocupado, envolvido pela música. Será que isso fazia parte do seu plano de humilhação?

Abanei a cabeça, dispersando o pensamento. Não podia cair numa paranoia sem motivo. Além do mais, melhor um transporte ruim do que transporte nenhum.

Não demorou mais que alguns minutos para entrarmos numa rua residencial. Mas, não era qualquer rua residencial, porque os terrenos ocupavam grandes áreas e eram dignos da realeza, de celebridades ou de pessoas muito importantes do cenário econômico. Eu estava admirada com uma das casas em especial, uma adornada por muros cobertos com vegetação muito bem cuidada, que aparentemente ocultavam um lindo jardim, haja vista algumas rosas amarelas robustas serpenteando por cima dos limites da propriedade. Pensei na minha mãe. Ela adoraria morar ou, pelo menos, conhecer aquele lugar.

Absorta em meu estudo, por pouco não dei conta de que o carro, gradativamente, perdia velocidade. A admiração de antes se transformou em perplexidade quando Danger rumou diretamente para a residência que até então, reverencialmente, eu observava. Ao lado dos portões de ferro, existia um painel eletrônico, onde ele digitou uma sequência numérica e, no instante seguinte... Voilà! Abriu-se a entrada para o paraíso!

Nunca, em todos os meus anos de vida, estive em um lugar tão bonito. Era de cair o queixo. E, na realidade, o meu realmente estava pendente. Meus olhos não conseguiam se ater em apenas um ponto, pois haviam inúmeros pormenores merecedores de uma minuciosa análise.

Um clássico chafariz de pedra, com um cupido vertendo um contínuo filete d’água de sua boca, ocupava o centro do jardim. Dezenas de árvores e plantas espalhavam-se ao redor de maneira estratégica, formando um abaulamento convergente à entrada da... Bom, não poderia ser classificado de outro jeito senão como mansão, decerto. Ao passo que me distraía com aquele ambiente encantador, fui remetida à infância, ao tempo em que lia “O Jardim Secreto” do escritor francês Hodgson Burnet. O cenário de uma obra literária, cuja fama levou à produção de um clássico filme dos anos 90, poderia ter sido, segundo minha opinião, inspirada pela propriedade de um astro do pop britânico dos anos atuais. Quão absurda era esta comparação da minha parte?

— Acho que aprova a casa da minha família — Danger comentou, estacionando em frente à porta e desligando o motor — Intimidante, não?

Transferi meu olhar a ele, flagrando seu meio sorriso enquanto fitava atentamente meu rosto alarmado. Para a minha surpresa, ele não parecia convencido de si mesmo como de costume.

— Pensei que fosse sua casa. Quero dizer, somente sua, não de toda a família.

— Claro que não — Danger montou uma carranca, lançando-me um olhar estranho, como se eu tivesse acabado de supor algo idiota. — Eu possuo um imóvel em Cambridge, é pra lá que eu vou quando preciso de algum descanso do trabalho ou despistar os paparazzis. Mas, como ninguém mora mais aqui, decidi ocupar a propriedade provisoriamente. Bom, seja bem-vinda aos terrenos da família Smithers! — finalizou enfaticamente e de modo debochado.

Eu não compreendi muito bem o sarcasmo oculto em suas palavras, no entanto não precisaria ser um gênio para perceber que entre ele e a sua família haviam certos assuntos... delicados, digamos assim. Se eu estava morrendo de curiosidade para saber mais a respeito? Claro que sim. Entretanto, nem em um milhão de anos perguntaria ao Danger. Mesmo porque, ele provavelmente não me contaria.

— Já posso ir para minha casa? — perguntei quase suplicante, nem um pouco envergonhada em admitir que ele tinha ganhado a batalha.

— Para que tanta pressa, meu anjo? — Danger ergueu a sobrancelha, deleitando-se com o meu incômodo — Não quer me acompanhar no café da manhã antes de partir? Aposto que está faminta.

— Desde a minha última experiência, prefiro não aceitar suas ofertas gentis — sorri da maneira mais forçada e cínica possível. — No fim, eu posso parar no hospital tendo convulsões.

Ele fez uma careta. Bom, de todo, eu não perdi a batalha.

— Você quem sabe — resmungou baixinho.

Ele tirou a chave da ignição e a estendeu para mim. Mas, quando fiz menção de pegá-la, sua mão se fechou abruptamente. Essa brincadeirinha de esconde-esconde com a chave estava indo longe demais. Expirei devagar pelo nariz, voltando a olhar para seu rosto. Contudo, ao contrário do que presumi, ele não esboçava uma fisionomia debochada ou divertida. Na verdade, encontrava-se sério, com as pálpebras semiabertas e o maxilar trincado ao me encarar.

— Eu sei o que pretende contra mim, mas peço que se lembre do que tem a perder, caso resolva me denunciar — Danger disparou, assustando-me. Suas repentinas mudanças de humor dariam nos nervos de qualquer pessoa. — Eu não vou ser preso, minha querida. Mesmo assim, estou te oferecendo o trabalho de volta, contanto que possamos passar por cima dessa história. Se você concordar, pensaremos em uma convivência mais... agradável ou menos traumática, como queira. Caso recuse, espero que tenha um ótimo advogado e esteja certa de que usarei todos os meus contatos. Você não conseguirá outro emprego na cidade, isso eu posso garantir. Portanto, te vejo amanhã às oito no estúdio. Não se atrase, Tequila, você sabe muito bem o que eu penso sobre atrasos.

Tendo eu ficado aérea por alguns segundos, em estado de pleno estarrecimento, ele empurrou o chaveiro em minha mão e, num pestanejar, já se achava do lado de fora, contornando o veículo em direção à porta da mansão. Eu segui seus movimentos com o olhar, mas ainda não tinha esboçado reação, pois sequer assimilei todas as suas palavras e as respectivas ameaças implícitas.

— Tome um banho e se alimente bem, você está um trapo — Danger jorrou a ofensa, retomando seu tom descontraído ao debruçar na janela do carona. — Até amanhã, chica. Aproveite o dia de folga.

Ele sumiu da minha vista no instante seguinte. Com o ruído da porta sendo encostada no batente, eu despertei. Não pude acreditar. Danger, mais uma vez, conseguiu reverter a situação a seu bel-prazer. Mas, se ele pensava que eu iria engolir essa, estava muito enganado. E, além de me ofender e brincar com a minha cara, o filho da puta ainda achava que minha língua materna era o espanhol. Um completo ignorante, como já era de se imaginar. Ele ia ver onde eu lhe enfiaria seu “chica”. Bastardo.

Logo após transpor os portões, apercebendo-me da rua vazia devido ao horário precoce, comecei a me arrepender pela recusa do desjejum. Eu não fazia uma refeição decente há um bom tempo. Durante as horas que passei na delegacia, me ofereceram apenas uma sopa malcheirosa, de gosto muito pior, assemelhando-se à água suja misturada com corante. Eu teria alguns quilômetros de viagem pela frente e fazê-la com o estômago vazio era uma das piores ideias. No entanto, a ameaça de Danger me distraía da fome. Ainda podia ouvir sua voz reverberando dentro da minha cabeça e visualizar sua aparência desafiadora, esclarecendo que ele não estava de brincadeira.

Deixei a cabeça pender para frente, de encontro ao volante, consequentemente disparando a buzina.

Puta merda, eu tô muito ferrada!


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