Danger escrita por Els


Capítulo 2
The Thunderstruck




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Sempre considerei a vida irônica e peculiar ou ironicamente peculiar, como preferir. E não era por menos. A morte repentina do meu pai acarretou em um revés para a minha família, principalmente ao que tange ao âmbito financeiro. E quando digo família, correlaciono apenas minha mãe e eu. Às vezes, esqueço que tenho uma irmã mais nova, já que não vejo Pietra há muitos anos.

Desde que ela saiu do Rio de Janeiro, mudando-se para a Europa, após um olheiro do mundo da moda descobri-la e transformá-la numa modelo fotográfica internacionalmente famosa, nem nos natais e feriados prolongados recebíamos sua visita. Aliás, nossos aniversários também eram constantemente esquecidos, da mesma maneira que os telefonemas foram gradativamente rareando ao longo dos anos até que não aconteceram mais, tampouco ela nos atende quando tomamos a iniciativa da ligação, embora mamãe e eu precisássemos gastar todo o nosso vocabulário com papai, nada satisfeito com a ideia de pagar por uma conta telefônica exorbitante.

Dessa forma, a presença de Pietra limitava-se apenas aos álbuns de fotografias, uma vez que papai se recusava a comprar as revistas nas quais ela aparecia seminua em poses sensuais ou em roupas demasiadamente provocantes.

Eu achei que nós teríamos mais contato quando fui persuadida por ela a me mudar para a Europa, cujo desenvolvimento e economia incomparavelmente superiores aos do nosso país, ofereceriam um tratamento de ponta para a saúde fragilizada de mamãe, além da proximidade nos permitir a união pelo luto que compartilhávamos.

Mas, ao contrário do que havíamos combinado dias antes por telefone, Pietra não compareceu ao aeroporto de Paris a fim de buscar mamãe e eu, ainda que sabendo da minha enorme limitação com a língua francesa. A nossa sorte é que, mesmo não conseguindo ler as placas, nos guiamos pelos instintos e logo achamos os táxis parados em frente à saída principal. E, como bônus, o motorista era fluente em inglês e estava muito bem familiarizado com todas as ruas de Paris.

Muitos dias passaram até que eu recebesse notícias de Pietra outra vez. Depois de se desculpar pelo furo, justificando que seu agente havia marcado um compromisso de trabalho inadiável, ela me contou que possuía uma residência fixa em uma cidadezinha mais isolada ao norte de Paris. Não nos prolongamos muito no assunto. Ela precisou se trocar, pois iria estrelar o ensaio fotográfico para uma campanha de uma marca de lingeries muito famosa.

De qualquer maneira, eu não lhe prometi uma visita e, por sua vez, ela não nos convidou. Uma das razões para isso se devia ao fato de que Pietra nunca permanece no país por grandes intervalos, muito mal dois ou três dias, visto que as propostas de trabalho mais promissoras vêm de Madrid. Eu não entendo muito bem como isso funciona ou o porquê de ela não se mudar para a Espanha de uma vez por todas. Contudo, nas poucas vezes em que indaguei a respeito, recebi respostas evasivas. “Estratégia de publicidade, meu bem”, ela dizia.

Readaptar a rotina para uma nova realidade não é nada fácil. Para mim, não é nenhuma novidade que morar na Europa é o sonho de muitas pessoas. Mas, enquanto a maioria almeja viver em Londres, Bruxelas, Paris, Amsterdam..., eu só queria manter minha vidinha pacata na cidade do interior do Rio de Janeiro, onde nasci e fui criada. Não posso dizer que era o lugar mais lindo do mundo, porém eu o chamaria de lar sem pensar duas vezes.

Meu bairro comportava poucos habitantes, portanto todo mundo se conhecia e se tratava pelo primeiro nome. Lá, eu tive experiências inomináveis. Lembro-me, com certa nostalgia, da infância com a minha irmã, numa época na qual éramos inseparáveis. Estando a nossa casa isolada do centro e distante dos bairros mais nobres, cuja vizinhança humilde, assim como nós, ainda conseguia adquirir terrenos decentes, tínhamos o privilégio de possuir um amplo quintal constituído de uma parte cimentada, na qual papai construiu uma piscina e um barracão para guardar suas ferramentas de trabalho e a ração dos animais, e uma parte de terra batida, onde mamãe separara um espaço para o galinheiro, uma área para criar leitões e uma singela horta, que nos tempos de melhor colheita, lhe rendera algum dinheiro pela venda.

Após às aulas, Pietra e eu brincávamos no quintal de casa, encontrávamos com os nossos amigos na estrada de terra – um lugar que tinha maior serventia para as crianças jogar queimada do que para a travessia de veículos, já que o terreno era bem acidentado, logo os motoristas o evitavam a todo custo –, e nadávamos no córrego não muito distante de onde morávamos. A criançada das redondezas se reunia por ali no verão e passava tardes e mais tardes se refrescando e se divertindo ao ar livre.

Em um desses verões, uma novidade surgiu e chamou a atenção de todos: Pedro, o garoto franzino que tinha acabado de se mudar, vindo de Belo Horizonte. Como eu não fazia o tipo envergonhada – ao menos quando criança –, tomei a dianteira e me apresentei. Assim que o guri abriu seu sorriso de aparelho metálico e correspondeu ao meu cumprimento, explicitando seu melodioso sotaque mineiro, senti que meu coração perdeu uma batida. Obviamente, no início não entendia por que eu o olhava diferente dos outros garotos, tampouco me interessei em buscar por uma resposta. Entretanto, não demorou muito para nos tornarmos grandes amigos.

A adolescência chegou por conseguinte, trazendo uma fase terrível para mim: meu cabelo cacheado perdera o brilho e movimento de outrora. Somado a isso, uma infinidade de espinhas brotava esporadicamente na minha cara. E, como se tudo não bastasse, espichei de uma hora para outra, e adquiri braços e pernas compridas e desproporcionais ao resto do corpo.

Por outro lado, nem todos sofreram este efeito devastador. Ao inverso da minha situação tenebrosa, Pedro desenvolveu músculos, tirou o aparelho dentário e engrossou a voz. De repente, o patinho feio se transformou em cisne e não havia sequer uma garota que não tivesse reparado nessa mudança.

Acompanhando-o, Pietra cresceu muito mais que eu, no entanto de forma proporcional, ganhando curvas nos lugares certos. Os olhos azuis perderam a inocência da infância e conquistaram uma força lasciva de sedução. Desde essa época, eu vi homens, rapazes e adolescentes se jogando aos seus pés, vulneráveis ao magnetismo natural que emanava até no modo de andar e se projetava nos pequenos gestos da minha irmã.

Pedro também não ficou imune aos encantos de Pietra e, por alguns meses, um namorico se estabeleceu entre eles. Para quem os observasse de longe, andando de mãos dadas, entre risadinhas bobas e sussurros apaixonados, os consideraria um casal de jovens perfeitos, daqueles tipo fake da internet, mesmo que ambos não tivessem mais do que quatorze anos.

No entanto, o romance não foi adiante. Pouco tempo depois, Pietra embarcava no avião rumo à Europa. Nossos amigos – e alguns nem tão amigos assim, mas apaixonados por minha irmã – estavam lá para se despedirem. Mamãe e eu não conseguíamos mais segurar as lágrimas, assim como minha irmã. Mas era Pedro quem se encontrava em um estado miserável, chorando copiosamente e soluçando como um garotinho. A cena era bem bizarra, ainda mais analisando seu tamanho e proporções corporais de jogador de futebol americano.

No saguão de embarque, eles se agarraram e despediram-se com um beijo apaixonado, escancarado ao público, com o qual arrancaram suspiros das garotas e piadinhas por parte dos garotos. Eu não tive reação, apenas sufoquei mais uma demanda de lágrimas prestes a escapulir, embora o motivo não tivesse mais nada a ver com a partida de Pietra. Nessa altura, já tinha a certeza de que estava completamente apaixonada pelo meu amigo, mas não havia nada que eu pudesse fazer, até porque nossa amizade esfriara consideravelmente desde o início do relacionamento dos dois. Ao desviar o olhar daquela cena torturante, encontrei a expressão ultrajada de papai e o sorriso complacente de mamãe.

Os anos avançaram, levando consigo a primeira metade da minha adolescência. Não posso dizer que sinto falta, mesmo porque os anos sucessores trouxeram experiências muito mais interessantes. Por volta dos meus dezesseis anos, Pedro se matriculou na mesma escola que eu, então tivemos a oportunidade de resgatar a nossa amizade por integrarmos o mesmo grupinho de amigos. A cada dia, ficávamos mais próximos.

Não frequentávamos mais o córrego, entretanto trocamos a programação de verão quando um dos nossos colegas de escola nos convidou a passar as férias na casa de veraneio de sua família, localizada na Região dos Lagos, Rio de Janeiro. O tempo em que passamos por lá, marcou bons períodos de libertação da escola e dos olhares atentos dos adultos (os pais de Igor não contava porque eles nunca estavam por perto), o que nos permitia desfrutar de momentos muito prazerosos e totalmente insanos.

Nossos hormônios adolescentes à flor da pele nos impulsionava a cometer loucuras sem pensar no que viria depois, assim como se sucedeu em uma noite de luau à beira da Praia das Conchas, quando Pedro e eu trocamos nosso primeiro beijo. Eu poderia dizer que foi acidental, que eu não esperava por nada disso, mas então estaria mentindo. O clima de paquera entre nós já se arrastava por alguns meses, porém nenhum dos dois tomara a iniciativa até aquela noite.

Jorge tocava violão e entoava “só hoje”, o hit da época, com seu vozeirão gutural bem afinado. Quase todo mundo já tinha se recolhido aos quartos, apenas três ou quatro pessoas nos fazia companhia. Embora não fosse tarde, o céu estava fechado e os trovões ao longe anunciavam uma tempestade daquelas. Todavia, eu havia prometido a mim mesma que não arredaria o pé dali enquanto Pedro não voltasse para a casa também.

Vez ou outra, meu olhar cruzava com o dele, disposto do outro lado da fogueira e imediatamente de frente para mim, mas eu desfazia o contato visual instantaneamente, não antes de capturar seu sorriso por conta da minha atitude encabulada. Quando isso se deu mais duas ou três vezes, decidi que era hora de parar de dar tanta bandeira, por isso abaixei a cabeça, debruçando-a sobre o braço apoiado nas pernas encolhidas contra meu peito, e, em concomitância, arranjei uma ocupação para minhas mãos, traçando desenhos aleatórios na superfície fofa da areia.

— Quer dar uma volta comigo? — dei um sobressalto ao ouvir, minutos mais tarde, a voz rouca muito perto do meu ouvido.

Levantei a cabeça depressa e girei um pouco o corpo para enfim ter a visão plena de Pedro às minhas costas, agachado tão próximo que eu podia jurar sentir o calor irradiando de sua pele bronzeada. Ele tinha a expressão apreensiva enquanto aguardava pela minha resposta e mordia o lado interno do lábio inferior. Céus! Como eu queria morder aquele lábio também...

Finalmente assenti e tentei me pôr de pé com graciosidade, pedindo internamente para não tropeçar e cair de boca na areia ou me embaralhar com meus próprios pés, uma vez que o tônus das minhas pernas achava-se bastante comprometido naquele momento. Mas, antes que pudesse dar cabo à minha intenção, Pedro já estava de pé e com a mão estendida para mim. Eu a agarrei sem hesitar, estremecendo com o choque de temperatura entre nossas peles.

Ele abriu um sorriso de tirar o fôlego e, antes que eu desse por mim, já estávamos longe do alcance da vista dos outros. Parcialmente consciente do que se passava ao nosso entorno, aferi alguns comentários maliciosos e murmúrios de “hmmm” dos nossos amigos, apesar de eu não ter certeza se aconteceu de verdade ou fora fruto da minha imaginação. O foco da minha atenção era outro. E tinha nome, sobrenome, um porte atlético invejável, cabelos lisos desgrenhados e uma covinha sexy no queixo.

Em vez de soltar minha mão, Pedro deslizou sua palma quente contra a minha, fria e suada de nervoso, entrelaçando nossos dedos. Eu senti as entranhas revirarem, me proporcionando um friozinho gostoso na barriga. Caminhamos por um bom tempo em silêncio e sem um rumo pré-definido, apenas nos deixamos levar.

— Você já ficou com alguém, Gin? — ele perguntou de repente.

Enrubesci na mesma hora, e um calor sufocante, inexplicável e nada condizente com o clima, invadiu minhas bochechas. Com a demora da minha resposta, Pedro parou de andar e deu um leve puxão em nossas mãos unidas, induzindo-me a virar de frente para ele. Mesmo nessa posição, com nossos corpos tão próximos, eu não conseguia sustentar seu olhar.

Um silêncio pesado se fez presente, salvo pela rebentação da maré nas pedras e os trovões cada vez mais perto. Surpreendendo-me, Pedro tomou um dos meus cachos esvoaçantes, devido à ação do vento marítimo, enrolando-o ainda mais entre os dedos. Eu levantei a cabeça a fim de encará-lo, distraído com sua própria ação em meu cabelo. Pedro tomou uma respiração profunda ao cravar aqueles olhos enlouquecedores no meu rosto.

— Eu adoro o seu cabelo, sabia? A cor, a textura...

— N-não — gaguejei miseravelmente. — Quero dizer, não sabia disso.

Seus olhos castanhos prenderam-se aos meus. Neles, havia algo de diferente do jeito como ele costumava me olhar, um desejo cru e latente que eu nunca presenciara até então. Eu já me sentia meio desconfortável com o modo como meu corpo reagia a ele. Ao mesmo tempo, me encontrava viciada nessas sensações ao ponto de desejar sempre mais, da mesma forma que um dependente químico se recusava a ser reabilitado.

— Mas você ainda não respondeu minha pergunta — ele disse em um sussurro. — Já foi beijada?

Dessa vez, somente neguei com a cabeça, incerta se era uma boa ideia lhe contar a verdade. Caso não o conhecesse tão bem, provavelmente teria mentido, temendo servir de chacota mais tarde na rodinha de colegas.

— E gostaria? — ele se aproximou um pouco mais, impondo sua intimidante altura sobre mim, nossos rostos quase colados. — Eu não sei quanto a você, mas eu estou louco pra te beijar.

Com esta revelação espontânea, eu entreabri os lábios, sugando o ar com força. Fui acometida por calafrios subindo e descendo por minha coluna à medida que uma escola de samba fazia verdadeiro estardalhaço no interior do meu estômago. Pedro sorriu de lado devido a minha reação e aproveitou-se da nossa proximidade para colar nossas testas; transferiu a mão do meu cabelo para se encaixar na altura da nuca e, no segundo seguinte, nossos lábios se encontraram.

Enfim, tive meu primeiro beijo com Pedro.

Mais tarde, começamos a namorar e, subsequentemente, rolou a nossa primeira transa. Não sei se foi por falta de experiência de ambas as partes, mas, ao contrário de como aconteceu com o nosso primeiro beijo, o sexo foi horroroso. Eu nunca lhe disse isso, claro, mas tinha certeza de que Pedro também não ficara satisfeito. Estávamos nervosos demais, receosos quanto a não sabermos como agir e ainda morrendo de medo de sermos flagrados pelos meus pais, já que resolvemos nos esconder no barracão de ferramentas, o lugar mais discreto e privado no qual pudemos pensar no calor do momento. Acredite quando digo que fazer sexo em cima de sacas de milho não é das experiências mais confortáveis, principalmente se tratando da primeira vez.

Pedro foi meu primeiro e único namorado, meu melhor amigo e, portanto, esteve ao meu lado nos momentos mais felizes assim como nos mais tristes da minha vida. Dizer adeus para ele foi a parte mais difícil de deixar tudo para trás.

No aeroporto do Galeão, ele não chorou, contudo sustentava uma expressão detonada. Como odiávamos despedidas, dispensamos as palavras e aproveitamos os últimos minutos juntos nos abraçando. Logo depois, eu elevei a cabeça num pedido mudo para que ele colasse seus lábios macios e confortadores aos meus e, assim ele o fez, no mesmo instante em que minhas lágrimas começaram a precipitar-se bochechas abaixo e a infiltrar-se entre nosso beijo. Ao perceber o choro, Pedro me aninhou um pouco mais em seus braços e modificou a intensidade do beijo para um ritmo descompassado, fruto do nosso desespero pela separação. Não havíamos prometido nada um ao outro, sabíamos que seria impossível manter um relacionamento à longa distância, só não lançamos essas palavras ao vento.

Ele não me pediu para ficar, mas eu já estava a um passo de rasgar as passagens e fincar meus pés no Brasil para nunca mais ponderar uma ideia tão estúpida. Eu estava me mudando para Paris quando sequer tinha embarcado em um avião para qualquer viagem nacional. Pior! Não sabia quase nada da língua, e meu inglês medíocre certamente não me seria tão útil.

Em contrapartida, Pietra conseguira essa vaga de emprego para mim, disponibilizara um dos seus imóveis para mim e mamãe vivermos e ainda arranjara um excelente tratamento de saúde para nossa mãe em um hospital de referência de Paris. Eu não podia ser egoísta e virar as costas para essa grande oportunidade, mesmo que para isso fosse necessário largar o curso de graduação, a minha casa, meus amigos e, sobretudo, o Pedro.

No início foi muito complicado. Quase todas as noites, encolhida na cama e abafando meus soluços contra o travesseiro, eu liberava o choro entalado na garganta. Os motivos sempre eram os mesmos: minha frustração com o trabalho, a implicância constante da secretária pessoal do Sr. Durand, que era a própria encarnação de Satanás, por morrer de saudades do meu pai, por me sentir sozinha e por desejar a presença de Pedro ao meu lado, como se sucedera nos últimos seis anos.

Todavia, o tempo é mesmo o melhor remédio para tudo. Depois de estar à beira de uma síncope por ter sido demitida da Galaxy Records, cá estou, perante este suntuoso arranha-céu, onde foi marcada uma reunião de negócios com os empresários da banda The Thunderstruck. O grupo e demais integrantes da equipe também estarão presente, já que as férias de poucos dias terminou essa semana e eles voltarão à estrada em breve. Estou muito ansiosa para o momento no qual serei apresentada como a nova assistente pessoal dos rapazes.

Eu tenho que me lembrar de agradecer mais um zilhão de vezes ao Gabe por essa oportunidade, embora ele já esteja claramente saturado de ouvir meus agradecimentos.

Para assegurar de que nenhum imprevisto levaria a um inconveniente atraso, detonando minha imagem logo de cara, tomei as devidas providências e coloquei o relógio para despertar muito mais cedo do que de costume.

Então, por estar meia hora adiantada, aproveito a solidão e silêncio no saguão a fim de colocar as ideias em ordem e preparar minha apresentação. Não que eles estejam esperando grande coisa da minha parte, até porque serei apenas uma das auxiliares da equipe que trabalhará diretamente com os integrantes. Mesmo assim, eu me sinto exposta demais. Talvez a sensação se deva ao fato de que estou quase desmaiando de tanto nervoso.

Calma, Gin. Respira. Um. Dois. Três. Isso, bem melhor.

— Hey! Chegou cedo — voltei-me para a voz já familiar e sorri ao deparar com a costumeira expressão de simpatia de Gabe.

Ele estava mais do que lindo. Ao seu lado, dois homens de aparente meia idade, parrudos e engravatados, lhe acompanhavam. Mas, ao contrário deles, Gabe exalava jovialidade. Mesmo vestindo um terno formal, que lhe assentava muito bem no corpo, ele aparentava ser muito mais novo do que sua idade cronológica real.

— Sei como os britânicos são com a questão da pontualidade — dei de ombros, sorrindo e estendi a mão a fim de cumprimentá-lo. Porém, dispensando as formalidades, ele se aproximou e passou um dos braços por meus ombros. — Senhores — dirigiu-se aos homens os quais nos encarava com curiosidade. —, esta é Gin Martins, a nossa nova funcionária que trabalhará diretamente com o Sammy. Gin, estes são Matthews e Connor, os agentes de marketing.

Eles me cumprimentaram com um discreto aceno de cabeça, o que eu correspondi de imediato, arriscando um sorriso tímido.

— Não estava a par de que Danger teria uma assistente pessoal — Matthews salientou. — E quanto à banda? Todos terão suas próprias funcionárias particulares?

— Hã... Não necessariamente. Só o meu irmão. — Gabe disse, e sua voz sempre tão firme, soou como um cochicho. — Foi acordado que Sammy precisa de alguém disponível para lhe acompanhar sempre que necessário.

Espera aí... Babá de marmanjo? “Assistente pessoal” agora adquirira a conotação “de pegar no pé de um cara que é mais velho do que eu, mas não tem um pingo de vergonha na porra da cara”? Tá brincando?

Eu franzi o cenho, séria, enquanto buscava os olhos de Gabe e, pela visão lateral, percebi Matthews trocar o peso do corpanzil para a outra perna, incomodado por ter falado demais. Gabe, enfim, me olhou diretamente e encolheu os ombros como se pedindo desculpas por não ter mencionado este pequeno pormenor. Respirei profundamente, fechando os olhos no intuito de retomar meu autocontrole. Não havia nada a ser feito. Eu não me achava na posição de me fazer de ofendida e pedir demissão antes mesmo de começar.

— Podemos ir para a sala de reuniões, então? — Connor deu a ideia, imediatamente acatada por todos nós.

No elevador, eu senti que o clima de tensão alcançara um outro nível. Apesar de ter muitos questionamentos, havia um assunto que me parecia mais urgente.

— Sam Danger é seu irmão? — eu sussurrei para que apenas Gabe me ouvisse.

— Longa história... — ele respondeu sem me olhar, afrouxando um pouco o nó da gravata, desconfortável com a situação constrangedora que se passava naquele cubículo. Eu também agiria assim se fosse ele. Acho que Gabe não tinha a menor intenção de mencionar o irmão para mim. — Podemos falar disso depois?

Merda. Isso só pode ser ruim. Muito ruim.

Pronto! Meus nervos estavam à flor da pele só de pensar em ser assistente direta do Danger. Não sou fã da banda, porém não sou desinformada. Os escândalos midiáticos do vocalista dos The Thunderstruck não era um assunto que pudesse ser ignorado. Sua cara era constantemente estampada em todos os veículos de comunicação europeus. Segundo as pesquisas que andei fazendo pelos últimos dias, desde que recebi a proposta de Gabe, percebi que Samuel Danger é seguido por paparazzis por todo lado, não pelo fato de ele ser o vocalista de uma banda de sucesso, mas por causa de seu comportamento duvidoso que sempre vende notícia.

A cada dez reportagens que eu li na internet referente ao seu nome, pelo menos sete comentava de forma sensacionalista sobre o fato de ele receber multas de trânsito por excesso de velocidade, se acidentar na autoestrada por estar embriagado, bater e/ou apanhar de seguranças de boates.

E, claro, em cada fotografia dos flagrantes, uma mulher diferente se encontrava em sua companhia. As alpinistas sociais eram muito bonitas, mas não seguiam necessariamente um padrão. Algumas eram altas, outras, baixas ou de estatura mediana. Algumas eram muito magras, outras, possuíam curvas bem delineadas. Loiras, morenas, ruivas, negras, orientais, latinas, com cabelos compridos, cabelos curtos e assim por diante.

Não é à toa que Gabe não queira associar sua imagem à de um indivíduo como Danger. Eu também morreria de vergonha caso Pietra agisse assim. Por outro lado, eu me julgava uma tola por não ter notado tamanha semelhança física entre os irmãos, ainda que os estilos de ambos sejam completamente distintos. Tanto Gabe quanto Danger eram donos de cabelos castanhos escuros, sendo que o primeiro o mantinha em um corte curto enquanto o outro deixa crescer até a linha do pescoço; os dois possuíam olhos muito azuis e intensos; o maxilar quadrado também era uma característica marcante em suas aparências. Quanto ao corpo, haviam diferenças gritantes. Gabe fazia mais o tipo atlético, preocupado com a saúde, portanto tinha músculos desenvolvidos, embora não exagerados. Em contrapartida, Danger era magro, não do tipo esquelético, mas com músculos naturais nada chamativos.

Chegamos ao saguão de um andar que eu sequer reparei. Se eu não estivesse tão atenta e nervosa, num segundo de distração, meu queixo penderia. Internamente, eu estava boquiaberta com o luxo do lugar. Se eu considerava o prédio da Galaxy Records suntuoso, aquele saguão era trinta vezes mais, e me fazia sentir pequena e muito mais pobre do que realmente sou. Acho que travei por muito tempo, pois Gabe apoiou a mão no centro das minhas costas, induzindo-me a prosseguir. Dei-lhe um sorriso envergonhado e obriguei as minhas pernas a movimentar.

Entramos em uma sala enorme, ocupada ao centro por uma mesa de mogno oval igualmente grande com muitas cadeiras ao redor. A parede imediatamente à frente da entrada, era composta de vidro de fora a fora e, para evitar a entrada direta da luz, estava velada com persianas. A decoração seguia o padrão comercial discreto e sofisticado e, nas demais paredes, quadros de pintura moderna davam um ar mais intimista ao local.

— Fomos os primeiros a chegar — Gabe observou. — Agora, enquanto esperamos pelos outros, quem aceita um café? Estou morrendo por um.

Connor e Matthews concordaram. Eu recusei educadamente, preferindo manter o estômago vazio até que a reunião acabasse. Quando estou nervosa e forço-me a comer ou beber qualquer coisa, sempre acaba em desastre. Os agentes de marketing iniciaram uma conversa descontraída, que nada tinha a ver com trabalho, por isso eu fiquei por fora. Além disso, estava incomodada com Gabe preparando o café em uma máquina, disposta no canto da sala. Ele seria um dos meus patrões, então eu me sentia na obrigação de cumprir com aquela tarefa de servir e não de ser servida, embora eu não fosse contratada para ser copeira.

Levantei discretamente na intenção de não interromper a conversa animada entre Connor e Matthews, apesar de ter certeza de que nenhum dos dois prestava atenção em mim. Sorrateiramente, me pus ao lado de Gabe, pondo-me a colocar as xícaras e pires dentro de uma bandeja. Pela visão lateral, vi-o sorrir abertamente. No segundo seguinte, sua mão repousou sobre a minha, impedindo-me de dar prosseguimento à tarefa.

— Não se incomode, Gin, meu braço não vai cair por preparar um café — em seu tom havia certa repreensão, mas ele ainda sorria quando o encarei.

— É que... — me embaralhei com as palavras. — Me desculpe.

— Não precisa se desculpar — ele se desviou do nosso contato visual ao que a máquina apitou, anunciando o término do preparo. Ele tomou uma das xícaras, despejou o líquido fumegante em seu interior e a ofereceu a mim. — Espero que aprove — deu uma piscadinha e tocou a ponta do meu nariz, fazendo-me rir.

Em seguida, rapidamente serviu para mais três pessoas e se dirigiu à mesa, equilibrando a bandeja apenas com uma das mãos. Céus! Se eu fizesse algo desse tipo, certamente derramaria café quente em mim e nos outros logo após dar o primeiro passo. Mas Gabe transparecia graciosidade ao servir os outros e, por conseguinte, a si mesmo. Aliás, cada ato dele continha graciosidade, uma virtude admirável segundo a ótica de uma pessoa que tropeça nos próprios calcanhares. Suspirei com esse pensamento, atentando para a xícara intocada nas minha mãos. Por um momento, ponderei se era uma boa ideia beber, mas fui convencida pelo olhar de expectativa que Gabe me lançou, concomitantemente, ao seu convite de me juntar a eles à mesa.

O líquido quentinho e apetitoso desceu maravilhosamente bem, tranquilizando meu estômago agitado. Olhei com admiração para Gabe, que, à essa altura, estava rindo de algum assunto que Connor havia acabado de compartilhar. Um homem como ele era muito difícil de ser achado hoje em dia. Involuntariamente, acompanhei sua risada, embora não estivesse inteirada com a pauta da conversa; o riso de Gabe era contagiante.

Alguns minutos mais tarde, a porta foi aberta de rompante, dando passagem a uma multidão, que, após os cumprimentos, ocuparam o restante dos lugares; apenas uma cadeira ficou desocupada. Eu olhei à volta e senti meu sangue congelar outra vez, não esperava que tantas pessoas comparecessem à reunião. Pelo o que pude observar, toda a equipe, incluindo os músicos, estavam presentes ali. Mas faltava um...

— Bom dia, crianças! — todas as atenções voltaram-se para a entrada.

Danger adentrou a sala com estilo, gingando em suas botas pretas de combate. A propósito, ele estava todo de preto, inclusive a touca de lã. Fiz uma careta. Odeio toucas e aquele cheiro de suor impregnado no couro cabelo que elas proporcionam. Eca!

Os burburinhos não deram pausa desde a chegada da equipe. Entretanto, logo que Gabe, acomodado na cabeceira, se colocou de pé, as vozes cessaram. Ele deu as boas-vindas a todos e, de esguelha, eu pude perceber a cara de deboche de Danger ao mesmo tempo em que articulava com a boca, imitando a fala do irmão. Seus companheiros de banda riam baixo. Eu revirei os olhos. A reunião mal havia começado e eu já tinha captado que Danger era o palhaço do circo e os demais, sua plateia.

Em meio a cochichos, risadas e piadas inconvenientes da parte de Danger, a reunião perdurou por mais algumas horas. Estava na cara de todo mundo – provavelmente na minha também – que ninguém aguentava mais ficar sentado, ouvindo Gabe falar. Acho que ele notou isso também, porque decidiu suspender o assunto para uma próxima oportunidade. Os suspiros de alívio ocuparam a sala e eu senti vontade de rir, mas me contive, transformando o ímpeto em um acesso de tosse. Com isso, Gabe desviou a atenção para mim.

— Tenho um último anúncio a fazer — imediatamente vieram os protestos, todavia ele os ignorou. — Levante-se, Gin, por favor — O quê? Ah, não! Ele não vai... — Pessoal, aproveitando que estamos todos reunidos aqui, quero apresentar a vocês a nova integrante da nossa equipe.

Minhas bochechas queimaram enquanto todos começaram uma algazarra ao meu redor, rindo e brincando com o meu nome – nada com a qual eu não esteja acostumada. Quando, enfim, a balbúrdia acabou, eu me assentei novamente, prendendo os olhos no tampo da mesa a fim de evitar olhar para qualquer um.

— Gin? Que espécie de nome é esse? — uma risada debochada em seguida não me deu a chance de duvidar quem havia feito o comentário. Levantei a cabeça para dar de cara com Danger aparentemente distraído teclando no celular enquanto um sorriso indiscreto brincava em seus lábios. — Imagino que seus pais eram hippies alcóolatras que te batizaram num bar. Sua irmã se chama Vodca? Não ficaria surpreso.

O clima ficou tenso de repente, até que alguém jogou um copo plástico vazio e atingiu o rosto de Danger, fazendo-o largar o celular na mesa e lançar um olhar mortífero para a pessoa diante dele.

— Ignora esse tapado, Gin — o baterista da banda se debruçou na mesa a fim de aparecer em meu campo visual. — Muito prazer em conhecê-la.

Danger rolou os olhos.

— Não se empolgue muito, Cory. Com certeza essa não dura um mês.

— Ah, é? Eu aposto que sim — Cory disse, agora encarando o vocalista, e, mesmo à distância, pude ver sua sobrancelha erguendo em desafio.

— Aposta! Aposta! Aposta! — o resto da banda e os mais bagunceiros da equipe entoaram, ao passo que os outros – em sua maioria mulheres – apenas negavam com a cabeça ou sorriam.

— Porra, vocês são uns idiotas mesmo... — Gabe explodiu, porém com certo humor implícito na voz. — A garota já está com medo. Não ligue para meu irmão. Estou certo de que você dará conta do trabalho.

— Aposta! Aposta! Aposta! — eles voltaram a brandir em meio às gargalhadas.

— Vamos lá pra fora, Gin — Gabe disse em meio à bagunça. — Preciso te deixar a par do que acontece por aqui.

Após ele fechar a porta atrás de nós, as vozes foram abafadas.

— O que o Danger quis dizer com “ela não dura um mês”? — eu disparei antes que perdesse a voz e a coragem para a pergunta.

— Humm... — Gabe esfregou a nuca, desconfortável. — Bom, no último mês, nós perdemos alguns funcionários. Dentre eles, duas assistentes pessoais. Já em relação ao último semestre, foram mais de dez.

— Dez? Em seis meses? — arregalei os olhos — Por que ele as demitiu?

Ele engoliu em seco, notoriamente nervoso.

— Sammy não as demitiu... Elas caíram fora.

Meu semblante caiu.

Puta que pariu! Esse playboyzinho de merda é muito pior do que pensei!


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