Danger escrita por Els


Capítulo 1
Perdida na Cidade Luz




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Após uma semana agitada, chegou a sexta-feira, o tão aclamado e, diga-se de passagem, superestimado dia da semana para quase todos, ou ao menos para as pessoas mais sensatas de qualquer canto do planeta. Eu, no entanto, não pertenço a essa maçante maioria, posto que há muito tempo não desfruto de uma vida social – o que é isso mesmo? – tampouco tenho novas amizades dispostas a me apresentar à Paris, a Cidade Luz.

Não que eu possa me dar ao luxo de aceitar um convite desses. Aliás, ultimamente, meus finais de semana têm se resumido a desempacotar a mudança e a organizar a nova casa o máximo que consigo no meu tempo curto. Minha mãe, mesmo com suas limitações de saúde, insiste em ajudar da sua melhor maneira, embora eu não concorde nem um pouco com a ideia.

Olhei apreensivamente em direção à torre mais alta da catedral de Notre Dame, de onde os raios do sol matutino despontavam timidamente no céu claro, embora estejamos no início do inverno e o frio doa nos ossos. Inconscientemente, apalpei meu pulso nu, constatando que, na pressa, havia deixado para trás o relógio. Mais uma vez atrasada para o trabalho... Era a segunda só nesta semana. Deixei um suspiro resignado escapar enquanto passava os braços pelas mangas do sobretudo e tentava não me sufocar com o lenço desarrumado em volta do pescoço. As rajadas constantes e multidirecionais do vento não colaboravam em nada com a minha tarefa, além, é claro, do fato de eu ser uma eterna estabanada por natureza.

Bocejei deliberadamente, nem um pouco interessada em manter a compostura. Foda-se a boa educação! O mau humor, devido à privação de sono durante os dois últimos dias, me levava ao limite da tolerância. E ai daquele que se atrevesse a me encarar com censura!

Entretida, apressada, totalmente enrolada e praticamente trêbada de cansaço... Não é difícil supor que a combinação supracitada não acabaria em boa coisa, não é? Pena que eu só atentei para o pormenor quando, mais uns passos adiante, logo após desviar de um homenzarrão tentando conter os ânimos de seu agitado labrador preso na coleira, esbarrei em cheio com o anúncio de um Café aberto há poucos dias – malditos Cafés parisienses que se multiplicam a cada esquina! – e tudo em meus braços voou para longe.

Como se em movimento de câmera lenta, assisti às pastas, à pilha de documentos importantes do trabalho e ao café de uma senhora mal afortunada, que tivera o azar de cruzar meu caminho nesta manhã, serem lançados pelos ares. No segundo seguinte, eu tinha ambas as mãos nos cabelos, os olhos arregalados e a sensação de pânico crescente invadindo meu corpo e congelando meu sangue.

Eu seria demitida, certeza! Eu estava a um passo disso. Quem, em sã consciência, aceitaria em longo prazo uma funcionária estrangeira, que não é fluente na língua nacional, muito mal fala inglês, não possui experiência em sua área de atuação, vive constantemente atrasada e acabara de arruinar um contrato milionário? Pois é, ninguém. Muito menos meu intolerante e famoso chefe, Gayle Durand, empresário musical mais influente do país – provavelmente do continente europeu – e que conseguira, depois de árduos meses de propostas e contrapropostas, fechar um promissor acordo de trabalho com os The Thunderstruck, a banda pop entorpecedora – com o perdão deste trocadilho infame – do momento. E eu havia estragado tudo!

Quando finalmente pude sair do transe e reagi, agachando na beirada da calçada na esperança de resgatar os papéis, percebi que todos estavam arruinados. Todos! Os que não foram manchados pelo café, caíram na água suja da sarjeta, portanto não haveria salvação. Ademais, a senhora com a qual topei, revoltada com o acidente, me xingava em francês, mas eu não conseguia sequer entendê-la, só sabia que eram xingamentos porque reconhecia uma ou outra palavra aleatória e porque ela apontava em direção ao meu rosto e esbravejava a ponto de ter uma veia saltando em sua testa. Eu queria me desculpar com meu francês meia-boca e lhe prometer outra bebida, porém me encontrava imersa na minha própria maré de azar.

E, como se tudo isso não fosse suficiente, meu celular começou a tocar no bolso traseiro da calça jeans. Automaticamente, apalpei e tirei o aparelho, tendo os olhos ainda fixos no fruto do meu recente desastre.

— Alô? — atendi mecanicamente.

— Onde você está, Genevieve? — uma voz estridente, talvez a que eu mais odeio no mundo, violou meu tímpano.

Apertei os olhos em descontentamento e suguei uma lufada de ar, precisando reunir todas as forças do universo para não desligar o telefone na cara daquela megera, também conhecida como a secretária pessoal do Sr. Durand e que, segundo sua propriocepção distorcida, considerava-se o centro do mundo. Por não obter resposta imediata, Eleonora voltou a repetir a pergunta, só que de modo mais ríspido e muito mais impaciente.

— Daqui a pouco chegarei — respondi em um tom cortante ao mesmo tempo em que me colocava de pé e recuperava minha bolsa e alguns pertences pessoais espalhados pelo chão. Até a caixinha de O.B. foi pelos ares. Que mico!

À essa altura, a senhora enfurecida já havia se distanciado, ainda que praguejando em alto e bom som. O brutamonte e seu cão dos infernos sumiram como se tivessem evaporado no espaço. E os curiosos, atraídos pela confusão, voltaram às suas atividades de antes. Esses franceses são impressionantes! Mesmo morando em Paris há pouco tempo, não demorou muito para que eu notasse as diferenças discrepantes entre o comportamento latino e o do povo francês, que em sua maioria não demonstra solicitude pelos demais; cada um vive apenas para seus próprios interesses e não está nem um pouco disponível para oferecer ajuda ao outro.

E, àquela hora, ainda era obrigada a lidar com uma biscate. Bufei, indignada, quando a peçonhenta prosseguiu em seu discurso tedioso:

— Gayle está prestes a arrancar seu fígado — Eleonora disse com pompa, mal disfarçando seu tom de orgulho próprio por ser a única dentre os funcionários da empresa autorizada a chamá-lo pelo nome. Grande coisa! Se eu fosse tão vagabunda quanto ela e vivesse pelos cantos do escritório, descaradamente atracada com o chefe casado, certamente teria o mesmo privilégio de intimidade. Que problema maior haveria em tratá-lo pelo nome depois de tê-lo dentro das minhas calças, não é mesmo? — Ele pediu para te informar que se você não chegar em cinco minutos, melhor nem vir, porque estará automaticamente despedida — ela completou devagar, deliciando-se com cada palavra, e eu imaginei, de uma maneira quase palpável, o sorriso pleno de satisfação em sua cara triangular de jararaca.

— Você adoraria isso, não é, cascavel? — perguntei entredentes enquanto me punha a caminhar com pressa em direção ao prédio da gravadora.

Em resposta, ouvi sua risadinha cínica, demonstrando que eu havia lhe dado exatamente o que ela ansiava. Eu quis me estapear por isso.

— Não imagina o quanto, mon cher.

Afundei os dedos em torno do aparelho celular, quase partindo-o em mil pedaços, exatamente do mesmo modo que eu queria esganar o pescoço daquela... daquela... Não sei classificá-la. Nem todos os adjetivos mais cruéis seriam suficientemente adequados a fim de designá-la. Todavia, me dispersei desse pensamento; meu ódio foi amenizado ao que me distraí com a fachada opulenta da Galaxy Records. Não importa que eu já esteja acostumada a frequentar este lugar, toda esta suntuosidade me intimida e certamente me tirará o fôlego por mais algum tempo. Quero dizer, isso se eu não for demitida ainda hoje, o que é muito provável.

Como faço todos os dias, dei uma última espiada no gigantesco logo – duas letras em aço escovado: o G e R entrelaçados –, disposto acima das portas giratórias, e antes de entrar, rezei um Pai Nosso sussurrado. Se não me ajudasse, pelo menos mal não faria. Eu necessitava desse emprego mais do que tudo, então por que não pedir auxílio à Providência Divina? Se eu ficasse desempregada nessa altura do campeonato, as coisas se tornariam desesperadoras para o meu lado.

À medida que eu embarcava no elevador de funcionários vazio, já que o horário era bem adiantado, meu coração começou a galopar e senti uma pontada forte no peito. Ao olhar para o lado e deparar com a minha imagem refletida na parede espelhada, tive a nítida sensação de estar encarando um fantasma. Ouvi o ascensorista solicitar o andar em que eu ficaria, entretanto, devido ao choque, minha resposta não saiu tão clara como eu gostaria. Nesse momento, enquanto o homem analisava minha expressão aturdida, outra pessoa adentrou o elevador.

— Vigésimo terceiro, por favor — o rapaz recém chegado disse rapidamente e em inglês, transparecendo seu óbvio sotaque britânico.

O funcionário transferiu seu olhar confuso de mim para o homem. Em sua expressão, estava claro que ele não entendera uma palavra.

— Vigésimo terceiro andar. Eu também ficarei por lá — consegui dizer mais alto e em francês, então o ascensorista parou de encarar o desconhecido e voltou-se para frente.

Merci — o rapaz me agradeceu, aliviado, provavelmente sendo esta sua única expressão conhecida no idioma.

You’re welcome — disse mecanicamente, muito mais pelo fato de usar o inglês com mais frequência do que o francês.

Mesmo em decorrência do meu tom monótono, o homem sorriu para mim.

— Você trabalha com o Gayle? — ele perguntou com amabilidade, aumentando o sorriso amistoso.

Em outros dias, eu ficaria animada por encontrar alguém nessa empresa que não é frio e taciturno, mas especialmente hoje não estou propensa a ser simpática, logo apenas dei um meio sorriso e assenti.

— Assistente.

— Então nos veremos com frequência daqui em diante.

Eu não teria tanta certeza disso..., pensei, É provável que eu nunca mais ponha os pés neste lugar.

Não falamos mais depois desse último comentário. O silêncio preponderante no ambiente confinado piorava ainda mais a minha claustrofobia. Céus, só faltava acontecer uma pane elétrica de uma hora para outra! Com este pensamento, agarrei a alça da bolsa com mais força que o necessário, comprimindo-a de encontro ao corpo, como se esta providência ajudasse a acalmar meus ânimos alterados.

Buscando encontrar uma distração, visto que paramos no décimo quinto andar e uma multidão resolvera embarcar – ok, eram apenas quatro pessoas –, desviei o olhar para o britânico simpático, que parecia completamente relaxado enquanto observava os executivos adentrando o elevador. Eu não saberia dizer exatamente por que, talvez fruto da minha inquietação, porém me sentia desconfortável ao lado dele.

O homem tinha uma fisionomia leve, daquelas pessoas que mesmo sérias, comportam um sorriso implícito, prestes a aparecer a qualquer momento. Fora isto, ainda possuía um par de olhos azuis intensos e penetrantes, diria até intimidadores. Não sei precisar por quanto tempo fiquei entretida na análise de sua figura, mas repentinamente aquelas orbes azul-piscina voltaram-se na minha direção concomitantemente ao surgimento de um sorriso enviesado. Ele estava ciente de que estivera sendo observado.

Uma vez que o rubor começara a esquentar minhas bochechas, eu deveria disfarçar e parar de encará-lo deliberadamente, contudo não pude tomar qualquer atitude desse tipo, porque o inglês foi muito mais rápido ao salientar:

— Chegamos — ele disse simploriamente, se divertindo ao notar a confusão em meu semblante. — Chegamos ao nosso andar — completou.

Ele tinha razão. O ascensorista impaciente mantinha as portas abertas e alternava o olhar entre nós dois, quase nos expulsando dali. A propósito, não só ele. Quando me recuperei do entorpecimento, percebi todos os outros me encarando com censura. Decidi que era hora de me projetar para fora daquele cubículo antes que alguém resolvesse me empurrar porta afora sem a menor cordialidade. O desconhecido charmoso, que se encontrava mais próximo da saída, deixou o local sem dificuldade e com classe, o oposto de mim.

Por que sempre tão estabanada, Gin?

Surpreendendo-me de novo, ele aguardou pacientemente e, assim que eu saí, postou-se ao meu lado, me fazendo companhia ao passo que avançávamos pelos corredores, como se fôssemos antigos colegas de trabalho. Bom, eu gostaria de ter um colega assim, bonito e de sorriso fácil, mas nada nele soava como se fosse um novo funcionário em potencial. Embora não aparentasse ser tão mais velho do que eu, o homem transparecia um ar de pessoa importante. Este fato era constatado não só pelos seus modos cordiais como também pela escolha de seus trajes de luxo, ainda que notoriamente tivesse se esforçado para parecer casual. Em resumo, julgava que ele era um cara rico, com menos de trinta anos, possivelmente nascido em berço de ouro, entretanto seguro de si o suficiente a ponto de não ver necessidade de esfregar o valor da sua robusta conta bancária na cara das pessoas. Gostei dele.

Chegamos juntos ao hall e quando eu pus a mão na maçaneta da porta, que ocultava a antessala e recepção, meu celular deu sinal de vida pela segunda vez nesta manhã. Não me dei ao trabalho de verificar quem estava me ligando porque tão logo atravessei o batente, dei de cara com Eleonora dependurada no telefone.

A mocreia me lançou um olhar atravessado de decepção, chateada por eu ter chegado dentro do prazo dos cinco minutos estabelecidos desde a sua última ligação. Por um segundo, quase comemorei e estava prestes a abrir um sorriso vitorioso quando me lembrei do que havia acontecido com os documentos. Meu coração começou a bombear forte outra vez e eu senti as pontas dos dedos molhadas, ainda que minhas mãos congelassem pelo frio e pelo pânico – não sei qual das sensações preponderava.

Eleonora percebeu meu rosto contorcido de agonia porque franziu o cenho e abriu a boca para perguntar ou fazer algum comentário sarcástico a respeito, porém sua voz se perdeu na garganta ao que seus olhos especuladores focaram em um ponto acima do meu ombro. Eu não precisei olhar para trás para saber que ela sustentava o olhar diretamente no britânico bonitão que me acompanhara.

— Bom dia, Gabriel — ela cumprimentou, abrindo um sorriso cheio de dentes e muito mal intencionado, ou melhor, repleto de segundas, terceiras e quartas intenções. Argh!

Espera um minuto... eles já se conhecem? Como assim?

— Gabe, por favor — o homem a corrigiu de forma educada. Agora que eu não podia vê-lo, somente escutar sua voz e sotaque atraentes, ficara muito mais derretida. — Bom dia, Eleonora. Seu chefe está por aí? Preciso trocar uma palavrinha com ele, mas não marquei horário.

— Ele sempre está disponível para atendê-lo — eu quase pude ouvi-la dizer nas entrelinhas: “e eu também, caso esteja interessado”. Essa lambisgoia é tão treinada na arte de ser atirada, mas tão atirada, que se a empurrassem do terraço de um prédio, seria capaz de ela cair de pé e sair sem um arranhão. — Peço apenas que aguarde um minuto enquanto eu anuncio sua chegada.

— Não há necessidade, Eleonora — o vozeirão trovejante do Sr. Durand pronunciou em um inglês impecável, me assustando e fazendo-me virar imediatamente quase dando um pulo em meu próprio lugar. — A que devo o prazer dessa visita, Gabe? — ele sorriu amigavelmente para o visitante e se aproximou de onde estávamos parados a fim de passar um dos braços pelos ombros largos do outro, embora eu não acreditasse que toda essa cordialidade fosse sincera. Na verdade, segundo o que conheço do Sr. Durand, ele detesta encontros imprevistos que interrompam seus planos já marcados previamente, algo que me fez pensar que esse tal de Gabe sei-lá-seu-sobrenome fosse alguém mais importante do que eu havia suposto a princípio. — Pensei que a banda já tivesse retornado à Inglaterra.

— Oh, eles voltaram. Estavam todos ansiosos por férias. — ele esclareceu, ainda comportando seu sorriso simpático, mas deixou um suspiro exaurido ao proferir o final da frase. Ao que me parece, Gabe também estava necessitado de umas boas férias. — Também não é para menos, estamos na estrada em turnê pelos últimos nove meses. — Turnê? Não me diga que ele é...?! Ó, céus! — Os caras estavam cansados de dormir nos ônibus de viagem, sem lugar fixo por mais de três dias e privados de ver suas namoradas. — ele revirou os olhos. De repente, nossos olhares se acharam e ele tinha uma fisionomia divertida. Eu só quis cavar minha própria cova com as unhas. — Mas eu precisei ficar mais um tempo por Paris, então decidi fazer uma visita para tirar uma dúvida a respeito do contrato. Podemos conversar sobre, ou cheguei em uma hora inoportuna?

Gayle deu mais um de seus sorrisos amarelos falsos e hesitou por alguns segundos antes de responder. Não que eu esperasse uma atitude rude a ponto de escorraçar o inglês porta afora, induzindo-o a voltar a nado para seu país. Este tratamento carinhoso, o Sr. Durand reservava apenas aos inferiores, ou seja, seus escravos. Quero dizer, funcionários.

— Claro que não! Podemos conversar. Por favor, me acompanhe até minha sala — os dois seguiram para o corredor que culminava na aconchegante sala da diretoria. Eu deveria seguir em seus encalços, já preparada para as anotações e com todos os documentos selecionados. Afinal, à essa conjuntura, estava claro para mim que Gabe era algum dos representantes comerciais dos The Thunderstruck, haja vista a maneira como foi recebido. Mas, por mais que eu estivesse ciente das obrigações, meus pés grudaram no chão de tal forma que eu não me atreveria a dar um passo ou certamente cairia de cara no piso tão bem encerado. — Eleonora — o Sr. Durand voltou-se para trás uma última vez —, desmarque a reunião das nove e não deixe ninguém nos interromper — eu não vi a cara da Eleonora, porém não me restava dúvidas de que ela tinha acatado instantaneamente a recomendação. Portanto, os olhos pétreos do chefe caíram no meu rosto pálido de medo, avaliando-me por um segundo antes de gritar: — Gin! O que está esperando aí parada? Pegue seus pertences e venha até nós o mais rápido possível.

Engoli em seco. Ok, havia chegado a hora de assinar meu atestado de óbito.

— Sobre isso, Sr. Durand... — falei de modo incerto e estremeci ao presenciá-lo estreitando seus olhinhos de ave de rapina prestes a atacar um roedor suculento. E tcharã! Adivinha quem era o preá azarado em questão?! — Eu realmente preciso falar com o senhor a respeito de uma coisa...

— Coisa? Que coisa, Srta. Martins? A senhorita está mais de uma hora atrasada pela segunda vez nesta semana e tem uma coisa para me contar? Então desembuche de uma vez!

A explicação é muito simples, Sr. Durand. Aliás, posso chamá-lo de Gayle? Ah, sim, muito obrigada. O caso é que eu vinha para a gravadora depois de ter passado as primeiras horas do dia quase surtando em uma fila de hospital no intuito de que atendessem minha mãe, que havia se sentido mal durante a madrugada. Não sei se já reparou, entretanto meu francês é uma porcaria e, quando estou nervosa, acabo maximizando meus problemas com a língua, porque misturo português, francês e inglês na mesma sentença, tornando impossível a comunicação com qualquer pessoa que se prontifique a me atender.

Com tudo isso, estou uma, talvez duas horas atrasada para o trabalho – não posso afirmar com exatidão porque esqueci meu relógio de pulso em casa – e sim, também estou plenamente consciente de que atrasos não são toleráveis em sua opinião. Muito obrigada por salientar este lembrete pela centésima segunda vez consecutiva. Além disso, devido à privação de sono pelas duas últimas noites, meus reflexos encontram-se lentos, logo tombei com uma placa no meio da calçada e, de quebra, joguei o café de uma senhora em cima dos contratos e documentação mais importantes da empresa.

Eu não deveria levar trabalho para casa, é verdade. Essas pastas poderiam estar a salvo na gaveta da escrivaninha neste exato momento, se acaso eu não tivesse a brilhante ideia de adiantar minhas tarefas, na esperança de que pudesse ser uma funcionária melhor, mais eficiente e consequentemente menos dispensável, assim como o senhor considera a Eleonora, mas sem a parte do sexo na mesa do escritório.

Tudo isso se passou em minha cabeça no milésimo de segundo concedido para a minha resposta. Contudo, eu não consegui falar mais do que algumas palavras aleatórias desencadeadas, gaguejando gradativamente mais, à medida que o semblante do meu chefe alternava entre a fúria e a incredulidade. Quando me calei outra vez, meus olhos repousaram na fisionomia de Gabe, parado às costas do Sr. Durand a alguns passos de distância. Por um instante, considerei que ele julgava minha atitude irreparável, então encolhi os ombros, me achando uma tonta. Mas o pensamento se dissipou ao atentar para um detalhe: Gabe não falava francês. Logo, o vinco cravado entre suas sobrancelhas, provavelmente, se devia à falta de compreensão do que se passava perante sua presença.

— Você, o quê? — Gayle berrou, dando dois passos largos na minha direção e, reflexamente, eu recuei. Mais uma vez, desviei a atenção para o visitante, envergonhada de ter minhas ações ridículas sendo lançadas na mesa. Com isso, o Sr. Durand finalmente se lembrou de que não estávamos a sós na recepção e isso o ajudou a retomar o pouco de sanidade, porque, em seguida, ele inspirou profundamente e virou-se para encarar o britânico com um jeito menos tempestuoso. — Gabe, pode nos conceder um minuto sozinhos? Prometo não fazê-lo esperar por muito tempo — e, então, cravou aqueles olhos acusadores em mim novamente. — Ao contrário dos meus funcionários incompetentes, eu cumpro com meus horários e obrigações. — Ouch! Eu mereci essa.

Gayle Durand não aguardou por possíveis contestações tanto da parte de Gabe quanto da minha. Tomou um dos meus braços em um aperto de ferro e me carregou, aos tropeços, para sua sala, localizada no extremo oposto do corredor. Ninguém precisaria ser um gênio para entender que o homem enfurecido almejava o máximo de distância dos ouvidos curiosos a fim de esbravejar todos os xingamentos conhecidos e até os desconhecidos na língua francesa.

Quando saí, meus olhos estavam inchados de tanto chorar. Assim que passei pela porta, Gabe arrastou o corpo para a ponta da poltrona de couro da antessala, indeciso quanto a se levantar ou permanecer no mesmo lugar, observando minha cara lavada de lágrimas. Eu nunca fui boa em lidar com o sentimento de pena, por isso tratei de me recompor e, sem dizer qualquer palavra, ou mesmo avaliar a fisionomia de triunfo da secretária nojenta, me pus a andar para os elevadores.

No entanto, imediatamente após cruzar a porta da recepção, desmoronei de novo, incapaz de conter o sofrimento. Na minha mente, as palavras duras do Sr. Durand eram rebobinadas de uma forma doentia, como se eu ainda ouvisse seus berros nada polidos e, por conseguinte, a declaração da demissão em alto brado, que repercutiu pelas paredes sufocantes daquele local. Com a mão em concha cobrindo minha boca, permiti apenas que alguns lamentos pouco audíveis escapassem ao mesmo tempo que meus ombros sacolejavam devido ao pranto contido.

O que eu vou fazer da minha vida agora?

Minhas entranhas, acometidas por um frio intenso e que eu sabia não ser referente ao clima gelado da manhã, começaram a remexer. Fiquei grata por não ter nada no estômago desde a noite anterior ou poria tudo para fora.

Depois de apertar freneticamente o botão de chamamento do elevador, comecei a caminhar de um lado a outro, imersa em previsões do futuro recente. E se eu não arranjasse outro emprego? E se eu precisasse voltar com a minha mãe para o Brasil? Ah, mamãe...! Como lhe contaria sobre a demissão? Enfim, o elevador chegou ao andar e logo que as portas abriram, o ascensorista emburrado fez uma careta nada discreta ao me reconhecer.

— Hey! Por favor, espere um segundo — eu estanquei no lugar de repente. Ao me virar, Gabe já estava ao pé de mim, mirando-me com um olhar compadecido enquanto esquadrinhava meu rosto. Não tive tempo de disfarçar as últimas lágrimas; ele as flagrou e parecia desconfortável com isso. — Ei, não chore, por favor. Eu não sei lidar muito bem com mulheres chorando.

— O que o senhor deseja? — questionei em tom profissional, quando, na realidade, só queria me entocar no elevador e fugir o mais rápido possível de sua presença.

— Ah... Senhor? — ele abriu um meio sorriso. — Não posso ser assim tão mais velho que você. Me chame de Gabe. Você é a Gin, estou certo?

— Acho que ouviu bem os gritos do Sr. Durand.

— Você foi demitida, não foi? — eu assenti, segurando o instinto de revirar os olhos. Alguém ainda duvidava disso? — Isso é bom — ouvi-o dizer displicentemente e, em reação, arregalei os olhos. — Quero dizer, não exatamente bom, mas... Certo, o que eu quero dizer realmente é que Gayle parece ser um chefe pé no saco, então... — Gabe deu de ombros, como se não tivesse palavras para expressar seus pensamentos. Noutra situação, em um dia menos conturbado, ao vê-lo com suas mãos enfiadas nos bolsos dianteiros da calça e com as bochechas alvas adquirindo dois ou três tons de escarlate, eu o acharia adoravelmente fofo. Infelizmente, eu não me encontrava em uma boa hora para flertes, então só retribuí seu sorriso encabulado, embora eu tenha a certeza de que mais parecia alguém com uma forte constipação intestinal.

— Com licença, Gabe, mas preciso ir embora — disse no meu tom mais educado, mesmo que as palavras soassem mal educadas. Nesse ínterim, o ascensorista bufou e resmungou algo como “por que vocês dois não procuram um quarto, em vez de ficarem enchendo a paciência de quem realmente precisa trabalhar?” Eu o ignorei, contudo. E fiz questão de prender o elevador de propósito, só para irritá-lo. Do que ele estava reclamando? Pelo menos ele ainda tinha um trabalho... — Quanto antes eu começar a procurar por outro serviço, menos tempo ficarei desempregada. Foi um prazer conhecê-lo.

— O prazer foi todo meu, Gin — Gabe fez uma pequena reverência com a cabeça. E eu lamentei nunca mais poder observar aqueles olhos azuis.

Com um último suspiro, embarquei. Mas, antes que as estruturas de metal o ocultassem de vez aos meus olhos, o britânico colocou a cabeça no ângulo entre a portas se fechando e falou depressa:

— Ei, você está a fim de trabalhar com uma banda de malucos?

Não tive tempo de responder, mas captei seu sorriso espontâneo ao passo que minha expressão mudava de tristeza para algo entre o espanto e a felicidade.


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