Contos de Halloween escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 8
Memórias de um apocalipse - parte final




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O calor estava insuportável e os macacões pareciam fornos em forma de roupas. Nós andávamos lentamente tomando cuidado para não chamar a atenção. Por todos os lados, víamos zumbis andando vagarosamente. A maioria estava deitada ou sentada no chão por causa do calor e porque não havia carne fresca a vista. O cheiro podre também os despistava e assim podíamos andar com relativa segurança.

Levou quase uma eternidade para chegarmos a loja de ferramentas e ainda precisamos matar três zumbis que estavam lá dentro. Cascão, Jeremias e Keika fizeram o serviço. Depois disso pegamos tudo o que podíamos e voltamos rapidamente.

– Ei, olha lá! – Cascão sussurrou apontando numa direção. – Aquele cara era um policial e ainda tem a arma na cintura!

Será que a longa convivência com o Cebola fez o Cascão bolar planos desmiolados? Ele queria mesmo roubar a arma de um zumbi? Keika tentou colocar juízo na cabeça suja dele.

– Melhor não, têm muitos deles aqui. Se você matar um, os outros podem atacar.

– Nós precisamos daquela arma pra dar um fim na Mônica, lembra? Qualquer dia desses ela vai arrebentar a porta do nosso abrigo e aí já era!

Eu tremi e não falei nada, pois aquilo quase aconteceu uma vez. Caso ela resolvesse fazer de novo, todos nós estaríamos condenados. Ele pegou um atiçador bem duro e afiado e foi até o guarda andando cuidadosamente. Se conseguisse acertar a cabeça dele com um golpe certeiro, tudo estaria resolvido.

Apesar de forte, ele não tinha a mesma habilidade da Keika e acabou tendo que bater no zumbi várias vezes até ele cair morto no chão e isso chamou a atenção dos outros que foram para cima dele.

– Corre, galera! – Ele falou pegando a arma e também as balas e nós corremos o máximo que podíamos, mas era difícil carregando aquelas coisas. Foi preciso deixar grande parte para trás e levamos só os cadeados e correntes.

Um grupo de zumbis apareceu na nossa frente, bloqueando a passagem. Eram muitos e não íamos conseguir acabar com eles.

– Você tá com uma arma, então mete bala em todo mundo! – Jeremias pediu apavorado.

– Tá doido? O barulho dos tiros vai atrair muito mais! Tem pra todo mundo não!

Nós recuamos e corremos para outro lado, o que não foi de grande ajuda. Havia zumbis por toda parte e eles emergiam de todos os lugares possíveis. Os três lutavam ferozmente contra aquelas coisas, mas eu fiquei paralisado de medo.

– Acorda, Xaveco! Eles vão te pegar! – Cascão gritou enquanto golpeava um várias vezes.

Foi com grande custo que eu saí do meu transe, peguei uma pá e investi contra um deles, dando vários golpes e finalmente matando meu primeiro zumbi. Não deu para comemorar porque apareceu outro, e mais outro. Aquilo não acabava nunca. Um monte deles se juntou ao nosso redor e finalmente dois agarraram o Jeremias, que gritava e se debatia como louco levando várias mordidas. Eles foram muito rápidos e não pudemos fazer nada. Quando viram que tinha carne fresca disponível, um monte deles caiu em cima do pobre coitado que gritava sendo devorado vivo. Só nos restou fugir dali, aproveitando que eles estavam distraídos.

Bem... isso não adiantou muito. Quando chegamos perto do nosso abrigo, um grande grupo veio na nossa direção, liderados pela Mônica com o Cebola logo atrás. Certo, as coisas estavam ficando muito feias.

Cascão tremia como vara verde segurando o revólver. Ele não fazia a menor idéia de como usava aquela coisa.

– Droga, por que você não atira? – Keika gritou pronta para lutar.

– Eu não sei usar essa coisa, tá legal? Nunca usei isso!

– A gente vai morrer... vai morrer... – eu murmurei no auge do meu medo.

Mônica veio em nossa direção e Keika tentou enfiar seu espeto de churrasco na cabeça dela. Céus! Quando falavam que ela era cabeça dura, nunca pensei que fosse no sentido literal! O espeto quebrou quando Keika tentou cravar na testa dela e a coitada caiu no chão. Ela ia ser devorada viva com certeza. Não, não ia!

Até hoje eu não sei de onde tirei toda aquela coragem. Sério, foi algo que tomou conta de mim de um jeito estranho. Por um instante, eu não era eu mesmo. Num movimento rápido, eu peguei a arma do Cascão, mirei e atirei contra ela. O primeiro tiro passou longe. O segundo passou de raspão no ombro. O terceiro acertou o rosto dela e com o quarto pude terminar o serviço. Cebola veio para cima de mim, talvez com raiva por eu ter matado sua amada. Ou então só queria um lanche rápido. Cascão não quis esperar o próximo tiro e enfiou o atiçador na cabeça dele e viu, entre lágrimas, seu melhor amigo finalmente caindo morto há menos de meio metro da garota que amava.

O revólver era mesmo uma faca de dois gumes. Se por um lado nos ajudou a acabar com a Mônica, o zumbi mais perigoso de todos, por outro lado chamou a atenção dos outros. Muitos outros. Era o nosso fim.

– Cuidado! – Cascão gritou quando ouviu o chiar de pneus e um carro veio na nossa direção atropelando muitos zumbis de uma vez.

– Quim! Que bom te ver! – Eu falei muito feliz e aliviado achando que ele ia nos dar uma carona. Mas seus planos eram diferentes.

– Eu vou distraí-los. Vocês correm!

O alarme do carro começou a disparar bem alto e ele saiu dali a média velocidade, tendo uma procissão de zumbis logo atrás. Nós achamos que ele ia apenas levá-los para longe. Era um plano até bem simples. Corremos para o nosso prédio e entramos achando que dentro de alguns minutos, ele ia se juntar a nós. Isso não aconteceu. O som de uma explosão forte veio do lado de fora e todos corremos para uma as janelas dos andares superiores, que podia ser aberta em segurança. Uma grande nuvem de fumaça e fogo subia há alguns quarteirões dali, nos deixando confusos.

– O que foi aquilo? – Cascão perguntou atordoado e Franja respondeu.

– Instalei uma bomba naquele carro. É forte o suficiente para matar muitos zumbis de uma vez só. Talvez uma centenas ou mais.

– Tá, mas e o quim? – Keika perguntou tremendo, muito nervosa. O cientista abaixou a cabeça e respondeu roboticamente.

– Eles são atraídos por barulho. Alguém precisava dirigir o carro e levá-los para longe daqui. O Quim se ofereceu.

– E você deixou? – Cascão gritou agarrando-o pela gola da camisa. – Seu imbecil, você deixou ele se matar!

– Ele se ofereceu, eu não pedi nada. Ele quis assim. – Foi a resposta lacônica e nós tivemos que segurar o Cascão com força para que ele não triturasse a cara do Franja.

– Seu desgraçado, eu devia te jogar pros zumbis agora mesmo!

– Faça isso. Eu não ligo.

Os ânimos permaneceram exaltados por muito tempo. Era assustador ver como Franja tinha perdido todas as emoções, não sendo mais capaz de sentir dor, empatia, compaixão, amizade, nada! Aquele grande apocalipse zumbi tinha mexido com a cabeça de todos.

Carmem chorava desoladamente ao saber da morte do Jeremias. Todos estavam deprimidos com as duas perdas que tivemos naquele dia. Matar a Mônica foi uma vitória vazia.

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Eu acordei com minha mãe me sacudindo com força.

– Filho, é a Xabéu! Venha!

Eu levantei num pulo só e fui até onde estava o transmissor que ela tinha deixado com a gente. Aquilo só funcionava quando a nave Hoshi estava próxima da Terra, o que podia ser bom sinal.

– Xabéu, que bom te ver! – eu falei muito animado. Os outros também vieram ansiosos por boas notícias.

– Gente, me escutem com atenção. Foi descoberta a vacina para esse vírus e montaram na nave Hoshi uma grande área que servirá de hospital e quarentena para as pessoas da Terra. Conseguiram descobrir até a cura, contanto que a pessoa ainda esteja viva!

A alegria foi geral, pois aquilo significava a salvação de todos.

– Nós estamos coletando os humanos sobreviventes. Depois disso, usaremos uma bomba especial que irá dizimar todos os zumbis da Terra e assim ela poderá ser repovoada.

Aquilo também eram boas notícias. Mas havia um porém.

– A nave que irá resgatar vocês vai pousar no antigo campinho, vocês sabem onde fica. Mas precisam estar lá ou não poderão ser resgatados. As bombas foram jogadas na Terra e foram acionadas para explodirem dentro de três horas. Eu sinto muito, o Astronauta não conseguiu negociar um prazo maior! Outros planetas e colônias estão muito preocupados com essa infestação e querem acabar com tudo rapidamente. Já tem naves resgatando as pessoas e a de vocês deve chegar a qualquer momento. Precisam ir logo!

Após dar mais algumas instruções, a transmissão foi encerrada. Todos estavam ao mesmo tempo felizes e apreensivos. A salvação estava a caminho, mas não havia garantia de nada.

– Gente, nós temos que sair daqui agora mesmo!- Cascão falou enérgico. – A hora é agora, depois disso acabou! Vamos!

Ninguém juntou nada, todos saíram com as roupas do corpo. As poucas armas que tínhamos foram distribuídas e nós saímos em grupos de dois ou três. Eu levava minha mãe pela mão e segurava um machado com a outra.

Cascão ia com Cascuda, Keika levava Irene. Denise ia com Carmem e Dudu enquanto Isa foi com seus pais. Carlito e Franja foram juntos, mas eu estava desconfiado de que aqueles dois não tinham planos de sobreviver.

As ruas estavam relativamente limpas, graças ao Quim que tinha dado fim em dezenas, talvez uma centena de zumbis. Infelizmente nosso prédio ficava muito longe do campinho e precisamos correr, o que não nos permitiu ter muitos cuidados com os zumbis restantes. Eles logo notaram nossa presença e nos seguiram. Mas não houve jeito, tivemos que continuar.

Eu puxava minha mãe, segurando a mão dela com tanta força que mais tarde ficaram grandes hematomas. Estávamos um pouco atrás do grupo e por isso pudemos notar que dois membros não queriam continuar.

– Franja! Seu Carlito! O que vocês estão fazendo? Andem logo! – Eu gritei e os outros olharam para trás.

Os dois não responderam nada. Eles apenas trocaram poucos olhares e correram na direção oposta. Antes de serem alcançados pela horda, Franja tirou uma pistola do bolso do jaleco (ele tinha uma arma o tempo todo? E nunca falou nada?) deu um tiro em Carlito e outro na própria cabeça. Ambos caíram mortos e os zumbis não perderam tempo.

Falando em tempo, não pudemos parar e lamentar a perda deles. Continuamos a correr o mais rápido que nossas pernas permitiam. Denise e Dudu ajudavam Carmem, pois ela não era muito boa para correr. Isa conseguia correr com seus pais, ainda que com dificuldade. Já Keika conseguia levar Irene e Cascão ia na frente com Cascuda por ser mais rápido.

– O Campinho! Estamos chegando! E bem na hora! – Cascão gritou muito feliz. A nave flutuava sobre o campinho esperando por nós. E não éramos os únicos sobreviventes. Havia outras pessoas que não conhecíamos e eles tinham chegado antes de nós.

O problema era que muitos zumbis vieram atrás deles e pegaram alguns. Outros nos cercaram, impedindo nossa paisagem. Era perigoso passar entre eles.

– Pessoal, temos que nos dividir! – Cascuda gritou. Cada grupo vai para um lado!

Nós nos dispersamos. Cascão conseguiu passar com a namorada agilmente entre vários mortos-vivos. Sua experiência como jogador de futebol e praticante de parkour foram bem úteis. Keika, por praticar artes marciais graças ao treinamento de super sentai, também conseguiu passar entre eles levando Irene.

Denise e Carmem tiveram muitas dificuldades e um deles chegou a morder o braço de Dudu. Mas as garotas conseguiram tirá-lo dos zumbis antes que um monte deles se reunissem para o banquete. Até Isa conseguiu passar com os pais dela. Mas ainda restavam minha mãe e eu.

O numero de zumbis aumentou, tornando a passagem ainda mais difícil. A nave desceu para pegar os sobreviventes e eu percebi que se não corrêssemos, ninguém viria nos salvar. Muitas vidas tinham sido perdidas e eles não pretendiam perder ainda mais.

– Vai, Xaveco, corre! – Ela falou tentando soltar minha mão. Claro que eu recusei.

– Nem pensar, nós dois vamos juntos!

Por medo de ela sair correndo dali para atrair os mortos para longe, eu continuei segurando a mão dela com mais força ainda e golpeava com o machado qualquer um que tentasse aproximar. Gritos chegavam até meus ouvidos, eram meus amigos me chamando freneticamente. Eles não podiam fazer nada e eu entendia isso. Daquela vez, estava por conta própria.

O grupo se juntou mais ainda, tornando nossa passagem impossível. Eu sabia que se demorasse mais um minuto ou dois, a nave ia partir sem nós, já que eles não iam ter o trabalho de salvar somente duas pessoas. Minha garganta estava seca, meus braços doíam. O machado ficava cada vez mais pesado e eu tinha medo de não conseguir segurar minha mãe. Para cada zumbi que eu derrubava, apareciam dois no lugar. Aquilo não ia acabar nunca.

Um som estridente ecoou no ar, fazendo com que todos pulassem de susto. Xaveco parou a leitura e levantou a cabeça para ver toda a classe que olhava para ele com os olhos arregalados. Uns torciam as mãos nervosamente. Outros roíam as unhas. Carmem, coitada, não parava de chorar. Cebola lutava para não arrancar seus cabelos e ficar só com cinco fios novamente.

– Muito bem, a aula acabou. – A professora de literatura anunciou. Era hora do intervalo.

– Ahhhhh! Todos falaram desapontados. Não era justo a história ser interrompida na melhor parte.

No corredor, todos reuniram ao redor do Xaveco.

– História maneira, cara! Pena que eu morri, fala sério! – Jeremias reclamou.

– A louca, eu devo ter ficado super diva até no fim do mundo! – Denise falou também empolgada. Carmem ainda chorava como um bezerro desmamado.

– Ué, Carmem! Ficou tão comovida assim com a história? – Mônica perguntou estranhando o comportamento da amiga.

– Meus cabelos! Meus lindos cabelos! Por que eu tive que cortar meus cabelos, por que? Por quê? Por queeeeeee? – ela bradou sacudindo Xaveco pela camisa.

– Ei, calma! Todo mundo cortou os cabelos porque era mais fácil manter limpo sem água e também para não serem agarrados por trás! Só isso!

– Seu tosco, insensível, coração de pedra! Nunca mais faça isso, ouviu? Meu cabelo é coisa séria!

O pessoal deu risadas com o drama que Carmem estava fazendo. Ela estava com a cara inchada e sua maquiagem tinha borrado, feito o rímel escorrer pelos olhos. Que cena grotesca! Antes de levá-la ao banheiro para lavar o rosto e refazer a maquiagem, Denise pediu.

– Libera o resto da história, fófis! – os outros concordaram.

(Cascão) – É mesmo, véi!

(Nimbus) – Você e sua mãe sobreviveram?

(Isa) – Conseguiram escapar?

Xaveco fez um pouco de suspense, adorando ser o centro das atenções. Depois respondeu.

– Sim. Quando um monte de zumbis ia pegar a gente, a Xabéu apareceu com uma nave de combate e atirou neles. Assim pudemos ser resgatados.

– Aêeee! – o pessoal comemorou.

– Fomos para a nave Hoshi e ficamos em quarentena até certificarem de que estávamos livres do vírus. Dudu foi mordido, mas recebeu a cura a tempo e se salvou. As bombas foram acionadas e detonaram todos os zumbis da Terra. Depois de alguns anos, quando viram que o planeta estava livre de mortos-vivos e todos estavam vacinados, pudemos voltar e repovoar a terra. Vou postar a história no meu blog. Quem quiser, pode ler com mais calma.

– Beleza!

– Vou querer sim!

– Sua história ficou demais!

– Aposto que tirou nota máxima!

O grupo dispersou e foram todos para a cantina. Xaveco deu uma olhada no caderno, feliz por ter conseguido criar uma boa história. Claro que em seu mundo imaginário, nem todos os humanos foram resgatados. Em tempos de grandes crises, a vida das pessoas parece se tornar algo secundário, uma perda necessária na hora de eliminar um mal maior.

“Quem disse que apocalipse zumbi é fácil?” ele pensou também indo para a cantina. O celular apitou levemente e ele leu uma notícia. Uma pessoa da Noruega tinha sido infectada e também duas da China. Será que era só uma doença ou o começo de algo mais grave e sinistro? Ele preferia pensar que aquela doença ia ser erradicada logo. De qualquer forma, era preciso ficar de olho. O futuro era incerto e nada estava garantido. Mas por enquanto, ele só queria comer algo e aproveitar sua popularidade temporária por causa da história. Ele bem que podia escrever mais vezes!


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