Contos de Halloween escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 7
Memórias de um apocalipse -primeira parte


Notas iniciais do capítulo

Quando o mundo é devastado e perdemos as pessoas que amamos, como podemos seguir em frente se há morte e perigo por toda parte? O Xaveco irá contar tudo!

É a primeira vez que faço uma história narrada em primeira pessoa.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/557401/chapter/7

A noite estava para cair e um vento frio batia no meu rosto. Apesar de tudo, o céu estava bonito, tingido com tons de vermelho, alaranjado e um resto de azul e branco. Algo do tipo que Marina adoraria pintar, caso ela ainda pudesse fazer isso.

– Nós temos que verificar as portas. – uma voz falou atrás de mim, tirando-me do meu pequeno momento de paz. Levou cinco ou seis segundos até eu perceber que era a Denise.

Eu ainda não tinha me acostumado com o seu novo visual, sem as marias-chiquinhas. Quem nesse universo poderia imaginar a fofoqueira suprema do limoeiro, sempre muito preocupada com a moda, usando aquele corte de cabelo tão sofrível? Bem... quem era eu para falar alguma coisa? Meus cabelos estavam na mesma situação: cortado precariamente com uma tesoura meio cega. Todos no nosso abrigo estavam na mesma situação. Até a Carmem. Era necessário, pois cabelos grandes podiam ser agarrados por trás.

– Onde estão as correntes? –perguntei pegando um taco de beisebol.

– Estão nas escadas. Não podemos esquecer de nenhuma. O Jeremias já está olhando as janelas. Toda hora aparece uma tábua solta!

Eu dei uma olhada lá em baixo, na rua, e vi alguns deles caminhando lentamente e de forma aleatória. Eles não tinham nenhum critério definido a não ser procurar por comida. Carne fresca e viva.

Essa era a nossa rotina diária desde que a grande infecção se alastrou de uma forma que ninguém foi capaz de prever. Tudo começou com os surtos de ebola na África, algo tão distante para nós como outro planeta. Os doentes estavam em outros países, nunca no Brasil e isso nos deu uma falsa sensação de segurança.

O número de mortos por esse vírus não passava dos cinco mil e o de infectados era por volta de dez mil. Um valor alto, mas que não nos preocupou. Então os números começaram a aumentar demais dentro e fora da África. E as fatalidades também.

Mesmo assim o governo brasileiro não tomou nenhuma providência. Os candidatos estavam preocupados demais com as eleições e ainda havia a seca em São Paulo que era uma preocupação imediata. No máximo, alguns só faziam piadinhas dizendo que o ebola não podia chegar ao Brasil porque nosso país não tinha condições de suportar um evento de grandes proporções. E não tinha mesmo. Especialmente quando esse evento tomava rumos tão inesperados e traiçoeiros.

Primeiro começaram boatos de pessoas que, depois de terem “supostamente” morrido com a doença, se levantavam entre os corpos e andavam. Muitos acharam que era um milagre até essas pessoas começarem e atacar os médicos, enfermeiros e agentes que cuidavam a limpeza e remoção dos corpos.

Mas não eram pessoas comuns. Eram criaturas famintas por carne fresca. Uns foram devorados vivos. Outros escaparam com algumas mordidas, achando que iam ficar bem. Não ficaram. Em poucos dias, essas pessoas apresentaram os sintomas da doença e morreram com a hemorragia. Depois surgiram com o olhar embaçado, corpo ensangüentado e famintos por carne.

Os governos tentaram fazer algo para conter esse novo surto. Tarde demais. A doença se alastrou por cidades, estados, países e por fim continentes. Pelo menos foi o que eu fiquei sabendo quando ainda havia TV, internet e rádio. Agora não há mais nada.

Enquanto ajudava a colocar correntes nas portas, eu pensava em tudo o que tinha acontecido. Antes vista como algo distante, a epidemia finalmente chegou ao nosso bairro junto com algumas pessoas que vieram fugindo da epidemia de zumbis. Em alguns lugares, havia condições de saber rapidamente se as pessoas estavam ou não infectadas. Quem estivesse com o vírus era eliminado na mesma hora e tinha o corpo incinerado.

Só que o Limoeiro não tinha esse preparo. As pessoas vieram para cá porque era mais fácil, não tínhamos defesa. Em poucos dias, os primeiros zumbis começaram a vagar pelas ruas. A polícia tentou atacá-los sem sucesso. Como matar quem já estava morto? Muitas vidas foram perdidas até o Franja descobrir que eles não estavam exatamente mortos, pois uma área do cérebro ainda funcionava mantendo as funções básicas do corpo.

Assim, aprendemos que para matá-los, tínhamos que acertar a cabeça.

– Denise, eu acho que esse cadeado tá com problemas. – Eu falei tentando afastar a lembrança desagradável. – Ele não fecha direito.

Ela o examinou um pouco e disse.

– Vamos ter que quebrar o galho com esse aí, não tem jeito. Amanhã a gente tenta achar outro.

As portas foram bem trancadas e ainda usamos objetos pesados para maior segurança. Jeremias tinha terminado de verificar as janelas e reclamava da falta de pregos. Nós subimos para os andares superiores e fomos trancando as portas atrás de nós. Era um procedimento muito rígido de segurança para manter viva o pouco que tinha restado da nossa turma.

No meio do caminho, encontramos Keika vigiando a rua por um buraco entre as tábuas estrategicamente colocado para nos dar uma boa visão do exterior sem sermos vistos.

– Gente, ela apareceu de novo! Eu tô com medo!

Nós olhamos pelo buraco e a sensação de medo foi geral. Ela apenas andava lentamente, examinando e procurando por comida como todo mundo. Mas ela não era igual a todos. Era mais perigosa.

– Façam silêncio! – Eu falei muito baixo e procuramos nos manter imóveis.

Uma pessoa infectada por um vírus zumbi por si só era terrível. Quando essa pessoa tinha a força de um exército inteiro, o problema se multiplicava. Quem podia imaginar que alguém tão forte como a Mônica acabaria desse jeito? Foi um desastre. A primeira vítima foi o DC, atacado sem a menor chance de defesa e devorado parte por parte. Outros tentaram ir para cima dela, mas não havia como derrotá-la com força bruta e ninguém tinha arma de fogo. A próxima foi Magali. Um fim irônico para ela.

Cebola agüentou por um tempo liderando o grupo quando teve um plano: conseguir uma arma de fogo e assim conseguir matá-la a distância. No fim ele fraquejou. Seu sentimento por ela era mais forte do que tudo e ele tomou uma decisão louca. Depois de ter perdido a família, muitos amigos e a garota que amava, não lhe restava nada a não ser um mundo devastado e a humanidade a beira da extinção. Então por que lutar? Pensando assim, ele infectou a si mesmo e juntou-se a ela. Era estranho ver como eles sempre apareciam juntos mesmo depois de mortos e sem consciência nenhuma.

– São eles? – Cascão murmurou juntando-se a nós.

– Sim.

Meu amigo respirou fundo para conter as lágrimas e ordenou.

– Vamos lá pra cima. Com cuidado pra não fazer barulho, ouviram?

Nós concordamos e subimos as escadas pé ante pé até chegarmos ao último andar, único que era habitado por quem sobreviveu.

__________________________________________________________

– Aqui sua comida. – minha mãe falou me oferecendo um pacote de onde saía um pouco de fumaça. Era um tipo especial de comida que tinha um composto inofensivo aos humanos que aquecia quando o pacote era aberto e exposto ao oxigênio. O composto evaporava, sobrando apenas a comida quente. Era uma forma de economizar água e combustível. Cortesia do Astronauta.

– Teve notícias da Xabéu? – ela abaixou a cabeça e eu adivinhei a resposta.

Quando encontrei minha irmã pela última vez, ela explicou que a nave Hoshi não podia resgatar os sobreviventes na Terra por medo de que a infecção atingisse os humanos da nave. Isso só poderia ser feito depois que descobrissem a vacina. Desde então se passaram vários meses e sobrevivíamos graças ao envio de suprimentos, água e remédios através de teletransporte. Era o que mantinha nosso grupo vivo e seguro, já que não havia necessidade de sair todos os dias a procura de comida.

A noite caiu completamente só havia uma luz muito fraca aqui e ali para que as pessoas pudessem andar sem tropeçar.

Nós fomos nos acomodando para dormir, já que não havia muita coisa para fazer e todos tinham medo de conversar e fazer qualquer barulho porque isso atraia os zumbis.

Carmem se aconchegou com Jeremias em um canto. Quem podia imaginar que eles seriam um casal?

Isa juntou-se aos seus pais. Ela era a única da turma que ainda tinha pai e mãe. O restante ficou órfão ou com apenas um deles. Meu pai foi pego pelo vírus e transformou-se em zumbi. Matá-lo foi a coisa mais difícil e dolorosa que minha mãe precisou fazer. Mesmo após o divórcio, ainda havia amizade entre eles.

Keika estava sozinha e não tinha nem mesmo o Tikara para lhe fazer companhia. Quim havia perdido todos que amava, especialmente Magali. Eu sinceramente não sei como ele se mantém vivo. Franja andava de um lado para outro como um robô. Não mostrava emoções, não chorava, não ria, quase não falava. Apenas cuidava do pequeno resto de tecnologia que ainda tínhamos. Era o sistema silencioso de alarme dele que nos avisava quando um zumbi aproximava demais do prédio. Marina morreu e todo seu coração e emoção foi com ela.

Soube que muitos tiraram a própria vida diante do pavor iminente e sem solução. Foi o que aconteceu com Dorinha e Luca, pois tinham maiores dificuldades para fugir e sobreviver. Licurgo também preferiu acabar com tudo num acesso supremo de loucura.

Sem falar que alguns membros simplesmente desapareceram e eu até hoje não sei se morreram devorados, viraram zumbis ou, graças a um milagre, sobreviveram. Aninha e Titi nunca mais foram vistos. Eu também não sei por onde andam Felipe e Luisa, os primos da Carmem. Eles se separaram na confusão e não foram mais vistos. Uns dizem que o Toni virou zumbi, outros acreditam que ele se juntou a outro grupo, mas certeza ninguém tinha.

No nosso grupo, além dos que eu falei, também tinha seu Carlito, pai da Magali. Coitado, desde que perdeu a esposa e a filha, ele afundou numa depressão muito forte. Dudu e Irene também tinham escapado, mas perderam toda sua família como muitos de nós. Cascuda também tinha escapado e era a única coisa que impedia o Cascão de desmoronar. Sem o Cebola, restou para ele assumir a liderança do grupo, mas na verdade era ela quem traçava os planos, estratégias e esquemas de segurança. Fora esses poucos sobreviventes, todo o resto da turma estava morta ou desaparecida. Era terrivelmente desolador.

Durante toda a vida, sempre contamos com Mônica, Cebola, Magali e Cascão para resolver todos os problemas e nos proteger. Quando a perdemos, tudo desmoronou. Agora só sobrevivemos, um dia de cada vez e na esperança de que Astronauta venha nos resgatar.

Eu sempre penso no que Xabéu está fazendo ou pensando. Coitada... sei que sofre muito pensando na família que teve de deixar para trás. Ela queria ficar, mas nossa mãe não permitiu. Ela era mais útil na nave Hoshi trabalhando numa solução do que correndo perigo entre nós.

Às vezes eu tenho esperança de que a cura seja descoberta e todos os zumbis voltem a ser pessoas novamente. Assim poderíamos ter de volta as pessoas amadas. Em vários momentos, imagino a mim mesmo como o salvador da humanidade. Isso seria incrível. Xaveco, o personagem secundário que está sempre no canto do quadrinho. Não chove, não molha. Não fede, nem cheira. Quem seria capaz de imaginar que ele, justamente ele, seria capaz de resolver toda aquela crise e salvar o que resta da humanidade.

Claro que são apenas devaneios, pois eu ainda continuo o mesmo de sempre. Só não sou mais ignorado como antes porque há poucos de nós, então as pessoas têm que conversar comigo querendo ou não. Mas eu não virei nenhum guerreiro super musculoso, bom em armas e capaz de matar dez zumbis de uma vez. Eu não matei um sequer.

– Xaveco, o Cascão tá chamando. Temos que planejar algumas coisas pra amanha. – Denise chamou e eu a segui sem falar nada.

Essas reuniões aconteciam dentro do armário de vassouras e produtos de limpeza porque ele não tinha janelas, então podíamos iluminar o ambiente sem chamar atenção indesejada.

– Seguinte, nossos cadeados estão um caco, precisamos de novos e temos que ir até a loja de ferramentas para ver se pegamos mais. – Ele começou e Cascuda continuou.

– Essa loja fica a cinco quarteirões daqui, é muito longe para ir a pé e também é perigoso, então temos que planejar muito bem.

Ela mostrou seus planos num pedaço de papel. A hora escolhida era meio dia, quando o sol era mais forte, especialmente no verão. Os zumbis ficavam mais letárgicos em temperaturas extremas, tanto de frio quanto de calor. Talvez porque gastava mais energia. Ela continuou.

– Será enviado um grupo de quatro pessoas. Quando chegarem a essa loja, pequem todos os cadeados e correntes que puderem carregar. Nós também precisamos de coisas que possam ser usadas como armas. Lá tem facões, ancinhos, pás e foices. Sei que essas coisas são pesadas, mas precisamos delas.

– Faremos só isso e mais nada. Não vamos ficar zanzando pela cidade porque é perigoso. – Cascão completou.

Tudo planejado, finalmente fomos dormir. O dia seguinte prometia ser cheio.

__________________________________________________________

Keika olhava para o lado de fora através da fresta da porta. Em sua mão, ela segurava um espeto para churrasco e esperava pacientemente a hora de agir. Um morto-vivo passou perto da porta e num movimento rápido, ela saiu e o acertou na cabeça. Tudo aconteceu em poucos segundos e Jeremias o levou para dentro com a ajuda do Quim.

Os voluntários estavam vestidos com macacões que cobriam todo o corpo. Eles tinham sido lavados na última chuva, mas ainda mantinham manchas de sangue. Cascão, Jeremias, Keika e eu vestimos os macacões e uma das piores partes do trabalho começou.

Jeremias abriu o corpo com um machado e nós passamos sangue e tripas nos macacões. Era nojento, o cheiro horrível de carne podre entrava nas nossas narinas como um grande soco. Mas não havia jeito. Só assim podíamos disfarçar o cheiro de carne viva e despistar os mortos.

Quando estávamos cobertos de sangue da cabeça aos pés, pudemos sair na nossa missão até a loja de ferramentas. Felizmente Mônica não estava nas redondezas. Ela era a maior ameaça porque diferente dos outros zumbis, simples golpes não eram suficientes para matá-la.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Contos de Halloween" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.