Upside Down escrita por Lirael


Capítulo 3
Conheça seu inimigo




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Merida observou a lua passar por suas fases, encolhendo, desaparecendo e inchando outra vez, até que o dia esperado finalmente chegara. Sua mente vagou até alguns dias atrás, quando ela fez seu caminho até a casa da bruxa, para buscar seu feitiço.

A princesa esticou a mão para pegar o doce, mas a velha o puxou de volta, encarando-a com olhos penetrantes.

– Tem mesmo certeza de que é isso que você quer? - ela inquiriu

– Não se trata do que eu quero, mas do que eu preciso. - Merida avançou e pegou o doce, embrulhando-o cuidadosamente em um tecido bordado com flores. - Nada de ursos dessa vez, não é?

– Nada de ursos. - a bruxa confirmou, entregando a ela uma réplica amadeirada e perfeita de Angus. Merida assobiou ao pegá-la. Para onde quer que a virasse, os olhos do cavalo pareciam seguí-la. A princesa estava tão encantada com a miniatura que só pegou o final da pergunta da bruxa.

– ...me perguntar? - ela esperou, expectante.

– Desculpe, o que a senhora disse? - Merida se encolheu quando a bruxa revirou os olhos.

– Perguntei se não vai querer saber o que precisa ser feito para reverter o feitiço?

– Não será necessário, obrigada. - ela rebateu, levantando-se e indo a meio caminho da porta. - Tudo correrá perfeitamente bem dessa vez. Se não houverem ursos, tenho certeza de que não a nada nesse doce que fará com que eu queira reverter o feitiço. - disse e saiu, mal deixando a bruxa falar.

– Espere! - Ela chamou, mas como se fosse magia, Merida já tinha ido. Ou talvez não fosse magia coisa nenhuma, pois ela pôde ouvir o som dos cascos do cavalo trovejando pela floresta.

Um apertão no espartilho a fez gemer e a lembrança se desvaneceu, obrigando Merida a retornar à realidade. Ela não reclamou do banho ou das roupas, suportando tudo com dignidade, mas quando sua mãe veio em sua direção com o toucado nas mãos ela teve que protestar:

– Ah, mãe... Isso não! Eu não consigo respirar com ele... - ela implorou, negando com a cabeça. Por favor...

A rainha hesitou. O toucado não era um instrumento de tortura, apenas uma vestimenta especial para uma ocasião mais formal. Por outro lado, da última vez em que Elinor havia forçado a filha a usá-lo o efeito não fora exatamente o pretendido. A rainha dobrou o toucado, estendendo-o sobre a cabeceira da cama com uma pequena pontada de arrependimento, que foi rapidamente sufocada pela expressão de alívio no rosto da filha.

Seus ombros ainda estavam tensos, porém, aguardando pelo ataque impiedoso da escova. Mas Elinor trabalhou suavemente, trançando o cabelo nas têmporas e deixando o resto cair pelas costas de Merida. Ao terminar, Elinor apertou de leve os ombros dela e parou à sua frente, juntando as mãos. Merida estava maravilhosa, ágil e encantadora, com o vestido lilás ressaltando seu tom de pele. Era a sua expressão, ao mesmo tempo triste e determinada que não se encaixava.

– Algumas últimas palavras de conselho? - ela perguntou.

– Só... Seja você mesma, Merida. - Elinor sorriu. Nunca pensara que diria isso a ela.

______

Apesar das palavras de sua mãe, Merida sabia que ela não poderia se dar ao luxo de ser ela mesma, ao menos enquanto o feitiço não estivesse consumado. Em sua mente, seu noivo comeria o doce e imediatamente veria que aquela ideia de casamento era ridículo, desistiria e voltaria para casa. Afinal, ela não havia pedido por um feitiço que mudaria ninguém. Tudo o que ela queria era um feitiço que impediria seu casamento. E a bruxa assegurara que não haveriam ursos. Forçou-se a respirar fundo. Nada daria errado.

Apenas por enquanto, ela teria que atuar mais uma vez. Seria a doce Merida que sua mãe queria, a Merida de sorrisos gentis, palavras suaves e passos curtos, calma e paciente. Não havia espaço para quem ela realmente era agora. Havia muito em jogo agora para ser impulsiva e impetuosa, seu plano precisava ser seguido à risca.

Sentou-se ereta e elegante em seu trono, tanto quanto sua mãe desejava. Seus irmãos e seus pais logo apareceram também e tomaram seus lugares com poucas palavras.

O guarda fez o anúncio e os convidados entraram. Merida fez o possível para não encarar, mas lançou um breve olhar aos recém chegados. Havia o pai - ela esperava que fosse o pai, claro - o homem chamado Estóico. Era forte e atarracado e andava com passos firmes e confiantes. Merida não teve dúvida ao olhar para ele: aquele homem era um guerreiro feroz. Usava uma túnica longa, uma cota de malha comprida e um manto de pele de algum animal que ela não pôde identificar. Tinha os cabelos ruivos, levemente grisalhos e uma barba tão trançada que nem sua mãe poderia adornar melhor. E a seu lado estava seu filho. Seu noivo. Ela forçou-se a manter sua expressão neutra diante daquilo que não era nada do que estava esperando. Ele era quase tão alto quanto seu pai, mas esguio e um pouco mais magro. Usava calças marrons, uma camisa verde simples e uma armadura que protegia os ombros e parte do peito. Em uma das mãos segurava o elmo mais esquisito que ela já vira. Seus cabelos tinham um corte estranho e duas minúsculas tranças se aninhavam perto da nuca. Umas poucas sardas no rosto, um nariz longo e levemente proeminente, lábios finos, olhos verdes, uma barba rala nascendo no queixo, sem dúvida fruto dos dias de viagem. Ele deu um passo a frente e ela ouviu o som de metal contra a pedra, notando com espanto que ele também não tinha uma perna, assim como seu pai. Ela se perguntou como ele a perdera, embora tenha censurado a si mesma logo depois. Não importava. Ele logo estaria fora de sua vida, tão rápido como entrara.

Ele pareceu notar o som também, franzindo de leve as sobrancelhas.

O movimento atrás deles chamou a atenção dela, mas antes que pudesse sequer dirigir um olhar curioso, o líder viking adiantou-se.

– Saudações, Rei Fergus, Rainha Elinor. - Disse e os cumprimentou rapidamente com um aceno de cabeça.

Seu filho foi um pouco mais efusivo, realizando uma vênia polida.

– Sua presença aqui é muito bem vinda, Estóico. - garantiu Elinor. - Mas creio que a viagem deve ter sido extensa e degastante. Queiram aceitar a hospitalidade do castelo para se recuperarem e amanhã nos reuniremos novamente para tratar os termos da Aliança.

Merida viu Soluço deixar escapar um leve sorriso.

– A viagem foi desgastante mais para nossos dragões do que para nós, Alteza. Se não for nenhum inconveniente, uma tarde de descanso seria mais do que suficiente para nos restabelecermos.

A Rainha olhou para o marido, que deu ombros.

– Não é nenhum inconveniente. Os criados mostrarão suas acomodações. Podemos contar com sua presença para o jantar?

– Certamente. - Assegurou Estóico.

– Perfeito. Nos vemos no jantar então.

______

Durante toda a tarde Merida esteve absorta, tentando conseguir uma desculpa para deixar as lições enfadonhas de sua mãe e ir atrás dos vikings espiar seus dragões. Uma olhadinha inocente não faria mal algum, faria?

Em uma pausa de alguns minutos ela conseguiu se esgueirar para fora do gabinete de estudos e seguir seu caminho até a Ala norte do castelo, onde haviam esvaziado os estábulos para receber as montarias dos novos hóspedes. Seus donos com certeza estariam lidando com outros afazeres, um banho, uma refeição quente ou recuperando o sono perdido durante a viagem. Merida seguia pelos corredores de serviço, silenciosa como um gato, dizendo a si mesma que seria apenas uma olhadinha, apenas uma olhadinha e depois ela iria embora. Não fazia mal algum olhar. Na ponta dos pés ela finalmente chegou até a Ala norte do castelo, que estava vazia. Em algum lugar ao longe ela podia ouvir o som de algo sendo martelado na forja, mas não se incomodou. Haviam sido dadas ordens para que a Ala norte fosse esvaziada, logo o ferreiro iria embora e não daria conta dela.

Os estábulos haviam sido limpos e a palha havia sido reposta. Os comedouros, antes recheados com feno, haviam sido abastecidos com peixes. As gamelas com água fresca. Um silêncio estranho dominava o ambiente onde antes o som dos cascos dos cavalos contra o chão, as marteladas das ferraduras e o resfolegar dos animais prevaleciam. Agora tudo o que ela podia ouvir era o som de sua própria respiração e as batidas na ferraria ao longe.

Ela contornou as baias, uma a uma, seguindo pelo corredor central da cavalariça na ponta dos pés. Na última baia uma sugestão de movimento chamou a atenção dela. Merida abaixou-se instintivamente e caminhou lentamente, demorando-se muito mais do que o necessário em cada passo, apenas para ter certeza de não fazer nenhum barulho. Mas não seria necessário. A palha abaixo de seus pés abafaria qualquer som. A princesa respirou fundo e parou, antes de espiar a baia onde ela ouvira a criatura se mexendo. "Uma única olhada", ela pensou, "uma única olhada e eu irei embora e ninguém precisa saber que eu estive aqui". Ela nem queria imaginar qual o castigo que sua mãe lhe daria se ela fosse descoberta andando sozinha nos aposentos reservados para seus hóspedes.

Um fôlego a mais e ela inclinou-se lentamente para espionar a baia, deixando sair uma expiração profunda ao ver que estava vazia. Agora estava desapontada. Ela tinha certeza que ouvira um barulho vindo dali!

Franzindo a testa ela se virou para ir embora, mas parou quando fiapos de palha caíram de algum lugar acima de sua cabeça. Merida ergueu o olhar bem devagar. A enorme criatura negra como a noite estava pendurada nas vigas de sustentação do telhado, olhando para ela com um grande e penetrante par de olhos verdes. Com um movimento incrivelmente ágil o dragão saltou do telhado e parou de frente para ela, encarando-a e farejando o ar a sua frente, curioso.

"É o meu fim. Ninguém vai me ouvir gritar a essa distância, e mesmo que possam, jamais chegarão a tempo de fazer qualquer coisa. Eu só espero que seja rápido..." Merida pensou, a lembrança dos dentes de Mor'Du nítida e fresca em sua mente. Ela fechou os olhos, esperando pelo inevitável.

Mas o dragão não parecia ameaçador, apenas curioso. As grandes pupilas negras a encaravam dilatadas e o enorme focinho a cheirava fazendo cócegas na pele dela com as baforadas quentes. Merida abriu os olhos, incerta e muito devagar estendeu uma das mãos para a criatura. O dragão a cheirou como se esperasse algo para comer e enfiou sua cabeça abaixo dela, esfregando-se e pedindo por carícias, exatamente como um gatinho. Merida não podia acreditar. Acariciou a fera, hesitante no início e depois com mais e mais confiança a medida que o dragão grunhia, extasiado.

A princesa coçava as costas do dragão, sorrindo e conversando com ele exatamente como fazia com Angus, esquecendo-se de sua promessa de ter apenas uma olhada e ir embora. Por fim parou e olhou a criatura nos olhos, fascinada.

– Você é uma coisa linda. - ela elogiou, perdendo-se nos tons de verde floresta dos olhos dele.

Mas o dragão logo quebrou o momento, distribuindo lambidas em um dos lados do rosto da princesa, que tentava sem muito entusiasmo afastá-lo, rindo e perdendo o fôlego no processo. No meio da brincadeira ele acabou derrubando-a na palha, golpeando-a de brincadeira com uma pata.

– Parece que você arranjou uma nova amiga, Banguela. - comentou uma voz atrás dos dois.

Mais do que depressa o dragão a deixou jogada na palha e correu para o recém chegado, o viking mais jovem que ela vira mais cedo na Sala do trono.

Merida prendeu a respiração ao vê-lo ali, segurando uma peça estranha de metal em uma das mãos, com um meio sorriso amigável no rosto. Ele mal parecia perceber que estava sem camisa e transpirando em bicas.

– Ele não costuma ser amigável assim com as pessoas. - comentou ele, despreocupadamente. - Eu sou Soluço.

Merida corou, se era por ter sido pega ou pelos músculos do abdômen do rapaz viking ela não soube dizer. Ele estendeu a mão para ela, mas ela se ergueu de súbito sem ajuda, alisando o vestido para tirar a palha e ter uma desculpa para usar as mãos.

– Merida Dunbroch. - ela respondeu, um pouco de má vontade. - Mas acho que você já sabia disso.

Soluço assentiu, ainda sorrindo. Apontou para o dragão atrás de si.

– Vejo que você e Banguela já se conheceram. Ele gostou de você. - ele pareceu se lembrar de alguma coisa e tirou um lenço de uma das selas penduradas em uma baia, entregando para ela e fazendo gestos indicando o rosto. - É para... Você sabe... Desculpe por isso. Ainda não consegui me livrar desse hábito dele.

Merida olhou para o lenço como se ele fosse uma víbora, tentando se decidir se o viking estava apenas sendo gentil ou tentando jogar seu charme para cima dela. Ela optou pela primeira opção e aceitou o lenço, grata por se livrar da saliva grudenta. Mas se ele tentasse algo ela iria fazer muito mais do que quebrar seu nariz.

– Obrigada. - Ela murmurou.

– Me desculpe pelo barulho na forja... Uma das peças da cauda do Banguela entortou, eu tive que refazê-la. Não queria ter incomodado.

– Você é ferreiro? - ela perguntou, distraída, vendo-o encaixar a aresta na prótese vermelha do dragão.

– Sou.

– Por que?

Soluço deu um sorriso e balançou a cabeça, perplexo.

– Quero dizer, você o filho do líder onde você mora, não é? Por que aprender um ofício quando deveria estar aprendendo os regulamentos da sua vila, geografia, política, essas coisas? - Merida indagou, sem nenhum medo de estar sendo rude.

Soluço deu ombros.

– Mas eu também aprendo todas essas coisas!No início eu fui obrigado a aprender para que me mantivesse ocupado. Mas depois eu comecei a gostar. Acho que há algo empolgante em fazer algo com suas próprias mãos. - ele comentou, distraído, enquanto ajustava as pregas de couro da prótese sobre o metal.

Merida observou-o enquanto fazia os últimos ajustes. Aquilo era uma novidade para ela. Quase todos os pretendentes que vinham cortejá-la no castelo, quando não a encontravam se punham a bajular o Rei Urso ou perseguir as criadas. Em um ou dois casos, houve quem praticasse esgrima com os guardas, mas em sua maioria eram homens preguiçosos e desocupados que não sabiam fazer absolutamente nada. Mas esse rapaz... Merida via os calos em suas mãos, os músculos bem construídos nas costas, nos ombros, no abdômen e nos braços, esculpidos pelo bater incessante do martelo sobre o metal. Aquele não era o corpo de um homem preguiçoso, de maneira nenhuma. Ela sacudiu a cabeça, irritada com aquela crescente curiosidade a respeito dele. Ele era um pretendente. Estava aqui pela sua mão, para tirá-la de sua casa, negar sua liberdade e conseguir poder. Não era diferente de nenhum dos outros anteriores. Era seu inimigo.

– Tenho que ir. - ela comentou, com frieza. - Obrigada pelo lenço, Soluço.

Ele lhe respondeu com um aceno de cabeça e acompanhou-a com os olhos enquanto ela caminhava para fora dos estábulos, pensativo.


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Notas finais do capítulo

Olá pessoal, olha eu aqui outra vez! Estava mega inspirada essa semana e resolvi fazer o quê? Capítulo duplo! Escrevi esse e mais um, agora só na sexta que vem, ok?