Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 8
Capítulo 8




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No final do dia, quando sento na cama e ouço o barulho do chuveiro ligar, no amplo banheiro, sinto meu corpo fluir. Como água que brota da fonte, que segue o leito e que morre no mar. Como se o mundo nunca fosse acabar. Eu escondo os calos dos meus pés, eu escondo meus olhos de quimera, eu cubro toda minha feição, mas as únicas coisas que não se escondem são meus medos. Medos que eu coleciono, desde bem menina, desde nascida, que eu enfileiro nas prateleiras das minhas memórias, num paraíso negro. Meus medos são reais.

Thomas toma seu banho demoradamente e, nesse meio tempo, posso ouvir violinos e carruagens se estenderem. Minha vida em uma sinfonia disforme, descontrolada e indecisa. As sirenes. Ambulâncias que rasgam o tráfego tentando me salvar do meu suicídio pessoal. Dos meus cortes que nunca estancam. Do meu sacrifício.

Quem disse que se você se tornar frio você não vai se machucar?

Ouço o chuveiro desligar. Fecho meus olhos em súplica, peço paz.

Ele acende a luz.

De olhos fechados tudo que posso fazer é supor. Ouço passos. De um lado. Até a mala. Um zíper. Algum movimento, ele se senta na cama, demora alguns instantes e se levanta. Ouço a respiração perto do meu rosto. Ele me observa, tenho certeza. Não pode ver meus olhos de quimera. Solto um suspiro alto, como se estivesse dormindo a bastante tempo. Ele se aquieta. Não consigo saber em que espaço do quarto ele está, mas ouço o barulho do isqueiro. Uma vez, duas vezes. O cheiro do tabaco vem pelo quarto e a luz desliga. Abro meus olhos e vejo a silhueta na sacada. Um homem solitário, o cigarro aceso nos dedos. Não sei sobre o que pensa, não sei o porquê fuma. Não fumava antes, não devia agora. Talvez esteja intoxicado de mim. Talvez precise das toxinas fortes para expulsar as minhas do próprio corpo, ou talvez só queira sentir os pulmões esvaziarem enquanto olha para a lua ali. Em qualquer das hipóteses, o motivo sou eu. Eu acendi o cigarro e traguei no escuro do quarto enquanto ele dormia. Agora ele retribui.

Ouço um sussurrar. As palavras saem claras, eu posso sentir o vento tocando meus ouvidos, mas ele não está próximo. “Eu-te-amo”. As palavras saem pausadas e então ele se deita, tomando o cuidado para não encostar em mim. Agradeço a distância que ele mantem, agradeço o silêncio, mas não acredito no amor.

Quando eu era menina eu fiquei entristecida eu soube exatamente o que sentia. Era uma coisa meio inexplicável que me fazia infeliz, que me deixava sentida. E quando fiquei feliz, eu soube exatamente o que senti. Era uma coisa meio inexplicável que me fazia tão bem que eu não me importava com os advéns da vida. E todo mundo que está triste se sente assim; e todo mundo que está feliz, também. Mas o amor? Cada poeta tem sua forma de descrever. Para uns, dor. Outros, vida. Outros, morte. Cada um com seu porém, com seu desdém, com seu além. Cada um com a sua definição. Por que cada um ama de uma forma? Por que eles não convergem para algum lugar?

Quando acordei eu estava enfurecida.

– Bom dia, Estela – ele diz. Eu ignoro porque sinto meu corpo arder em ódio. Caiu a ficha. É para sempre. Caminho até o banheiro, tranco a porta, me sento no chão e ameaço chorar. De ódio, ódio de mim. Infeliz fui eu em acreditar que eu podia ser como minha mãe, que eu podia planejar uma vida inteira e viver acorrentada a linhas em papéis. Infeliz fui.

– Estela? – ele bate à porta quando percebe que estou demorando. Eu ainda não chorei. Engoli cada lágrima salgada e digeri.

– Só um momento.

– Está tudo bem?

– Sim, só um momento.

Apoio minha cabeça em meus joelhos, sinto minha garganta queimar. Levanto rápida, me ponho sobre meus pés, enxáguo meu rosto. Pareço perdida. O que foi que eu fiz? Da vida, dos dias, do meu futuro?

Destranco a porta, vejo a estátua de olhos verdes me aguardando.

– Pronto, vamos tomar o café.

– Tá tudo bem?

– Claro. – Atravesso o quarto enquanto ele me segue a passos rápidos.

O carro passa rápido pelos outros. Parece que nossos espíritos conversam em ódio. Eu estremeço meu corpo no banco do carro, ele estremece o pé no acelerador. Conversamos, mas não falamos.

A cafeteria é agradável. Pequena, mas agradável. “Sorria para a foto”. Flash. Somos capturados como pássaros, de repente, sem aviso. “É um presente para vocês”, a mulher diz, entregando um papel em branco na minha mão. Ela olha para meus olhos e só então parece perceber.

– Meu Deus! Que lindos olhos você tem... Por que eles são assim?

– Nasci assim – digo, sorrio. Reafirmo a única coisa que posso afirmar.

– Linda, não? – Thomas indaga.

– Lindíssima! – ela diz, se afastando. Logo volta, um papel em mãos. – Então, o que vocês vão tomar? Expresso, descafeinado?

– Um expresso, por favor – digo.

– Dois.

– Somente? Temos bolos e pães.

– Um bolo de limão.

– O senhor?

– Só o café para mim, obrigado.

Quando olho para o papel quadrado sobre a mesa, percebo nossa imagem surgindo. Vagarosamente, quase como se estivesse com preguiça de acordar. Meus olhos de quimera acesos, os vidros esverdeados também. Nossas figuras esbranquiçadas pelo excesso de luz. Ele pega a foto sobre a mesa.

– Ficou linda – ele diz para si mesmo, em voz baixa. – Você vai querer a foto?

– Pode guardar, Thomas.

Ele põe na carteira. Tem um cuidado excessivo, como sempre. Nossos cafés chegam.

– O da senhora... – ela diz, colocando o copo grande sobre a mesa. Parece algum sorvete, porém quente. – O do senhor. O bolo de limão – ela levanta da bandeja e procura quem o pediu. Faço um suave movimento de rosto e ela entende, colocando-o ao lado do meu café.

– Obrigada – digo.

Ela sai. O ambiente se torna opaco quase instantaneamente. O céu escurece, as nuvens cobrem o Sol. Relâmpagos rasgam o céu em violência. Eu fixo meu olhar no ambiente externo enquanto os vidros da cafeteria nos protegem da chuva e do vento. As pessoas apressam o passo, correm. De um lado ao outro, escondendo-se das gotas que vão cair. Elas caem. O cheiro do café se intensifica, volto meu olhar para dentro do ambiente. Thomas me observa com olhos atentos. Abaixo meu olhar devagar, sem perdê-lo de vista. Tomo meu café devagar. Posso senti-lo me observar. Meu coração palpita, a chuva grita.


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