Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 6
Capítulo 6




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A luz da lua ilumina a sacada da suíte cara de hotel. Os espelhos esverdeados me olham imóveis e eu também olho-os. Uma brisa fria e forte passa por entre meus cabelos. Sinto-os perderem a calma. Ele ainda me encara. Está encostado na porta de vidro, os cabelos como um ninho, e eu vejo meu reflexo turvo atrás dele, no reflexo na porta. Meu olhar de quimera. E, no escuro, eu não consigo distinguir os traços de Thomas nem os meus. Tudo o que vejo são meus olhos e os olhos dele.

Ao lado dele um filtro de cigarro usado está pousado ao chão. O maço de cigarros jogado um pouco mais a diante. Nós dois estamos sentados imóveis no piso gelado, pensando em silêncio. Quero dizer, eu penso. Como a vida é engraçada.

Com o tempo, o longo tempo, o céu começa a clarear. Bem devagar, quase que em câmera lenta, o céu vai se tornando um degradê entre o tom azul escuro, azul claro e rosa. Li, um dia, que o tom rosa no céu é um mal sinal; não me importo.

Ele se levanta.

– Por que eu não devia me sentir bem perto de você? – A pergunta rasga o silêncio.

– Porque eu estou passando mal nesse momento. – minto.

– Ah... – quase ouço as engrenagens girando na cabeça dele. A cada mentira contada, parece que ele se satisfaz ainda mais. A verdade é que o mundo, para ser feliz, precisa de ser feito de mentiras. “Você me ama?” “Sim” “Você está feliz?” “Sim” e assim a gente se convence de que nada pode ser tão ruim.

Ele entra no quarto, saindo da sacada, e percebo que ele está só de cuecas. Ainda consigo me esquecer que estou casada. A aliança em meu dedo ainda está sendo digerida pelas sinapses nervosas no meu cérebro e eu ainda tento processar as palavras que devo dizer. “Esposa”.

Mas, surpreendentemente, o caos começa a assentar. Minha cabeça não gira mais, não tenho medo. A coragem me instiga e eu preparo mentiras como quem prepara café-da-manhã. Posso servi-los todos os dias, com um punhado delas, e nunca ficar sem receitas. Eu me levanto do piso gelado. O céu começa a clarear ainda mais. Entro no quarto.

– O que vamos fazer hoje?

– Eu não tenho a mínima ideia, me surpreenda.

Consigo sentir a felicidade correr no rosto dele. Ele gosta da ideia de satisfazer alguém pelo impulso, pelo surpreendente.

– Que tal falarmos sobre nosso novo lar?

Ele caminha até mim, me puxa pela cintura, me dá um beijo. O hálito matinal me incomoda e eu não quero o contato físico, mas retribuo.

– O que tem ele?

– Onde você quer morar? No seu país?

– Sou antipatriota – respondo, sem sorrir. Ele leva na brincadeira, gargalha baixo, vira de costas e caminha até o banheiro. Entra ali, mas não fecha a porta. Pega a lâmina de barbear, prepara o rosto e começa uma jornada pessoal.

– Digo sério, Estela – ele fala, do banheiro. Posso ver o humor fundamentado naquela feição como se eu o divertisse. Às minhas custas, não. Quero socá-lo. Idiota.

– É sério, Thomas.

Ele tira os olhos do reflexo no espelho e olha para mim, o rosto cheio de espuma.

– Sério, sério?

– Muito sério.

– Muito sério, quanto? – ele sorri, novamente. Deito na cama, olho para o lustre, apagado, viro de lado e encolho o corpo. Mas que idiota. Meu senso de humor é negativo na maioria das manhãs. Detesto o sol quente ou o calor excessivo. Claro, ele não sabe.

Ele tira os olhos do reflexo no espelho novamente. Percebe que não respondi e vejo que pensa se devia ter feito a brincadeira.

– Estela?

– Oi.

– Pode ser Londres, então?

A sobriedade do tom melhora meu estado emocional. Parece que, na maioria das vezes, ou o tom dele é de quem se diverte, ou o tom é de quem protege. Não soa natural, mas ignoro na maioria das vezes esses detalhes.

– Londres? Por que Londres?

– Bem, você sabe. Minha família é toda de londrina. Posso comprar um bom apartamento, você escolhe, pode até mobiliar, se quiser...

Ele diz como se isso fossem vantagens que ele me dá, como quando uma empresa de telefonia te liga oferecendo o que você já tem. Por favor, nós dois sabemos que eu escolheria tudo mesmo que ele não quisesse. Ele não tem uma personalidade característica. Contorná-lo é fácil.

– Pode ser, tanto faz.

– Tanto faz? Bem, é onde vamos morar, querida.

– E pra mim tanto faz – respondo, finalmente. Vejo que ele terminou de fazer a barba e sai do banheiro vindo até mim com um grande sorriso no rosto, as mãos preparadas para pegarem na minha cintura. Recuo alguns centímetros na cama enquanto vejo-o se aproximar, quase como se eu pudesse evitar o contato. Não consigo. Ele me alcança, toca minha cintura, senta do meu lado e leva a mão até meus cabelos. Me olha nos olhos e eu me vejo refletida em seus espelhos esverdeados. Ele parece apaixonado, mas eu não acredito no amor e suas variações.

– Qual seu livro preferido?

– Meu livro preferido? – ele questiona, como se minha pergunta fosse complexa.

– É.

– O Senhor dos Anéis. Eu acho. Por quê?

– Nada.

– E o seu?

– Não consigo escolher.

– Nenhum?

– Â-ahm.

– Por quê?

– Não sei, é complicado. Existem tantos livros que não sei se consigo escolher um único. Mas talvez seja Alice. Ou não. Talvez seja Peter Pan e sua indomável vontade de se manter intacto. Acho que, em qualquer dos casos, eu prefiro livros infantis.

Leio bastante, mas os livros infantis me encantam mais. Tem uma delicadeza no modo de conversar com o leitor, no modo de convencer, de costurar os assuntos. É mais promissório, gradual, um tanto real, mesmo sendo imaginário. É melhor ler uma leitura imaginária que nos deixa milhares de perguntas que uma leitura real que só responde, como se a verdade fosse absoluta. Inventamos verdades absolutas, mas até mesmo o mundo é redondo, que dirá as certezas. Não confio em quem sabe demais.

– Livros infantis, é? – ele sorri. Ele deita, põe a cabeça sobre mim, aperta meu corpo contra o dele e eu sinto novamente aquilo que ele transmite: parece que posso salvá-lo. Mas não posso, nem mesmo sei de quê. Sinto pena.

– É – afirmo baixo, em um sussurro melancólico que atravessa meus ouvidos talvez mais que os dele. Estamos nos tornando um, como prometido. Um casal, casado, unido e inteiro. Meus pais são assim, ou fingem que são, mesmo nunca tendo amado um ao outro. O amor é um conto que algum poeta escreveu. Se fosse eu que o tivesse feito, eu o fazia pular do sétimo andar em nome de todos aqueles que sofreram por acreditar nele. O amor dói porque é uma mentira surrealista. A gente diz, mas não sente, e enlouquece.


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