Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 23
Capítulo 23




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– Estela, por favor, abandone o emprego.

– Não.

– Estela?

– Sim?

– Por favor.

– Não.

Ele abaixou a cabeça e deu um suspiro. Estacionávamos na calçada de uma casa grande e clássica. Estávamos cobertos de roupas e caia uma fina camada de neve do céu vagarosamente. Contive abrir a porta com receio de que o vento gelado me atingisse. Abri-a da mesma maneira.

– Vamos.

A porta da casa estava destrancada. Dentro havia pilastras de madeira, papéis de paredes antigos e feios, mas o piso era de um lustroso linóleo xadrez. O espaço vazio era aconchegante e havia uma lareira de tijolos vermelhos. A escada era larga com degraus baixos e grandes. O segundo andar era um enorme corredor com um banheiro no final, grandes portas de madeira negras e uma sacada repleta de colunas nas extremidades. O jardim que a sacada dava vista era belo e bem tratado. Mesmo sobre a fina camada de neve, as roseiras estavam vivas e as rosas, vermelhas. Havia um gazebo metade elevado sobre a piscina, coberto de neve. Uma namoradeira elevada pendia nele.

– Como vocês podem ver, é uma casa clássica da era vitoriana. Nem mesma as casas elisabetanas foram construídas com tamanho esmero. A madeira foi trazida das colônias do reino, madeiras ocres africanas. As portas são de carvalho e a casa nunca sofreu ataque de cupins. A fundação e as paredes foram feitas de tijolos vermelhos, mas várias camadas deles foram postas para segurar o frio. Apesar de clássica, a fiação de toda a casa foi refeita. Os lustres foram adaptados para as lâmpadas, mas um dia foram feitos para velas. A cozinha foi a única área da casa que foi alterada. Colocamos bancadas de aço e uma pia na bancada centralizada.

– Adorei a casa. Tem um ar aconchegante e é quente no inverno.

– O terceiro andar é um amplo sótão. É alto por causa de o telhado triangular e tem uma janela central bonita. O porão também foi revestido de tijolos vermelhos e têm essas pequenas janelas.

– A casa é realmente encantadora. Mas, Thomas, não acha que ela é grande demais?

– Vejo que está grávida, senhora. Seu filho irá gostar de espaço. A casa tem cinco quartos, todos com banheiro. Não pretenderá ter mais filhos?

– Ela está grávida de gêmeos.

– Sim, Thomas, mas não vamos separar as meninas. Elas dividirão quarto na infância.

– E depois poderão ter seus próprios quartos. A casa é perfeita. Tem piscina, espaço para brincarem, um jardim enorme. Podemos montar uma área externa para almoços em família.

– Eu estou muito encantada com a casa – falei por fim. – Achei-a linda, espaçosa, aconchegante e confortável. Gostei bastante do piso, embora eu acredite que algumas coisas deverão ser mudadas, como esse papel de parede. Só estou pensando se não estamos dando um passo grande demais com uma casa desse tamanho.

– Entendo. Você está preocupada com os gastos. Não seja boba, querida. Posso manter essa casa e mais quarenta filhos. Por favor, não se preocupe.
A mulher observava-nos ansiosa. Tinha certeza de que eu diria sim. Talvez estivesse pensando sobre como eu tinha sorte em ter um marido que pudesse “manter essa casa e mais quarenta filhos”. Observar de fora é fácil. Se estivesse na minha pele não consideraria isso sorte.

– Ficamos com a casa – falei. – Acho bom que posso transformar aquela sala atrás da escada como meu escritório. Primeiro, vou trocar todo o papel de parede da casa. Começamos a reforma amanhã.

– Fechamos negócio hoje? – perguntou a mulher.

– Pagarei agora. Vamos?

Entramos no carro e seguimos até o escritório onde Thomas pagou a casa. Eu tinha medo de que comprar uma casa, ainda mais à vista, fosse atestar falência. Mas Thomas me falou que ele e o irmão recuperaram dez por cento da empresa, que estavam conseguindo espaço e que o dinheiro já estava em boas condições.

Pedi licença de uma semana no emprego enquanto eu gastava meu dia trocando papéis de parede manualmente. Subi e desci de escada até que estivesse com as pernas cansadas, guiei os entregadores explicando onde deveriam por os berços, guiei os pintores sobre a cor das paredes dos quartos, sobre a instalação das cortinas aveludadas.

Thomas chegou ao fim do dia na casa e ela tinha um ar muito mais familiar. Vi o vislumbre nos espelhos verdes e percebi que não havia nada nesse mundo que eu pudesse fazer que o fizesse me odiar.

– Está maravilhoso. Como você conseguiu? – perguntou.

– Ah, pedi uns dias na empresa e vim arrumar tudo. O quarto das meninas está pronto, já está com os berços, faltam os outros móveis.

– Como você pagou por isso? – ele me abraçou e me beijou.

– Eu trabalho?

Ele gargalhou.

Depois de chegarmos em casa, enquanto eu ajeitava o quarto esticando edredons e fechando as cortinas, Thomas empacotava vinis. Eu pensava que era cedo demais para começar a empacotar coisas, mudaríamos em um mês ou mais, mas parecia ser importante para ele. Deitei, segurando minha barriga, que já me parecia pesada, e senti um desconforto no estômago. Pensei em ir até a privada, mas continuei deitada, de barriga para cima.

Acordei com sons estranhos.

– As crianças não são suas – eu ouvi do outro lado da porta. Droga, pensei, o que é isso?

– Cala a boca.

– A sua esposa pode até te amar, mas também me ama.

– Cala a boca.

Abri a porta do quarto vagarosamente para observar pela fresta. Frank estava bêbado, com os olhos levemente arroxeados de noites sem dormir, mas tinha a postura verticalmente intacta. O tom de voz estava lamurioso, os olhos estavam nublados, como se adquirisse catarata, e a barba estava mal feita. A gravata pendia desajeitada do pescoço.

– Aceita que ela nunca será sua. Ela não é de ninguém.

– Frank, pela última vez, cala a boca, estou avisando.

Permaneci parada atrás da porta, com os olhos fixos nos irmãos. Frank tinha o tom alto demais, mas Thomas mantinha o tom cortante e frio. Eu me perguntava onde estivera Frank durante os dois dias que sumiu depois do jantar em família. Thomas comentou que ele não aparecera na empresa durante esses dois dias.

– Se as crianças forem minhas, não vou deixar que você as crie.

– Desgraçado – o punho fechado atingiu os lábios vermelhos de Frank. O sangue escorreu fino do lábio. – Desgraçado, – novamente. – desgraçado.

Frank caiu de costas no chão, o sangue fino escorreu pelo lábio aberto. Thomas passou os nódulos dos dedos na camisa, olhou para o irmão caído e negou com a cabeça alguma coisa para si mesmo.

– Levanta e some, Frank. Desaparece.

Frank empurrou o peso contra o chão e começou a se erguer devagar. Pôs-se de pé, passou a manga no lábio, manchando de sangue a barra da camisa.

– Estela? – falou alto. Fechei o pouco da porta que eu havia aberto. – Estela? Estela, cadê você? – ele começou a andar pelo apartamento. Thomas apertou o braço do irmão e o empurrou para trás.

– Não me obrigue a socar você de novo. Sai daqui. Estela está de repouso.

– Vá se foder – um barulho fez do lado de fora. Voltei a abrir uma fresta na porta e na sala Frank e Thomas se socavam.

– Desgraçado.

– Infeliz.

Uma ofensa para cada soco e chute e empurrão que os dois se davam. Eu estava imóvel ali, como se a quimera tivesse sido apenas mitologia. Talvez eu nunca tivesse sido quimera. Só uma anormal mulher. Mas aí senti um pulsar nos ouvidos e empurrei a porta com tanta força que não soube dizer. Avancei como leoa que protege a cria e finquei as unhas no dorso de ambos os homens e senti o sangue quente nos meus dedos.

– Parem já! – gritei enquanto apertava a unha com mais força. – Vocês estão acabando com a minha saúde, merdinhas. Idiotas, fracos e frouxos. Vocês dois, os dois, são frouxos.

Frank puxou as costas das minhas unhas e apertou o lábio contra o meu. Senti o gosto metálico do sangue nos meus lábios quando Thomas o puxou com raiva e ressentimento e o atirou ao chão.

– Dei muito espaço para esse retardado. Desgraçado. Destruiu minha família – Thomas falava enquanto apertava o punho e os dedos. Frank tamborilou no chão, arfou, parecia sem ar, e um riso histérico ecoou no ambiente.

– Eu não destruí nada, irmãozinho. Você nunca teve uma esposa fiel. Por que achou que essa seria?

Puxei o pé e acertei as costelas dele com o dedão. Ele encolheu. Puxei meu pulso e estapeei o rosto de Thomas. O barulho foi alto e automaticamente o vermelho surgiu com meus dedos estampados no rosto.

– Vocês destruíram minha vida – falei entre lágrimas. – Vocês destruíram tudo. Estou cansada. Cansada dessa casa, dessa família e de vocês dois. Odeio vocês dois. Morram.

– Você que destruiu tudo – falou Frank enquanto eu atravessava a porta em direção ao elevador. Entrei no meu carro, acelerei e cheguei ao hotel com os olhos inchados e tremendo. Eu nunca fui fraca assim. Eu parecia tão... frágil. Minha vida, as certezas, os irmãos, as filhas. Meu Deus, minhas filhas. O que seria delas em meio isso?

Liguei para Pedro e pedi socorro. Por favor, eu dizia, por favor, Pedro, vem aqui. Eu preciso de você. Preciso. Nunca me senti tão exposta. Tão fraca, tão atingida. Nunca me senti tão ferida. Por favor. Ele tentou me acalmar com a voz rouca do outro lado do telefone, eu não fazia ideia da hora que seria no outro lado do globo.

– Irmã, – ele falou. – eu sempre soube que você era uma aura difícil. Mas fraca, querida, nunca foi. Você impediu que eu me matasse, lembra? Apertou meu pulso, entregou o bisturi e mandou que eu fizesse. Nunca vi você chorar. Você formou, cresceu. Você precisa continuar assim, suas filhas precisam disso. Prometo que vou aí, tudo bem? Vou fazer o possível para ir.

Adormeci nos lençóis frios do hotel e acordei com o nariz entupido e os olhos inchados. Penteei os cabelos com os dedos. Paguei em dinheiro o hotel, entrei no carro e fui para a casa que deveria ser da nossa família. Entrei no lugar semipreenchido, caminhei no oco do salão vazio, subi as escadas e entrei no quarto das meninas. Tinha cheiro de tinta fresca, duas paredes pintadas de rosa bebê e duas paredes com papel de parede rosa com uma estampa repetida de corações minúsculos prateados. Os berços brancos, de lados opostos, estavam dispostos simetricamente. O tapete no centro do quarto, redondo, felpudo e branco, fazia uma ponte entre ambos os berços e foi ali que sentei. Agarrei meus joelhos e pensei no futuro que parecia distante demais. Inalcançável.

– Desgraçados – balbuciei. – Vou abandonar vocês. Eu odeio vocês.


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Notas finais do capítulo

Deixem o feedback. Estou postando com mais frequência pois os capítulos já estão escritos e a fic já está finalizada. Abraços.