Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 15
Capítulo 15




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Thomas tem os olhos fixos na rua. As luzes dos carros opostos iluminam nossas faces e depois nos deixam no escuro novamente. Quase consigo me ver no reflexo do vidro. Existe um traço no lugar dos lábios de Thomas. Ele tem expressão contida, inexata, quase cruel. Os olhos brilhantes na penumbra do carro silenciado. Eu mantenho minha postura intacta enquanto minha coluna fica completamente ereta de encontro ao assento. Não pisco.

– Estou surpreso – Frank diz. A voz parece cortar o silêncio sem pena. Ninguém responde. – Estou surpreso com sua nova cor de cabelos, Estela.

Thomas olha pelo retrovisor do carro com os olhos intensos até encontrar os olhos de Frank. Ele tem a expressão dura e fria.

– Thomas... Ah, Deus.

– Você nunca foi disso, Frank – Thomas não tirava os olhos da estrada. Tinha a expressão fixa e congelada no rosto, a boca em linha firme, os olhos com grandes pupilas ônix e um verde penetrante. Parecia diferente do Thomas comum.

– Disso o que? – perguntou Frank com uma voz irritada.

– Estela me ligou em desespero pensando que você estava morrendo! – a voz de Thomas continuava em um tom frio e duro e não oscilava, mas permanecia reto e direto.

– Sinto muito se assustei a ela.

– Você está sendo um idiota desde que voltei para Londres. Não tem feito nada direito, não cuidou da empresa, Deus, o que é que você tem feito, afinal? A quem pretende prejudicar?

– Não pretendo prejudicar a ninguém, eu... eu só...

– Você está infantil e irremediável. Você nunca foi assim. Tudo bem, você gostava de festas, mas era responsável como o pai. E então, do dia para a noite, você começa a agir como uma criança? Quantos anos você tem, afinal?

A conversa começava a ficar pesada para mim. Eu sei, sou a esposa, mas como eu deveria reagir a isso? Eu olho para fora através da janela de vidro escuro como se alguma estrela pudesse me engolir. Eu queria não estar ali por cinco minutos. O quanto eles desenterrariam ali até estarem tão expostos quanto os machucados de Frank? O quanto um jogaria ao outro até perceberem que a dor de um afeta o outro? Eu não sabia dizer. Eu observei pelo retrovisor os olhos de Frank. Eles estão com a profundidade costumeira. Fito meus olhos no corte suave na bochecha, no roxo do olho esquerdo, na fissura no lábio superior. Os curtos cabelos estão levemente espetados e bagunçados. Cresce um fio de barba escura pelo maxilar dele. Ele parece ter envelhecido cinco anos.

– Eu só estava mal... Eu estou mal. Eu sinto muito.

O carro fez um silêncio aterrorizante. Eu quis gritar para que alguém dissesse algo que pudesse cortar o frio que fazia dentro daquele conversível prateado. Quanto tempo demoraria até que o conversível se tornasse um carro popular? Ou quanto tempo demoraria para sairmos do apartamento e procurarmos estabilidade em algum lugar menor? Eu sequer tinha começado a conhecer os amigos de Thomas. Sequer tinha alcançado o título no qual me casei para ter. Mas eu não tinha medo. Alguma coisa acalentava a ideia de perder tudo. Eu não sabia o quê.

Quando descemos do carro, Frank observava Thomas inquieto.

– Thomas, me deixe em casa, por favor.

– Não – a voz foi um tiro. Atingiu-me também.

– Não? – indagou. Thomas não respondeu. Frank deu um passo para a frente de Thomas e parou nossos passos até o elevador. Olhou-o nos olhos. Os verdes pareciam refletir um no outro, como dois espelhos de prata alinhados. Eu parecia uma expectadora onipresente naquela história, como se eu pudesse simplesmente me apagar e assistir em silêncio.

– Não, Frank. Não. Você não pode bancar seu apartamento, irá vendê-lo amanhã.

– Isso é problema meu.

– Não, querido – disse, em tom firme. – Isso é problema nosso. Agora, cale a boca.

Caminhamos até o elevador e Frank não disse mais nada. Parecia uma criança silenciada por uma promessa de surra da mãe. Parecia ter medo de falar com Thomas. Mas, então, quando pisamos no apartamento, o silêncio pareceu morrer.

– Quando você estava sofrendo, eu estive lá – Frank disse.

– Esteve. Onde estou agora?

– Você está com você. Você perdeu. Perdeu a estabilidade que prometeu para a esposa, não é? É esse o problema? Você nunca se importou com o dinheiro! Por que você tem feito isso agora?

– Meu problema não é com dinheiro, Frank! Eu me garanto enquanto a isso. Meu problema é que meu irmão abandonou tudo por alguma razão desconhecida. Vamos, diga. Quando estive com problemas, você soube exatamente o que era. Qual seu problema?

– Meu problema é...

Eu estava na cozinha. Não queria estar presente na discussão. Não sabia como estar presente em uma discussão. Eu só fingia que estava tudo bem quando as pessoas discutiam. As pessoas tem o péssimo hábito de apontar as palavras como facas quando estão com raiva. O problema é que, diferentemente das facas, as palavras não cicatrizam. Só doem.

Agarrei um maço de cigarros que estava esquecido no armário. Esse não tinha o mentol. Não era meu. Eu não sabia com que frequência Thomas fumava desde que eu o imergi em toxinas. Eu não fumava pela ânsia de fumar, por fumar, apenas. Era apenas a única forma que eu me lembrava de esvaziar a mim mesma. Não havia outra maneira melhor. Caminhei, enquanto as vozes graves ecoavam na bancada da cozinha, até sair do ambiente em que eles falavam. Eu fixava meus olhos nas paredes brancas e as seguia como se pudesse esvaziar minha mente assim. Eu não processava nenhuma palavra que eles diziam.

Quando alcancei a sacada da nossa casa, percebi o quão frio estava Londres. O outono passava depressa e as folhas estavam quase todas ao chão. Eu acendi o cigarro e deixei que o vento me atingisse como um sopro. Eu estava em um jeans. O cigarro acabou, caminhei para dentro, abri o armário e cacei alguma roupa para mim. Minhas malas ainda estavam cheias no armário de casacos da sala, mas o meu começava a ficar cheio de novos vestidos que Thomas me trazia. Algumas vezes, eu mesma ia até a loja e escolhia vestidos de estações passadas, mesmo que pudesse pagar um dessa estação. Quase não haviam calças ou blusas no guarda-roupas, mas vestidos não faltavam. Eles iam em dezenas de cores até quase ocuparem todo o espaço.

Arranquei de súbito um vestido branco de lá. Era de seda fina, fina demais, o vento poderia atravessá-lo sem esforço. Pus-me a vesti-lo. Depois, vestida, fechei as portas da sacada e entrei nos lençóis da cama com a voz dos homens a ecoar no cômodo lá fora. Pareciam cada vez mais distantes, até sumirem de vez.

Sonhei com uma praia calma. O Sol refletia no mar e a maresia me atingia refrescante e leve. Minha pele parecia porcelana. As ondas não me atingiam, nunca. Vinham suaves em marolas até morrerem alguns centímetros diante mim. A espuma e o barulho da água na água me faziam querer fechar os olhos. Uma voz me chamou.

Quando me virei, não consegui definir a feição. Os cabelos pareciam mesclados, meio castanhos, meio negros. Os olhos, um mais profundo que o outro, num estranho tom de verde. Espelhos. Aqueles espelhos eu conhecia. A feição tinha um tom de pele mesclado como os cabelos, meio rosa, meio branco. A voz parecia incerta, tons conjuntos e ecoantes. Ele estava nu.

– Você não vai conseguir – dizia a voz.

– Não vou conseguir o quê?

– Sair inteira.

A voz se tornou ríspida e logo evaporou como a água. Os olhos caíram na areia como dois botões de roupa. O vento dissolveu a feição em maresia.

– Sair inteira do quê? – gritei, girando. Eu continuava procurando quem quer que fosse. – Sair inteira de onde? Por favor – berrei, em desespero. Mas as ondas do mar não me permitiam exasperar. Eu só podia sentir a maresia em mim, uma paz estrangeira. Não era minha aquela paz. Mas eu somava a mim.

Acordei e ainda era noite. Eu não sabia quanto tempo tinha dormido e se ainda era o mesmo dia. Thomas estava em sono profundo. Respirava pesado, com o peito inflando devagar. Levantei da cama e fui até a sala. Tudo estava escuro, eu não conseguia enxergar. Tateei a parede em busca de um interruptor para acender a luz e, quando achei, meu coração quase saiu pela boca.

– Que susto – falei baixo, sentindo meu coração palpitar nas orelhas.

– Desculpe.

– Que dia é hoje? – caminhei até o balcão. Ali atrás, agachei e abri a pequena geladeira que ficava logo abaixo. Peguei um suco de laranja.

– Dia 12, sexta-feira.

– Ah, bem. Pensei que tivesse dormido por um dia inteiro, mas só dormi uma hora. Não vai dormir?

– Estive desmaiado por bastante tempo depois que você ligou para Thomas e eu não sinto vontade de dormir agora.

– Tudo bem – digo, amistosa. Levo a garrafa de suco a boca sem rodeios. Não me importo com os modos àquela hora da noite.

– Eu tinha medo que você fosse machucar o meu irmão.

– Desculpe? – eu disse, puxando o suco da boca e quase engasgando com o sabor.

– Antes de você, ele estivera noivando três vezes. Os noivados eram sempre rápidos demais, descuidados demais... Era claro que elas queriam o dinheiro dele, entende? Mas Thomas sempre foi tão amoroso, mesmo quando criança. Ele me deixava correr para a cama dele quando chovia e trovejava e me deixava abraçá-lo. Uma vez me protegeu de dois garotos que queriam me surrar. Sempre estava lá, era um herói para mim. Depois, aos dezessete, encontrou uma namorada e noivou dois meses após. Ela não gostava dele, vi ela o traindo e ele não acreditou em mim. Quando ele descobriu, ficou desolado. Entrou para os negócios de nosso pai e nos enriqueceu ainda mais.

– Depois disso, achou outra?

– Sim, achou. Quando ele tinha vinte e cinco. Eu já havia superado o fato de que ele poderia se cegar por alguém em nome do amor, mas então aconteceu de novo. Ela estava em uma festa que eu estava. Ela o traiu. Ele havia viajado em negócios e voltava no dia seguinte, mas, quando o avisei, ele fingiu que não, de novo. Da segunda vez, foi pior. Ele sequer trabalhava, ficou meses em casa, sem sair. Pensei que ele ia morrer. A terceira vez foi assustadora. A mulher era linda. Faz dois anos. Parecia totalmente verdadeira e, pela primeira vez, o noivado havia sido no tempo comum. Eles ficaram juntos, depois noivaram. Ela não o traiu, não da forma convencional. Aconteceu um erro na empresa e achamos que estávamos em falência, mas ela pensou que ele ficaria pobre e fugiu no dia do casamento. Pensei que ele ia definhar. Emagreceu horríveis dezesseis quilos.

– Então, você simplesmente viu seu irmão noivando novamente em um mês de namoro e pensou que ele estava enlouquecendo. Você queria que ele visse os problemas na empresa antes de se casar e levar isso a fundo, mas ele não viu e não voltou. Quando se deu conta, já era tarde demais. A empresa estava perdida.

– Mas esse não foi o golpe pior. Você é linda, inteligente e tem um poder sobre ele que eu jamais vi anteriormente. Eu tinha medo que você simplesmente acabasse com ele. Então tentei reverter o que fiz na empresa, mas já era tarde demais. Não havia como. Enchi a cara, levei surra, parei aqui, no chão da sua casa, e você estava divinamente bem, mesmo sabendo que a empresa estava reduzida a pó. Eu não sabia como reagir. Isso foi o pior.

Eu fechei os olhos. Seria isso o amor? Quanto de mim eu estaria disposta a ceder por alguém? Eu cedi várias vezes. Quando minha mãe adoeceu. Quando Pedro, meu irmão, nasceu. Eu queria amá-los tanto quanto meu coração de menina permitia. Eu balançava meus cabelos prateados enquanto corria na grama e gritava por Pedro. Agora, não sei quando decidi que o amor era mito. Eu só não conseguia compreender. O amor é grande demais, eu sei. Complexo. Só que não estou disposta a nomeá-lo como razão de vida. Se o amor existe tanto, tanto, tanto, por que tanta gente morre fria e sozinha? É só o que eu não consigo entender.


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Notas finais do capítulo

Deixem um feedback. Eu realmente preciso da opinião sincera de cada um de vocês. Agradeço por quem está acompanhando. Obrigado.



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