Dúbia escrita por Wolfie A


Capítulo 12
Capítulo 12




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– Você é loira? – perguntou Frank. A chuva ainda caía lá fora, mesmo o dia já sendo outro. Estamos sós, sentados um de cada lado do sofá modular, em silêncio até esse momento. Eu respiro fundo. O peculiar método de tentar pensar rápido.

– Não, por quê?

– A raiz dos seus cabelos parece... mais clara, eu acho.

Droga. Eu viro meu rosto para o grande espelho que cobre toda uma parede próxima às bancadas da cozinha. “Droga”. Consigo ver o sinal de novos fios que surgem, despigmentados, e sinto um arrepio.

Embora não pareça, fui uma criança feliz. Meus pais planejavam tudo então não é uma surpresa que, quando nasci, eles tivessem dinheiro para tudo. Eu tive do bom e do melhor mesmo que não fossemos ricos, e eles sempre foram pais muito calmos. Não consigo dizer uma única vez um dia em que estive triste em relação a eles. Eu tinha dezenove anos quando os problemas surgiram, quando meu irmão contou aos nossos pais sobre si. Mas eu já não acreditava no amor e nessa baboseira contada. Deixei de acreditar quando fiz dez anos e, de lá para cá, só fui adicionando informações. Só fui complementando.

E, embora difícil de acreditar, ainda assim não sofri com os problemas. Não sofri com as brigas e a não aceitação visível da situação. Aí vieram as tentativas de suicídios. Foram quatro. E então eu somei meus medos e medi: ainda naquela situação, eu só tinha medo de três coisas: aviões, a estranheza de meus cabelos – que, diferente de meus olhos de quimera, nunca fora exibido como troféus – e encontrar um corpo desfalecido no chão do quarto. Meu medo não era que meu irmão morresse; que a família desmoronasse; que eu ficasse sem chão. Meu medo era que eu fosse a pessoa a abrir a porta e ver o corpo ali, que eu tivesse que embarcar na lata de ferro e que meus cabelos estivessem descobertos, nus. E isso sempre soou egoísta, mas eu acho que, perceber a ausência do amor na terra, me fez ver que é isso que somos. Colocamos nossos medos na frente de pessoas.

E agora vinha a pergunta.

– Bem, na verdade sou um pouco loira sim, se assim posso dizer.

– E por que você colore?

– Porque não gosto.

Meu coração ainda estava acelerado, mas percebi que ele não ia insistir no assunto. Estamos esperando a volta de Thomas, que foi chamado pelo pai para resolver um problema na empresa. Ele disse que era rápido e pediu para que Frank me fizesse companhia, que falasse comigo sobre Londres. Mas eu não estou interessada, também.

– Detesto dias úmidos assim. Acho que vou ligar a lareira.

– Tudo bem.

Ele se levanta e acende a lareira apertando em um botão. O fogo azul brota e o apartamento entra num estado meio inquietante. Meus olhos se voltam novamente para o fogo, como na noite anterior, e eu paro de pensar. Minha cabeça se esvazia num oco enorme e a sensação de não pensar por alguns minutos é acolhedora. Estou transcendente.

A porta se abre. Thomas entra, tem um sorriso acolhedor e duas pizzas na mão. Anda com um porte ameaçador, mas sorri como uma criança.

– Passei na pizzaria e pedi duas pizzas... – ele diz, abrindo a primeira caixa quando a coloca sobre o balcão. – Uma de quatro queijos para Estela e – ele abre a segunda caixa, deixando o aroma exalar. – uma a portuguesa.

Fico instantaneamente surpresa ao perceber que ele sabia meu sabor preferido de pizza, mesmo que eu nunca tivesse dito. Ele morde os lábios de vez em quando enquanto ajeita o balcão com copos e coloca o refrigerante em cada um deles. Eu o observo atenta para não perder os detalhes, porque agora ele parece surreal.

– Adoro portuguesa! – Afirma Frank enquanto ele puxa o banco alto para se sentar. Eu me levanto e faço o mesmo. Puxo uma fatia de quatro queijos e sinto o gosto derreter na minha língua. Meu paladar fluindo.

O dia amanhece preguiçoso, as ruas molhadas e o cheiro da chuva nas calçadas. Nós três caminhamos enquanto Thomas e Frank falam sobre alguma coisa. Eu estou no automático. Só caminho. Entramos em um táxi, Frank fala algo, o homem começa a dirigir. Percebo o olhar de Thomas para mim, primeiro nos meus olhos mestiços, depois nos meus cabelos, e vejo um traço surgir na testa dele. Ele franze o cenho.

– Você é loira?

– Mais ou menos.

– Estou surpreso. Quero dizer... mas você parece natural com essa cor de cabelo.

– Eu devia ter refeito a raiz assim que chegamos, mas me esqueci. Na verdade eu... É uma mutação, assim como meus olhos. Nasci com despigmentação capilar, eles são... brancos.

Ambos os irmãos olham para mim. Vejo meu medo morrendo. Fica mais fácil quando não se pensa. O cenho de Thomas está estático.

– Deve ser incrível.

– Não, não é. Vou colori-los hoje.

– Talvez você devesse deixá-los naturais.

– Que lindo! – eu digo, derrotando o assunto enquanto aponto para a torre Big Ben. Frank faz um sinal para o motorista, que para.

– Fico por aqui. Continuem a lua de mel. – Ele tem um sorriso astuto, como se fugisse de nós. O vento frio e úmido entra pela porta, acordando-me os sentidos, e eu decido descer.

– Ficamos – eu digo. Thomas me segue.

Quando descemos, Frank toma um rumo diferente do nosso. Eu e Thomas caminhamos por horas, conversamos por horas, e ele está sempre com o olhar em mim. Os olhos brilhantes, algum tipo de certeza. Talvez que me ame. Eu só posso dizer que ele está errado, mas fico calada. Eu retribuo o olhar.

Por fim, o casamento não vai ser difícil. Thomas é um homem fácil de se carregar, solúvel e frívolo. Eu devorei meus medos, meu desespero, sou invencível. Ou posso fingir ser.

Entramos no apartamento e ele me toca a nuca. Eu deixo que ele me leve até o quarto, que me sinta, me toque. Mesmo que eu não precise, não queira. Eu o deixo. E logo que está satisfeito, ele adormece enquanto eu ponho minha cabeça sobre seu peito e o ouço respirar e existir. Eu vejo a noite afundar em nós. Eu vejo nossos corpos no reflexo do espelho que me assombra as raízes. Os fios sem cor nascendo. Meus medos.

Eu acordo com um silêncio assustador no quarto escuro. A cortina está completamente fechada, não consigo enxergar nada. Me guio pelo instinto, caminhando sobre o tapete felpudo e alcançando as cortinas, então as puxo. Elas correm o suporte de madeira até alcançarem os extremos da sacada, e eu delicadamente as amarro. Percebo meu seio despido, minha calcinha-short de renda. E ouço a porta bater.

– Estela? – A voz não é de Thomas.

– Um segundo.

Corro até o armário de correr e puxo uma camisa de Thomas, jogando a camisa azul em meu corpo e abotoando rápida. A camisa é grande o suficiente para me cobrir.

– Pode entrar.

Ele abre a porta. Um olhar desafiador, uma marca de batom no pescoço e um arroxeado logo abaixo. Não consigo evitar o sorriso.

– Thomas precisou ir até a empresa. Ele pediu para que eu viesse te avisar então estou só de passagem. Ele também falou que qualquer coisa é só ligar para ele e que ele não vai demorar muito, mas que se você precisar de companhia pode falar comigo.

– Para quem faltou o casamento do irmão por causa de compromisso, você parece muito livre.

– Quem dera fosse. – Ele puxa as mangas da camisa. Percebo que ele me olha estranho e tento entender o olhar. Ele fecha a porta. Nos segundos seguintes, ouço outra porta se fechar. Estou sozinha no apartamento de novo e sento na cama olhando pela sacada, a grande cidade lá fora, me chamando. Começo a me imaginar, viva de verdade, em qualquer lugar que eu queira. De qualquer jeito. Sem quebrar a porcelana, sem ter medo. Me olho no espelho e vejo meus cabelos. Me permito suspirar.


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